O Programa Nacional de Alimentação Escolar: o mundo se inspira, seremos capazes de manter os avanços?

El Programa Nacional de Alimentación Escolar: el mundo se inspira, ¿seremos capaces de mantener los avances?

Elisabetta Recine Sobre o autor

É possível afirmar que os enormes avanços ocorridos no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) dificilmente seriam possíveis se não houvesse um cenário político, institucional e técnico que impulsionasse uma abordagem ampla e integradora das políticas e programas de alimentação e nutrição. No contexto da segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada, estratégias que articulem diferentes dimensões e que qualifiquem o processo, mais além de proporcionarem, por exemplo, a oferta de uma refeição, são imprescindíveis. Nessa perspectiva, os meios condicionam os fins. Começamos a registrar resultados que mostram que não apenas a participação de alimentos oriundos da agricultura familiar é crescente, mas, também, estão sendo identificadas melhorias na qualidade da alimentação, dinamização do desenvolvimento local entre outros aspectos complementares e fundamentais que compõe o PNAE.

Dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) mostram que entre 2010 e 2014 a porcentagem de municípios que compraram o equivalente a 30% dos recursos federais recebidos passou de 15 para 65%, e que foi reduzido de 51% para 10% o número de municípios que não realizaram nenhuma compra da agricultura familiar. Essa evolução significativa é resultado de medidas desenvolvidas tanto em nível local como nas demais esferas administrativas. Os municípios adequaram seus processos, profissionais que exercem a função de referência técnica estabeleceram canais de diálogo com produtores e cooperativas de maneira a conhecer a vocação produtiva da região, detalhar necessidades e contribuir para o planejamento da produção. Por outro lado, está cada vez mais evidente a urgência das escolas terem melhor estrutura para o armazenamento adequado e a preparação das refeições, e os profissionais envolvidos precisam ser em número suficiente e treinados para as suas funções. Assim como salas de aulas, são necessários refeitório, água potável, equipamentos e utensílios. Um conjunto de necessidades bem diferente de quando a alimentação escolar se resumia a abrir um pacote ou lata, misturar com água, aquecer e servir. No nível federal, além da atualização de regulamentos e procedimentos, também foram desenvolvidas ações em parceira com Centros Colaboradores de Alimentação e Nutrição Escolar. Não só foram elaborados materiais técnicos e treinamentos, mas também ações de fortalecimento de uma instância fundamental para promover o aprimoramento do Programa, os Conselhos de Alimentação Escolar.

No contexto desta abordagem ampla do Programa, outras iniciativas merecem ser destacadas, como os valores per capita diferenciados para os estudantes indígenas e de comunidades quilombolas; os concursos de receitas que valorizam não apenas a cultura alimentar local, mas também o trabalho dos profissionais que preparam as refeições; e os materiais técnicos de orientação aos responsáveis técnicos tanto em relação a compras, bem como para as situações específicas como o atendimento aos escolares com necessidades alimentares especiais. Iniciativas de mobilização e valorização de experiências locais como o concurso de Boas Práticas de Agricultura Familiar para a Alimentação Escolar, em que um conjunto amplo de sujeitos como gestores, profissionais, agricultores, agentes e instituições de assistência técnica e extensão rural; conselheiros de alimentação escolar; pesquisadores e comunidade acadêmica poderá inscrever suas experiências relacionadas a temas diversos como cardápios, ações de educação alimentar e nutricional; chamada pública; abastecimento e distribuição; intersetorialidade; cooperativismo; participação social; sistemas sustentáveis de produção de base orgânica e agro ecológica. Da mesma maneira, as medidas direcionadas a ampliar e qualificar uma outra dimensão essencial do Programa que é a promoção da alimentação adequada e saudável por meio de estratégias de educação alimentar e nutricional. Os livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação incluíram na contra capa mensagens sobre o tema; está em curso um processo complexo para estimular a inserção transversal de temas de alimentação e nutrição no currículo escolar por meio da revisão de conteúdo dos livros didáticos. Além disso, a implementação de ações de educação alimentar e nutricional no cotidiano escolar está sendo estimulada com iniciativas como a Jornada de Educação Alimentar e Nutricional nas Escolas de Educação Infantil Atendidas pelo PNAE. A Jornada tem como objetivo incentivar o debate e a prática das ações de educação alimentar e nutricional no ambiente escolar e dar visibilidade àquelas já desenvolvidas nas escolas públicas de educação infantil. Os temas a serem trabalhados serão: alimentação complementar e prevenção da obesidade infantil; alimentos regionais brasileiros; prevenção e redução de perdas e desperdícios de alimentos; horta escolar pedagógica; agricultura familiar na escola; e atividades lúdicas para o desenvolvimento social relacionado ao ato de comer. As escolas participantes irão documentar as ações inspiradas nos temas propostos.

Todas essas atividades confirmam que o PNAE tem percorrido o longo caminho de um Programa que oferece alimentação nas escolas para uma política pública que contribui para a realização do direito humano à alimentação adequada, que atende às múltiplas dimensões da segurança alimentar e nutricional, como sendo a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

Diante de tantas conquistas é legítimo perguntarmos sobre os riscos que o PNAE corre considerando as mudanças institucionais e cortes orçamentários ocorridos a partir de 2016. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável pelo conjunto de programas de apoio e desenvolvimento da agricultura familiar foi extinto, seu quadro técnico foi fragilizado e suas atribuições transferidas para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (SEAD), na Casa Civil. O conjunto de programas de apoio à agricultura familiar (assistência técnica e extensão rural; fundo garantia-safra; apoio ao desenvolvimento sustentável de territórios rurais; aquisição e distribuição de alimentos da agricultura familiar, inclusão produtiva rural) sofreu, em 2017, um corte orçamentário da ordem de 15%. Ações essenciais como as de extensão rural e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) estão comprometidos. O acesso ao PAA está sob risco, tanto por parte das famílias produtoras de agricultores como dos indivíduos em situação de insegurança alimentar e nutricional atendidos. Nesta nova configuração, o PAA deixa de ser um programa estruturante voltado para o fortalecimento da agricultura familiar e passa a ser um programa da Assistência Social, com redução de 39% do orçamento em comparação a 2016, o que levará a uma redução do número de famílias atendidas de 91,7 mil para 41,3 mil. A restrição orçamentária fica ainda mais preocupante quando consideramos os contingenciamentos que vêm ocorrendo e quando a ela são somados os cortes ocorridos em ações relacionadas a: mulheres produtoras rurais (-38%); acesso à água (-33%); reforma agrária e regularização fundiária (-36%); e ações direcionadas aos Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais para acesso à terra e território e manejo e uso sustentável da biodiversidade (-48%). Apesar de o índice per capita para a alimentação escolar ter sido recentemente atualizado, à luz dos resultados registrados no presente artigo e outros já publicados, sabe-se que a disponibilidade orçamentária é necessária, mas não suficiente para manter e ampliar a compra da agricultura familiar. Medidas, por exemplo, de apoio e fortalecimento do processo produtivo local sustentável, de prioridade para os grupos mais vulnerabilizados, de estruturação de processos administrativos compatíveis com os objetivos de compra da agricultura familiar para a viabilização de ações de educação alimentar e nutricional, enfim o conjunto de aspectos que configuraram o PNAE como exemplo a ser seguido, precisam ser mantidas e expandidas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2017
  • Aceito
    20 Jun 2017
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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