Resumo:
A violência sexual contra a mulher é uma violência de gênero, reconhecida como uma grave violação de direitos humanos e um problema de saúde pública. Este estudo ecológico, de caráter descritivo e de série temporal pretende analisar a violência sexual contra mulheres adolescentes e adultas, com base nas informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, objetivando descrever as características dos casos de violência sexual perpetrada contra mulheres, notificados por profissionais de saúde nos anos de 2008 a 2013, em Santa Catarina, Brasil. Foram notificados 15.508 casos de violências sendo 2.010 sexuais (12,9%). Contra adolescentes foram 950 notificações para as de 10 a 14 anos (47,3%), 450 contra as de 15 a 19 (22,4%) e 610 notificações (30,3%) para mulheres de 20 anos e mais (adultas). As adolescentes sofreram violência por agressor único, no domicílio, à noite, com penetração vaginal, maior recorrência da agressão e gravidez. Para as adolescentes de 10 a 14 anos e de 15 a 19 os agressores eram desconhecidos em 32,9% e 33,1% das notificações. As adultas foram agredidas na residência, em via pública, à noite e madrugada, por agressor único, com penetração vaginal em mais da metade das violências notificadas, maior número de lesões físicas e tentativas de suicídio. Espera-se que as informações contribuam para a sensibilização de gestores, profissionais, acadêmicos e docentes da área da saúde quanto à importância da notificação de violências como subsídio para o desenvolvimento de ações de enfrentamento da violência sexual contra a mulher.
Palavras-chave:
Violência Sexual; Vigilância Epidemiológica; Mulheres; Adolescente
Abstract:
Sexual violence against women is a form of gender violence and both a severe human rights violation and public health problem. This ecological, descriptive, and temporal series study aims to analyze sexual violence against pre-adolescent, adolescent, and adult females in Santa Catarina State, Brazil, based on data from the Information System for Notifiable Diseases, in order to describe the characteristics of cases of sexual violence perpetrated against women, reported by health professionals from 2008 a 2013. A total of 15,508 cases of violence were reported, including 2,010 cases of sexual violence (12.9%). Cases of violence totaled 950 reports in the 10 to 14 year bracket (47.3%), 450 in the 15 to 19 year bracket (22.4%), and 610 (30.3%) in women 20 years or older (adults). Adolescent females suffered violence by a single aggressor, at home, at night, with vaginal penetration, and with greater tendency to repeated assault and pregnancy as a result. For females 10 to 14 and 15 to 19 years of age, the aggressors were unknown in 32.9% and 33.1% of the reports, respectively. Adult women were sexually assaulted either at home or on public byways, at night or in the early morning hours, by a single aggressor, with vaginal penetration in more than half of the cases, with more physical injuries, and with more subsequent suicide attempts. The information should contribute to awareness-raising of policymakers, health professionals, researchers, and health field professors concerning the importance of reporting violence in order to help develop interventions to prevent such violence against women.
Keywords:
Sexual Violence; Epidemiological Surveillance; Women; Adolescent
Resumen:
La violencia sexual contra la mujer es una violencia de género, reconocida como una grave violación de derechos humanos y un problema de salud pública. Este estudio ecológico, de carácter descriptivo y de serie temporal pretende analizar la violencia sexual contra mujeres adolescentes y adultas, en base a la información del Sistema de Información de Enfermedades de Notificación obligatoria, con el objetivo de describir las características de los casos de violencia sexual perpetrada contra mujeres, notificados por profesionales de salud durante los años de 2008 a 2013, en Santa Catarina, Brasil. Se notificaron 15.508 casos de violencia, siendo 2.010 sexuales (12,9%). Contra adolescentes fueron 950 notificaciones, en el caso de las de 10 a 14 años (47,3%), 450 contra las de 15 a 19 años (22,4%) y 610 notificaciones (30,3%) en mujeres de 20 años y más (adultas). Las adolescentes sufrieron violencia por parte de un agresor único, en el domicilio, por la noche, con penetración vaginal, mayor recurrencia de agresión y embarazo. En las adolescentes de 10 a 14 años y de 15 a 19 los agresores eran desconocidos en un 32,9% y 33,1% de las notificaciones. Las adultas fueron agredidas en la residencia, en vía pública, por la noche y madrugada, por un agresor único, con penetración vaginal en más de la mitad de las agresiones notificadas, mayor número de lesiones físicas y tentativas de suicidio. Se espera que la información contribuya a la sensibilización de gestores, profesionales, académicos y docentes del área de salud, en cuanto a la importancia de la notificación de este tipo de violencia, así como ayudas para el desarrollo de acciones de combate a la violencia sexual contra la mujer.
Palabras-clave:
Violencia Sexual; Vigilancia Epidemiológica; Mujeres; Adolescente
Introdução
A violência sexual é compreendida como ato ou tentativa do ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis contra a sexualidade de uma pessoa a partir da coerção 11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2002.. Reconhecida como problema de saúde pública e uma violação dos direitos humanos, com elevadas prevalências 22. Puri M, Frost M, Tamang J, Lamichhane P, Shah I. The prevalence and determinants of sexual violence against young married women by husbands in rural Nepal. BMC Res Notes 2012; 5:291. afetando principalmente as mulheres 33. Ali TS, Asad N, Mogren I, Krantz G. Intimate partner violence in urban Pakistan: prevalence, frequency, and risk factors. Int J Womens Health 2011; 3:105-15.. Nesse contexto, a maioria das agressões é perpetrada de modo predominante por homens 44. Blake MT, Drezett J, Vertamatti MA, Adami F, Valenti VE, Paiva AC, et al. Characteristics of sexual violence against adolescent girls and adult women. BMC Womens Health 2014; 14:15. e geralmente por um único agressor 55. Black MC, Basile KC, Breiding MJ, Ryan GW. Prevalence of sexual violence against women in 23 states and two U.S. territories, BRFSS 2005. Violence Against Women 2014; 20:485-99..
Um estudo conduzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 66. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women's Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the WHO multi-country study on women's health and domestic violence. Lancet 2006; 368:1260-9., sobre violência sexual contra mulher cometida por parceiro íntimo, encontrou prevalências de violência variando entre 6% no Japão e 58,6% na Etiópia. Black et al. 55. Black MC, Basile KC, Breiding MJ, Ryan GW. Prevalence of sexual violence against women in 23 states and two U.S. territories, BRFSS 2005. Violence Against Women 2014; 20:485-99. em um estudo realizado nos Estados Unidos com 100 mil mulheres, encontraram prevalência de 3,5% para esse tipo de violência. Outro estudo americano 77. Brecklin LR, Ullman SE. The roles of victim and offender substance use in sexual assault outcomes. J Interpers Violence 2010; 25:1503-22. aponta que 10,8% das mulheres foram agredidas sexualmente.
No Brasil, as prevalências de violência sexual variam de 40,4%, em pesquisa com mulheres de 18 a 39 anos 88. Flake TA, Barros C, Schraiber LB, Menezes PR. Intimate partner violence among undergraduate students of two universities of the state of São Paulo, Brazil. Rev Bras Epidemiol 2013; 16:801-16., e 12,4% de 19 a 60 anos 99. Mathias AK, Bedone A, Osis MJ, Fernandes AM. Perception of intimate partner violence among women seeking care in the primary healthcare network in São Paulo state, Brazil. Int J Gynaecol Obstet 2013; 121:214-7.. A maior prevalência desse tipo de violência ocorre com adolescentes de 10 a 14 anos (66%) predominantemente do sexo feminino (91%) 1010. Justino LCL, Ferreira SRP, Nunes CB, Barbosa MAM, Gerk MAS, Freitas SLF. Violência sexual contra adolescentes: notificações nos conselhos tutelares, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. Rev Gaúch Enferm 2011; 32:781-7.. Resultados semelhantes foram encontrados em estudos do Conselho Tutelar de Feira de Santana na Bahia, com prevalência de violência sexual de 46,7% 1111. Oliveira JR, Costa MCO, Amaral MTR, Santos CA, Assis SG, Nascimento OC. Violência sexual e co-ocorrências em crianças e adolescentes: estudo das incidências ao logo de uma década. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:759-71. e 46,3% 1212. Souza CS, Costa MCO, Assis SG, Musse JO, Sobrinho CN, Amaral MTR. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes/VIVA e a notificação da violência infanto-juvenil, no Sistema Único de Saúde - SUS de Feira de Santana - Bahia, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:773-84.. As adolescentes entre 10 e 14 anos estão mais sujeitas à violência sexual por familiares, e entre 15 e 19 anos são os conhecidos e/ou amigos que praticam essa violência 1212. Souza CS, Costa MCO, Assis SG, Musse JO, Sobrinho CN, Amaral MTR. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes/VIVA e a notificação da violência infanto-juvenil, no Sistema Único de Saúde - SUS de Feira de Santana - Bahia, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:773-84..
A violência sexual contra mulher é considerada uma violência de gênero, uma demonstração extrema de poder do homem sobre as mulheres que se configura como uma forma de violência física e psicológica de modo simultâneo 66. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women's Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the WHO multi-country study on women's health and domestic violence. Lancet 2006; 368:1260-9.. Como fatores associados a essa violência estão a baixa escolaridade da mulher 1313. Ruiz-Muñoz D, Wellings K, Castellanos-Torres E, Álvarez-Dardet C, Casals-Cases M, Pérez G. Sexual health and socioeconomic-related factors in Spain. Ann Epidemiol 2013; 23:620-8., não ter formação profissional 22. Puri M, Frost M, Tamang J, Lamichhane P, Shah I. The prevalence and determinants of sexual violence against young married women by husbands in rural Nepal. BMC Res Notes 2012; 5:291., ter um ou mais parceiros íntimos 99. Mathias AK, Bedone A, Osis MJ, Fernandes AM. Perception of intimate partner violence among women seeking care in the primary healthcare network in São Paulo state, Brazil. Int J Gynaecol Obstet 2013; 121:214-7., consumir bebida alcoólica, presenciar situações de alcoolismo; todos estes aumentam em 18,9% a chance de violação sexual no ambiente doméstico 1414. Paludo SS, dei Schirò EDB. Um estudo sobre os fatores de risco e proteção associados à violência sexual cometida contra adolescentes e jovens adultos. Estud Psicol (Natal) 2012; 17:397-404.. Mulheres com parceiros que frequentemente estão embriagados têm sete vezes mais chances de serem sexualmente agredidas 1515. Barrett BJ, Habibov N, Chernyak E. Factors affecting prevalence and extent of intimate partner violence in Ukraine: evidence from a nationally representative survey. Violence Against Women 2012; 18:1147-76.. O impacto negativo da violência sexual é refletido em danos imediatos e a longo prazo, e são agravados pela sobreposição de violências sofridas 1616. Organização Mundial da Saúde. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher: ação e produção de evidência. Washington DC: Organização Mundial da Saúde; 2012.. Flake et al. 88. Flake TA, Barros C, Schraiber LB, Menezes PR. Intimate partner violence among undergraduate students of two universities of the state of São Paulo, Brazil. Rev Bras Epidemiol 2013; 16:801-16. identificaram maior percentual de violência sofrida quando ocorre a combinação da psicológica com a sexual (23,5%), seguida da psicológica, física e sexual (15,8%).
Essa agressão é um evento traumático, com efeitos potencialmente devastadores sobre a saúde física e mental das mulheres. Causa danos profundos no bem-estar físico, sexual, reprodutivo, emocional, mental e social das vítimas 66. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women's Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the WHO multi-country study on women's health and domestic violence. Lancet 2006; 368:1260-9.. Na violência sexual contra mulher a penetração vaginal está presente na maioria das agressões, de acordo com as literaturas nacional 4 e internacional 1717. Imhoff LR, Liwanag L, Varma M. Exacerbation of symptom severity of pelvic floor disorders in women who report a history of sexual abuse. Arch Surg 2012; 147:1123-9., submetendo-as ao risco de gravidez indesejada e infecções sexualmente transmissíveis (IST), incluindo o HIV e a hepatite viral 44. Blake MT, Drezett J, Vertamatti MA, Adami F, Valenti VE, Paiva AC, et al. Characteristics of sexual violence against adolescent girls and adult women. BMC Womens Health 2014; 14:15..
No Brasil, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, deu visibilidade às violências sofridas pelas mulheres e reafirmou a necessidade de ações intersetoriais de prevenção e enfrentamento 1818. Silva LEL, Oliveira MLC. Violência contra a mulher: revisão sistemática da produção científica nacional no período de 2009 a 2013. Ciênc Saúde Coletiva 2015; 20:3523-32.. No âmbito da saúde, a violência sexual contra mulher está entre os eixos da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher com a expansão e qualificação da rede de atenção integral. A notificação de violências é um dos componentes da assistência realizada pelos profissionais de saúde, possibilitando dar visibilidade às violências e à assistência prestada às pessoas agredidas 1919. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..
Nesse âmbito, em 2009 e 2010, de 113.643 notificações de violências, 18,8% foram violências sexuais; entre as mulheres este tipo de violência representou 24,2% do total das notificadas 2020. Veloso MMX, Magalhães CMC, Dell'Aglio DD, Cabral IR, Gomes MM. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:1263-72.. O Estado de Santa Catarina, local deste estudo, registra um dos maiores números de violência sexual do país. Em 2012, enquanto a taxa nacional foi de 25 casos para 100 mil mulheres, Santa Catarina ocupou o 5º lugar com 44,3 casos por 100 mil mulheres 2121. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. 7ª Ed. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2013..
Diante do exposto, este trabalho tem por objetivo descrever as características dos casos de violência sexual perpetrada contra mulheres, notificados por profissionais de saúde nos anos de 2008 a 2013, em Santa Catarina.
Métodos
Trata-se de estudo ecológico, de caráter descritivo e de série temporal, com dados secundários notificados de violência sexual contra mulher, cadastrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), de Santa Catarina. O estado tinha uma população de 6.383.286 habitantes em 2012, as mulheres representavam 50,4%, e aquelas com idade igual ou maior que 10 anos corresponderam a 43,78 % do total da população feminina 2222. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais, 2012: uma análise das condições de vida da população brasileira. Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2012..
O Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (SINAN VIVA) foi implantado no estado em 2007, com a vigilância das violências doméstica, sexual e/ou outras violências. É alimentado por profissionais dos serviços públicos e privados de saúde, por meio da ficha de notificação e investigação dos casos de violências 2323. Ministério da Saúde. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA): 2009, 2010 e 2011. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..
Este estudo utilizou os dados inseridos no SINAN VIVA Contínuo, baseando-se nas notificações de violência sexual contra mulheres de 10 anos ou mais, residentes em Santa Catarina. As notificações foram extraídas em maio de 2014, usando-se o programa Tabwin versão 3.6b, do banco do SINAN, disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina, Diretoria de Vigilância Epidemiológica, Setor de Sistemas de Informação. Foram incluídas as notificações de 2008 a 2013 de violências sexuais contra mulheres, a partir de 10 anos de idade sem limitação da idade superior. A idade a partir dos 10 anos foi definida com base na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde 1919. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. e na delimitação da OMS para a adolescência, de 10 a 19 anos 2424. Organización Mundial de la Salud. Problemas de salud de la adolescencia. Geneva: Organización Mundial de la Salud; 1965.. Das 15.508 notificações de violências contra mulheres, 2.029 foram sexuais. Dessas foram excluídas 15 notificações de não residentes em Santa Catarina e 4 por duplicidade, resultando na inclusão de 2.010 notificações de violência sexual.
Inicialmente, as notificações que compuseram o banco de dados foram analisadas em relação à completitude, não duplicidade e a consistência, que segundo Lima et al. 2525. Lima CRA, Schramm JMA, Coeli CM, Silva MEM. Revisão das dimensões de qualidade dos dados e métodos aplicados na avaliação dos sistemas de informação em saúde. Cad Saúde Pública 2009; 25:2095-109. constituem dimensões de qualidade da informação em uma base de dados. Para a análise da completitude selecionou-se 59 variáveis relevantes para o estudo; procedeu-se a análise com base nos anos de 2008 a 2013, calculando-se o percentual e média de campos completos a cada ano. Prosseguindo a análise de completitude para verificar se houve diferença na proporção de campos preenchidos como ignorados e/ou em branco, realizou-se o teste de tendência linear no programa estatístico Stata, versão 13.0 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos). Testou-se as mesmas variáveis em relação ao ano de ocorrência. Para a verificação da não duplicidade, as violências sexuais notificadas foram analisadas para reconhecer a presença de informações idênticas em notificações diferentes, consideradas como duplicidade de registro, aceitável o percentual de não duplicidade acima de 95% 2626. Abath MB, Lima MLLT, Lima PS, Silva MCM, Lima MLC. Avaliação da completitude, da consistência e da duplicidade de registros de violências do Sinan em Recife, Pernambuco, 2009-2012. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:131-42.. Com relação à consistência, compreendida como a coerência entre as categorias assinaladas em dois campos relacionados 2727. Ministério da Saúde. Roteiro para uso do Sinan Net: análise da qualidade da base de dados e cálculo de indicadores epidemiológicos e operacionais. Violência doméstica, sexual e/ou outras violências. Brasília: Ministério da Saúde; 2010., foi analisada as combinações possíveis entre os campos do banco de notificações de violências sexuais contra mulheres de 10 anos e mais, entre elas, idade, escolaridade, tipo de violência sexual, sexo do agressor e vínculo com a mulher agredida. Consideradas coerentes as informações na notificação com relações possíveis entre as variáveis para agressão sexual de mulheres nessa faixa etária. Para Abath et al. 2626. Abath MB, Lima MLLT, Lima PS, Silva MCM, Lima MLC. Avaliação da completitude, da consistência e da duplicidade de registros de violências do Sinan em Recife, Pernambuco, 2009-2012. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:131-42., resultados iguais ou superiores a 90% são considerados excelentes.
As análises foram estratificadas segundo faixas etárias. Para as adolescentes de 10 a 19 anos optou-se por dividir em dois grupos etários, 10 a 14 e 15 a 19 anos, pela maior vulnerabilidade das de menor idade 2424. Organización Mundial de la Salud. Problemas de salud de la adolescencia. Geneva: Organización Mundial de la Salud; 1965.. As demais características foram analisadas de acordo com as informações registradas nas fichas de notificação de violência.
Variáveis em relação à vítima: cor da pele (branca, parda, preta, amarela/indígena); escolaridade em anos de estudos (0-4, 5-8, 9-11, 12 ou mais); ocupação (estudante, empregada [todas as ocupações], outros [aposentada, desempregada, dona de casa]); estado civil (solteira, casada/união estável, separada/viúva).
Variáveis em relação ao agressor: sexo (masculino, feminino, ambos os sexos); número de envolvidos (um, dois ou mais); vínculo/grau de parentesco com a mulher agredida (parceiro íntimo [cônjuge, ex-cônjuge, namorado, ex-namorado], conhecido [conhecido/amigo], familiar [pai, mãe, padrasto, filho, irmão, cunhado, sogro], desconhecido, outro [cuidador, patrão/chefe, pessoa com relação institucional, policial/agente da lei, outros]); consumo de álcool (sim ou não).
Variáveis em relação ao ato violento: local (residência, via pública, outros); turno de ocorrência (manhã: 06:00 às 11:59, tarde: 12:00 às 17:59, noite: 18:00 às 23:59, madrugada: 00:00 às 05:59); tipo de penetração sofrida (vaginal, anal, oral, mais de um tipo de penetração, sem penetração); consequências (IST, gravidez, tentativa de suicídio); lesões sofridas (com lesão [contusão, corte/perfuração/laceração, entorse/luxação, fratura, traumatismo dentário, traumatismo cranioencefálico, politraumatismo, intoxicação, queimadura, outros], sem lesão); ocorreu outras vezes (sim, não); evolução para óbito (sim ou não).
Utilizou-se o programa estatístico Stata, versão 13.0, para analisar as violências notificadas em mulheres adolescentes (idades de 10 a 14 e 15 a 19 anos 2424. Organización Mundial de la Salud. Problemas de salud de la adolescencia. Geneva: Organización Mundial de la Salud; 1965.) e adultas (20 anos e mais) apresentadas por meio de estatística descritiva com frequência absoluta e relativa (%), com os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%). Foi testada a significância estatística usando-se o teste do qui-quadrado (χ2) e considerado o valor de p inferior a 0,05 estatisticamente significante para todas as variáveis incluídas no estudo. O teste qui-quadrado foi empregado para comparar duas proporções. Consiste no cálculo de estatística de teste com base nos dados observados que, sob a hipótese de não associação, segue aproximadamente uma distribuição teórica com 1 grau de liberdade 2828. Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL, organizadores. Epidemiologia. 2ª Ed. São Paulo: Editora Atheneu; 2009..
Este tipo de estudo dispensa a avaliação de comitê de ética em pesquisa por tratar-se de banco de dados secundário.
Resultados
Na análise de qualidade o banco de dados registrou aceitável duplicidade, boa completitude e excelente consistência. A proporção média de preenchimento das variáveis foi de 93,3%. A menor completitude ocorreu na variável hora da ocorrência, com proporção média de 67,2%; a maior foi na variável sexo do provável autor da agressão, com 98,7% de completitude. Na análise de tendência linear para 17 variáveis (28,8%), constatou-se diferença estatisticamente significante (p ≤ 0,05) para a proporção de campos ignorados ou em branco das variáveis segundo o ano de ocorrência, para 42 variáveis (71,1%) não houve diferença. A análise de não duplicidade encontrou 99,9% de campos não duplos. A consistência média foi de 98,9% entre as variáveis selecionadas para análise.
No período entre 2008 e 2013, foram registradas em Santa Catarina 2.010 notificações de casos suspeitos ou confirmados de violência sexual, que representaram 12,9% de todos os tipos de violência notificados contra as mulheres, sendo 35,7% para as de 10 a 19 anos e 5,7% para as com 20 anos ou mais). O número de notificações apresentou tendência crescente nesse período, podendo- se atribuir à incorporação pelo setor saúde da notificação das violências. Considerando somente notificações de violência sexual, contra adolescentes foram 950 para as de 10 a 14 anos (47,3%), 450 contra as de 15 a 19 (22,4%) e 610 notificações (30,3%) para mulheres de 20 anos e mais (adultas). Nas notificações das violências sexuais, independentemente da idade, predominou a cor da pele branca, com maior percentual para adolescentes de 15 a 19 anos (83,7%). Menor escolaridade e 0 a 4 anos de estudos foram maiores entre as adultas (24,4%), seguidas pelas adolescentes de 10 a 14 anos (19,9%). Na faixa etária 10 a 14 anos, 97,5% eram estudantes e, como era de se esperar, 98,4% solteiras. Das mulheres adultas, 51,4% estavam empregadas e 49,1% solteiras. Houve significância estatística para violência sexual sofrida por adolescentes e adultas nas variáveis escolaridade, ocupação e situação conjugal, com maior prevalência de violência sexual para as adolescentes estudantes com 5 a 8 anos de estudos e solteiras, e para as adultas com 9 a 11 anos de estudos, empregadas e casadas ou em união estável (Tabela 1).
Para a maioria das mulheres, independentemente da idade, a violência sexual aconteceu na residência. A proporção de ocorrências no âmbito domiciliar foi mais elevada para as adolescentes de 10 a 14 anos (76,8%), e para as adolescentes de 15 a 19 anos e adultas houve maior proporção de ocorrências na via pública ou outras. Em relação ao turno, para as adolescentes de 10 a 14 anos houve maior proporção de agressões à noite e (42,3%) e à tarde (25,9%), e as adultas foram vítimas principalmente à noite (34,8%) e de madrugada (33%). A penetração vaginal foi a mais praticada pelo agressor (59,9%). Não houve diferenças estatisticamente significativas segundo faixas etárias em relação ao tipo de penetração. A violência de repetição foi mais frequente nas adolescentes de 10 a 14 anos (51%) do que nas de 15 a 19 anos (29,5%) e adultas (27,5%). Houve diferenças estatisticamente significativas entre as faixas etárias para o local da ocorrência, turno e repetição, ao comparar adolescentes e mulheres adultas (Tabela 2).
Destacam-se as consequências da violência sexual que ocorreram em todas as faixas etárias: 4,7% das adolescentes de 15 a 19 anos apresentaram IST decorrente da agressão, e 2,4% das de 10 a 14 e 2,2% das com 20 anos e mais. As adolescentes de 10 a 14 anos tiveram mais gravidezes (8,5%) quando comparadas às de 15 a 19 anos (5,7%) e às adultas (3,9%). Nessas últimas, a tentativa de suicídio foi maior (2,4%) do que dentre as de 15 a 19 anos (1,9%) e nas de 10 a 14 (1,2%).
As agressões com lesões físicas foram significativamente mais notificadas nas adultas (71%), predominando contusões e cortes. Entre esses traumatismos, 1,7% foi cranioencefálico. Apresentaram lesões físicas em decorrência da violência sexual 62,8% das adolescentes de 15 a 19 anos e 42,5% das adolescentes de 10 a 14. Destacam-se os oito óbitos em decorrência da agressão, uma adolescente na faixa etária de 10 a 14 anos, três de 15 a 19 e quatro mulheres com mais de 20 anos. As diferenças foram estatisticamente significativas entre as faixas etárias para IST, gravidez e lesões físicas (Tabela 2).
Em geral, a totalidade dos agressores foi do sexo masculino em todas as faixas etárias das mulheres agredidas. Houve predominância de agressor único em mais de 80% das violências, e em cerca de um terço das mulheres o agressor foi registrado como desconhecido. Chama a atenção o elevado percentual de agressões perpetradas por familiares (cerca de 21,5% nas adolescentes de 10 a 14 anos e 25,7% nas de 15 a 19 anos e adultas). O agressor havia consumido álcool em 27,8% das ocorrências de violência sexual com adolescentes de 10 a 14 anos e mais da metade das mulheres adultas. Houve significância estatística para o sexo e consumo de álcool pelo agressor, ao comparar adolescentes e mulheres adultas, com maior proporção de agressores masculinos tanto para adolescentes como para adultas, e maior proporção de agressores que consumiram bebida alcoólica para as mulheres adultas (Tabela 3).
Discussão
Estudar a violência sexual contra mulher é uma importante forma de contribuir para diminuir a invisibilidade desta realidade vivenciada por inúmeras mulheres. Tem-se ampliado o reconhecimento dessa questão como problema de saúde pública, no entanto, o enfrentamento dessa violência ainda demanda efetivação de ações intersetoriais em rede de atenção.
Neste estudo, a maioria das mulheres que sofreu violência sexual foi de cor da pele branca, condição que pode estar relacionada à predominância na população do estado (89,3%) 2929. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do Censo Demográfico 2010. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default_atlas.shtm (acessado em 12/Set/2015).
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/... . As adolescentes eram principalmente estudantes e solteiras; as adultas, a maioria estava empregada, quase metade solteira, com até oito anos de estudos. Destaca-se que menor escolaridade tem sido associada à maior probabilidade de sofrer violência sexual, conforme observado neste trabalho e encontrado na literatura 1313. Ruiz-Muñoz D, Wellings K, Castellanos-Torres E, Álvarez-Dardet C, Casals-Cases M, Pérez G. Sexual health and socioeconomic-related factors in Spain. Ann Epidemiol 2013; 23:620-8..
Em Santa Catarina, as notificações de violência sexual foram em maior número em adolescentes do que em adultas, informando violência sexual com penetração vaginal, na residência, com graves consequências, tais como gravidez, IST e morte. Para as adolescentes destacam-se o maior número de agressões notificadas na faixa etária entre 10 e 14 anos, a ocorrência de repetição, os agressores de seu convívio e o maior número de gravidez. Para as adultas, as agressões na residência e em via pública, por conhecidos e desconhecidos, no período da noite e madrugada, com lesões físicas, tentativa de suicídio e óbito.
Para as adolescentes, o percentual de notificação de violência sexual foi de 69,7%, destas, 47,3% tinham de 10 a 14 anos. Menores percentuais foram encontrados em estudos semelhantes realizados em serviços de saúde em Belém (Pará) 2020. Veloso MMX, Magalhães CMC, Dell'Aglio DD, Cabral IR, Gomes MM. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:1263-72., 45,9%, Recife (Pernambuco) 3030. Silva MCM, Brito AM, Araújo AL, Abath MB. Caracterização dos casos de violência física, psicológica, sexual e negligências notificados em Recife, Pernambuco, 2012. Epidemiol Serv Saúde 2013; 22:403-12., 43%, para adolescentes de 10 a 19 anos. Em contrapartida, um estudo multicêntrico 3131. Decker MR, Peitzmeier S, Olumide A, Acharya R, Ojengbede O, Covarrubias L, et al. Prevalence and health impact of intimate partner violence and non-partner sexual violence among female adolescents aged 15-19 years in vulnerable urban environments: a multi-country study. J Adolesc Health 2014; 55(6 Suppl):S58-67. em centros urbanos vulneráveis encontrou prevalências de violência sexual que variaram de 1,2% em Xangai (China) a 12,3% em Baltimore (Estados Unidos) e 12,6% em Joanesburgo (África do Sul), entre 1.112 adolescentes de 15 a 19 anos, e na Espanha 3232. Pichiule Castañeda M, Gandarillas Grande AM, Díez-Gañán L, Sonego M, Ordobás Gavín MA. Young people dating violence surveillance in Madrid, Spain. Rev Esp Salud Pública 2014; 88:639-52., 5,3% de adolescentes de 15 a 16 anos relataram violência sexual entre 1.713 estudantes de escola secundária.
É importante destacar que a faixa de idade considerada adolescente tem grandes variações. Dessa forma, um diferencial do presente estudo é a desagregação por idade, permitindo visibilizar as diferenças entre as adolescentes de 10 a 14 anos e de 15 a 19. Também é importante ressaltar que as de 10 a 14 anos são, física, psicológica e socialmente mais vulneráveis, não tendo maturidade para compreender a teia criada pelo agressor, que pode seduzir conquistando a confiança ou impondo a sua autoridade, para concretizar a prática sexual 1212. Souza CS, Costa MCO, Assis SG, Musse JO, Sobrinho CN, Amaral MTR. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes/VIVA e a notificação da violência infanto-juvenil, no Sistema Único de Saúde - SUS de Feira de Santana - Bahia, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:773-84.. Para romper com esse tipo de violência, as adolescentes dependem da iniciativa de terceiros para quebrar o silêncio, denunciar e/ou acionar a rede de proteção conforme preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente3333. Presidência da República. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul..
Na faixa etária entre 10 e 14 anos, a frequência na escola é obrigatória no Brasil 3333. Presidência da República. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul. e esta pode ser forte aliada no enfrentamento da violência sexual. Professores devem estar atentos à mudança de conduta ou sinais de violência nas alunas, como comportamentos autodestrutivos ou sexualizados 3434. Viodres Inoue SR, Ristum M. Violência sexual: caracterização e análise de casos revelados na escola. Estud Psicol (Campinas) 2008; 25:11-21., para encaminhamentos articulados em rede com a saúde, segurança pública e assistência social. Na Bahia 3535. Rocha GOR, Lemos FC, Lirio FC. Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação 2011; 38:259-87., em 2.522 casos de violência sexual, 73% com até 18 anos, somente 23 abusos foram identificados pela escola, apontando que estas ainda não promovem ações específicas de enfrentamento a esse tipo de violência.
Os achados da presente casuística em relação ao local da agressão corroboram com um estudo 3636. Gawryszewski VP, Valencich DMO, Carnevalle CV, Marcopito LF. Maus-tratos contra a criança e o adolescente no Estado de São Paulo, 2009. Rev Assoc Med Bras 2012; 58:659-65. que identificou para as adolescentes de 10 a 14 anos a própria residência, onde ocorre o maior número das agressões. Dados do conselho tutelar apontam que 58% das agressões sexuais foram com adolescentes, 52,7% no domicílio da agredida e 30,1% do agressor 3737. Martins CBG, Jorge MHPM. Abuso sexual na infância e adolescência: perfil das vítimas e agressores em município do sul do Brasil. Texto & Contexto Enferm 2010; 19:246-55.. No caso das adolescentes de 15 a 19 anos o local diferencia, com um número expressivo de violências em vias públicas (32%), e maior ocorrência à noite e madrugada. Resultados semelhantes foram encontrados entre 687 mulheres, a maioria adolescentes, atendidas em centro de referência 3838. Facuri CO, Fernandes AMS, Oliveira KD, Andrade TS, Azevedo RCS. Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública 2013; 29:889-98., onde as agressões aconteceram em via pública (41,7%) e à noite (75,9%). A violência tanto dentro quanto fora de casa é um alerta à segurança pública.
Mesmo com altas prevalências de violência sexual com adolescentes a subnotificação é evidente, sendo importante destacar os fatores que contribuem com esta realidade como o medo da dissociação da família caso o fato seja descoberto, e descrédito na fala da agredida por vezes culpabilizada por ter sido abusada 3434. Viodres Inoue SR, Ristum M. Violência sexual: caracterização e análise de casos revelados na escola. Estud Psicol (Campinas) 2008; 25:11-21.. O lado mais cruel, se é que podemos distinguir, dessas violências, é que mais da metade das notificações no presente estudo para as adolescentes de 10 a 14 anos foram violência de repetição, com agressores familiares (21,5%) ou conhecidos (29,4%). São situações favorecidas pelos limites impostos pela privacidade familiar 3737. Martins CBG, Jorge MHPM. Abuso sexual na infância e adolescência: perfil das vítimas e agressores em município do sul do Brasil. Texto & Contexto Enferm 2010; 19:246-55.. Os dados encontrados reforçam a necessidade de dar visibilidade às agressões, possibilitando estabelecer medidas protetivas, a partir de uma sociedade atenta e ativamente contrária à violência, que poderá colaborar para que tais situações não se repitam.
Identificam-se neste estudo os elevados porcentuais de agressão por desconhecido entre adolescentes (32,9% de 10 a 14 anos e 33,1% nas de 15 a 19), números maiores do que para as adultas. Esse dado difere de estudos 1212. Souza CS, Costa MCO, Assis SG, Musse JO, Sobrinho CN, Amaral MTR. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes/VIVA e a notificação da violência infanto-juvenil, no Sistema Único de Saúde - SUS de Feira de Santana - Bahia, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:773-84.,3737. Martins CBG, Jorge MHPM. Abuso sexual na infância e adolescência: perfil das vítimas e agressores em município do sul do Brasil. Texto & Contexto Enferm 2010; 19:246-55. que identificam os agressores predominantemente como familiares e conhecidos.
É importante ressaltar que a maioria das adolescentes sofreu violência sexual na residência, o que se contrapõe à informação de ser o agressor desconhecido. É possível entender esse descompasso presumindo que esse dado específico, oriundo do setor saúde, pode ter sido facilitado pela cumplicidade da família em não informar o agressor. Quando os dados sobre violência sexual provêm dos conselhos tutelares, com função de defesa dos direitos das adolescentes, ocorre a investigação junto às famílias, podendo-se identificar agressores no convívio familiar e/ou conhecidos da adolescente 3939. Ribeiro MA, Ferriani MGC, Reis JN. Violência sexual contra crianças e adolescentes: características relativas à vitimização nas relações familiares. Cad Saúde Pública 2004; 20:456-64..
Para as mulheres de 20 anos e mais, o percentual de violência sexual entre todas as violências notificadas foi de 5,7%, menor frequência do que a encontrada em Recife, em que 31,9% das violências foram acima de 20 anos de idade 3030. Silva MCM, Brito AM, Araújo AL, Abath MB. Caracterização dos casos de violência física, psicológica, sexual e negligências notificados em Recife, Pernambuco, 2012. Epidemiol Serv Saúde 2013; 22:403-12.. Causa estranheza esse menor número de notificações em Santa Catarina, uma vez que a segurança pública aponta este estado como o quinto em ocorrência de violência sexual no país. Esse dado pode estar relacionado à dificuldade das mulheres em expor a situação, do julgamento pela intolerância do preconceito, tendendo assim a silenciar, por medo de represália, vergonha, sentimentos de humilhação e culpa 4040. Schraiber LB, D'Oliveira AFPL, Couto MT, Hanada H, Kiss LB, Durand JG, et al. Violência contra mulheres entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo. Rev Saúde Pública 2007; 41:359-67.,4141. Schraiber LB, D'Oliveira AFPL, França Junior I; Grupo de Estudos em População, Sexualidade e Aids. Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saúde Pública 2008; 42 Suppl 1:127-37..
Por outro lado, a compulsoriedade não é garantia de notificações 4040. Schraiber LB, D'Oliveira AFPL, Couto MT, Hanada H, Kiss LB, Durand JG, et al. Violência contra mulheres entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo. Rev Saúde Pública 2007; 41:359-67.. O confronto com situações de violência sexual, para os profissionais de saúde, os coloca frente a frente com medos e sentimentos de impotência, diante da complexidade da situação, o que pode ampliar a subnotificação 4242. Saliba O, Garbin CAS, Garbin AJI, Dossi AP. Responsabilidade do profissional de saúde sobre a notificação de casos de violência doméstica. Rev Saúde Pública 2007; 41:472-7., o que não indica que o profissional não se preocupe com a violência contra a mulher.
O estudo demonstra que as mulheres adultas sofreram agressões em via pública (32%), em maior proporção na residência (51,8%), situação que amplia a possibilidade destas ocorrerem por parceiro íntimo, uma vez que 32,3% das mulheres informaram serem casadas ou ter união estável. A violência sexual por parceiro íntimo tem reconhecimento dificultado pela crença da relação íntima ser privada, e pela não percepção de que a relação sexual sem o consentimento da mulher é violência. Essa afirmação é corroborada por um estudo 99. Mathias AK, Bedone A, Osis MJ, Fernandes AM. Perception of intimate partner violence among women seeking care in the primary healthcare network in São Paulo state, Brazil. Int J Gynaecol Obstet 2013; 121:214-7. que aponta prevalência de 12,4% de violência sexual contra mulher pelo parceiro íntimo, apenas 48,7% identificaram a situação de violência, com maior percentual para a sexual (76,3%).
A violência em via pública está relacionada a agressor desconhecido da vítima 26,27, informada por 31,7% das mulheres do estudo. Ocorreu principalmente à noite (34,8%) e madrugada (33%), dado encontrado na literatura em até 80% das agressões 2626. Abath MB, Lima MLLT, Lima PS, Silva MCM, Lima MLC. Avaliação da completitude, da consistência e da duplicidade de registros de violências do Sinan em Recife, Pernambuco, 2009-2012. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:131-42.. O não reconhecimento do autor é favorecido pelo fator surpresa e dificuldade de identificar o agressor. A violência em via pública pode estar relacionada ao deslocamento para o local de trabalho, uma vez que 51,4% das mulheres do estudo informam estar empregadas, achado que vai ao encontro de pesquisa nacional 4141. Schraiber LB, D'Oliveira AFPL, França Junior I; Grupo de Estudos em População, Sexualidade e Aids. Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saúde Pública 2008; 42 Suppl 1:127-37. que registrou taxas mais elevadas de violência sexual contra mulheres trabalhadoras.
Neste trabalho, a violência tanto no domicílio quanto em via pública foi perpetrada por agressores que consumiram bebida alcoólica (53,8%), situação grave quando comparada com um estudo realizado em Sergipe 4343. Sousa LC, Machado LC, Miranda ACPT. Perfil sociodemográfico e epidemiológico das vítimas de violência sexual no Estado de Sergipe. Interfaces Científicas - Saúde e Ambiente 2013; 1:21-33., em que 25% dos agressores utilizaram esta substância. Segundo Barrett et al. 1515. Barrett BJ, Habibov N, Chernyak E. Factors affecting prevalence and extent of intimate partner violence in Ukraine: evidence from a nationally representative survey. Violence Against Women 2012; 18:1147-76., mulheres com parceiros frequentemente embriagados têm sete vezes mais chances de serem sexualmente agredidas, quando comparadas às que os parceiros não ingerem bebida alcoólica com frequência ao ponto de ficarem alcoolizados. A relação significativa encontrada de agressores que consumiram bebida alcoólica neste trabalho aponta para a necessidade de ampliação de políticas públicas intersetoriais.
É importante destacar que de acordo com as notificações, as violências sexuais resultaram em IST, visto que 59,9% das mulheres foram expostas por agressão com penetração vaginal e 21,2% tiveram exposição maior, por terem sofrido mais de um tipo de penetração. Esse tipo de agressão submete a mulher ao risco de IST, incluindo HIV e hepatite viral 44. Blake MT, Drezett J, Vertamatti MA, Adami F, Valenti VE, Paiva AC, et al. Characteristics of sexual violence against adolescent girls and adult women. BMC Womens Health 2014; 14:15..
As agressões impuseram consequências, como as ISTs que demandam tratamento longo e podem levar à morte. Um estudo em hospital de referência na Bahia para portadores de HIV/AIDS, que envolveu 194 pacientes, observou que 33,5% foram a óbito no período de janeiro a dezembro de 2008 por doenças oportunistas 4444. Amorim MAS, Miranda DB, Cabral RCS, Batista AVM. Perfil clínico-epidemiológico de pacientes com HIV/AIDS em hospital de referência da Bahia, Brasil. Rev Enferm UFPE on line 2011; 5:1475-82.. Drezett 4545. Drezett J. Violência sexual contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva. Revista de Psicologia da UNESP 2003; 2:36-50. verificou em serviço de referência para a violência sexual que cerca de 50% das mulheres agredidas sexualmente enfrentam alguma IST. Diante disso, ressalta-se a necessidade de acesso em tempo oportuno às medidas profiláticas e assistência adequada nos serviços de saúde, para a redução destes agravos à mulher.
A violência sexual com penetração vaginal é a mais praticada contra as mulheres segundo estudos nacional 44. Blake MT, Drezett J, Vertamatti MA, Adami F, Valenti VE, Paiva AC, et al. Characteristics of sexual violence against adolescent girls and adult women. BMC Womens Health 2014; 14:15. e internacional 55. Black MC, Basile KC, Breiding MJ, Ryan GW. Prevalence of sexual violence against women in 23 states and two U.S. territories, BRFSS 2005. Violence Against Women 2014; 20:485-99., expondo-as a infecções e à gravidez, que ocorrem de 0,5 a 5% dos casos 4646. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Percentual maior (8,5%) foi encontrado neste estudo para as adolescentes, o que caracteriza uma segunda forma de violência, pois o fato compromete a adolescência, afasta da escola, cria responsabilidade precoce e desestrutura a família produzindo marcas persistentes 4747. Machado CL, Fernandes AMS, Osis MJD, Makuch MY. Gravidez após violência sexual: vivências de mulheres em busca da interrupção legal. Cad Saúde Pública 2015; 31:345-53.. Essa gravidez, quase sempre rejeitada pela mulher, com frequência termina em aborto, que por desconhecimento ou falta de acesso é realizado em serviços clandestinos, expondo as mulheres a graves consequências, incluindo a morte 99. Mathias AK, Bedone A, Osis MJ, Fernandes AM. Perception of intimate partner violence among women seeking care in the primary healthcare network in São Paulo state, Brazil. Int J Gynaecol Obstet 2013; 121:214-7..
O cenário da violência sexual e consequências às mulheres acima de 20 anos trouxe, além da gravidez e IST, lesões físicas como contusões, cortes e traumatismo cranioencefálico. As notificações de violência sexual mostraram que 71% das mulheres sofreram lesões físicas em decorrência da agressão, demonstrando o uso da força física pelo agressor e/ou tentativa de defesa das vítimas. Contrariamente, um estudo em centro de referência para a violência sexual em São Paulo, estima que em torno de 10% das agressões resultam em lesões físicas extragenitais e 3% genitais 4545. Drezett J. Violência sexual contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva. Revista de Psicologia da UNESP 2003; 2:36-50., o que sugere pesquisas sobre os possíveis fatores que possam estar envolvidos entre a violência sexual e violência física nas mulheres no Estado de Santa Catarina.
As tentativas de suicídio como decorrentes da violência ocorreram mais entre mulheres com 20 anos e mais (2,4%), resultado semelhante ao de um estudo americano que encontrou associação significativa 3,64 maior para risco de ideação suicida nas mulheres que sofreram agressão sexual, entre 8.160 mulheres com idades acima de 18 anos 4848. Santaularia J, Johnson M, Hart L, Haskett L, Welsh E, Faseru B. Relationships between sexual violence and chronic disease: a cross-sectional study. BMC Public Health 2014; 14:1286.. Cabe destacar as oito mulheres que morreram em decorrência da violência sofrida, mostrando a situação apontada pelo mapa da violência de 4,5 mil mulheres assassinadas no Brasil no ano de 2011, e o crescimento de 17,2% de 2001 a 2011 do índice de homicídios de mulheres 4949. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2013: homicídios e juventude no Brasil. Rio de Janeiro: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; 2013.. Os homicídios na agressão sexual, considerados femicídios, são expressão máxima da violência contra a mulher 5050. Meneghel SN, Hirakata VN. Femicídios: homicídios femininos no Brasil. Rev Saúde Pública 2011; 45:564-74., uma violência de gênero contra a qual a sociedade precisa ser mobilizada.
Entre as limitações deste estudo, apontamos a influência da subnotificação por sistema de informação desatualizado, equipe de saúde não qualificada e não sensibilizada, dificuldade em lidar com os casos 2020. Veloso MMX, Magalhães CMC, Dell'Aglio DD, Cabral IR, Gomes MM. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:1263-72.,2626. Abath MB, Lima MLLT, Lima PS, Silva MCM, Lima MLC. Avaliação da completitude, da consistência e da duplicidade de registros de violências do Sinan em Recife, Pernambuco, 2009-2012. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:131-42., o que não invalida os achados, porém, exige cautela com os mesmos. Entre os pontos fortes deste trabalho está a relevância das informações sobre a violência sofrida por adolescentes e mulheres adultas, com base no SINAN de abrangência estadual, permitindo o reconhecimento das agressões, das características das vítimas e do perfil do agressor, estratificando-se as informações por faixa etária.
Este trabalho aponta as características da violência sexual baseando-se nas notificações realizadas pelos profissionais de saúde, demonstrando que esta violência ocorre em todas as faixas etárias, trazendo graves consequências, incluindo mortes. Portanto, diante das informações aqui levantadas e da relevância do tema, aponta-se que o mesmo ainda necessita ser objeto de novos estudos com vistas a subsidiar a implantação de políticas públicas de enfrentamento da violência sexual e suas consequências. Espera-se que as informações aqui veiculadas contribuam para a sensibilização de gestores, profissionais, acadêmicos e docentes da área da saúde para a importância da notificação como instrumento para o enfrentamento da violência sexual contra mulher.
Agradecimentos
Agradecemos ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva por possibilitar a realização do doutorado. À Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina por disponibilizar os dados que compuseram os resultados deste trabalho.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Jul 2017
Histórico
- Recebido
15 Jan 2016 - Revisado
23 Ago 2016 - Aceito
08 Set 2016