As sociedades latino-americanas são marcadas por profundas desigualdades socioeconômicas, originadas no período colonial e reiteradas pelos processos de modernização capitalista do século XX, cujas características principais foram a inserção periférica na economia mundial e a escassa redistribuição social. Ao longo daquele século, diversos países da América Latina conformaram sistemas de proteção social e de saúde vinculados aos mercados de trabalho formais, segmentados e excludentes da maior parte da população, em face da alta informalidade laboral 11. Mesa-Lago C. Reassembling social security: a survey of pensions and health care reforms in Latin America. New York: Oxford University Press; 2008.,22. Gough I, Wood G. Insecurity and welfare regimes in Asia, Africa and Latin America. Cambridge: Cambridge University Press; 2008..
As características histórico-estruturais dos países e de seus padrões de desenvolvimento influenciaram a trajetória e especificidades dos sistemas nacionais de proteção social. O Estado teve responsabilidades na reprodução de desigualdades, por meio de sistemas tributários regressivos e do caráter das políticas sociais, tendo em alguns países subsidiado a conformação de setores privados na prestação de serviços sociais, por exemplo, nas áreas de educação e saúde 33. Haggard S, Kaufman RR. Development, democracy, and welfare states: Latin America, East Asia, and Eastern Europe. Princeton: Princeton University Press; 2008.. Além disso, condicionantes conjunturais e políticos - ciclos econômicos, projetos de governos - influenciaram as políticas sociais em cada momento histórico. Por último, ressalte-se a importância das especificidades das distintas áreas da política social - como a da saúde - que têm singularidades nos processos históricos das sociedades, em face dos diferentes objetos de intervenção, trajetórias e agentes políticos envolvidos.
A partir das décadas de 1980/1990, os Estados latino-americanos passaram por transformações importantes, em meio a processos de liberalização econômica e de democratização de diferentes ritmos e intensidades, com implicações para as políticas sociais. Diversos países implantaram reformas em seus sistemas de saúde, com distintas orientações, dependendo das suas condições estruturais, institucionais e político-conjunturais.
Nos anos 2000, a eleição de governos de centro-esquerda em alguns países 44. Levitsky S, Roberts RM. The resurgence of the Latin American left. Baltimore: John Hopkins University Press; 2011. suscitou expectativas de transformações nos modelos de desenvolvimento com maior destaque para a questão social e incentivou o debate sobre as relações entre política, democracia e redistribuição. Houve na região experiências positivas da redução das desigualdades, associadas ao efeito redistributivo das políticas sociais e do aumento da renda dos trabalhadores 55. López-Calva LF, Lustig N. Declining inequality in Latin America. New York: Brookings Institution Press/United Nations Development Programme; 2010.,66. Blofield M. The great gap: inequality and the politics of redistribution in Latin America. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press; 2011.,77. Huber E, Stephens JD. Democracy and the left: social policy and inequality in Latin America. Chicago: University of Chicago Press; 2012..
Porém, em meados da década de 2010, evidencia-se uma nova inflexão em várias nações latino-americanas, cujo cenário passa a se caracterizar por instabilidade econômica e política, ascensão de governos de perfil neoliberal e neoconservador, ameaças à democracia e a direitos sociais duramente conquistados em anos anteriores.
Vivemos tempos difíceis, em que o neoliberalismo é uma das faces do capitalismo atual, caracterizado pela financeirização 88. Fine B, Saad-Filho A. Thirteen things you need to know about neoliberalism. Critical Sociology 2016; 1-22., e que a expectativa de contrabalançar os efeitos perversos dos mercados por meio do Estado Social e democrático está fragilizada. Neste contexto, a reflexão sobre o caráter e sentido das políticas sociais em países periféricos se faz ainda mais necessária.
Esse Suplemento de CSP reúne um conjunto de textos de autores de diferentes países que buscam explorar as expressões desses processos nos sistemas de saúde da América Latina, discutindo seus condicionantes nos contextos internacional e nacional, e procurando contribuir para identificação de semelhanças e diferenças entre os casos analisados. A publicação contou com o apoio do Programa de Apoio à Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Saúde Pública (Inova-Ensp), edital 2013.
A seção Perspectivas oferece uma análise do panorama da luta política na região acerca de distintos projetos para as políticas sociais e de saúde. No Espaço Temático, dois textos exploram os padrões de proteção social na América Latina e as dinâmicas das reformas recentes. Seguem-se na seção Ensaio estudos que enfocam a complexidade da interação dos planos internacional e nacional nas políticas de saúde: o primeiro sobre a cooperação Sul-Sul em saúde; e o segundo sobre a relação entre as dimensões globais e as dinâmicas nacionais na interação público-privada em saúde, sobretudo das denominadas parcerias público privadas.
A seção de Artigos se inicia com dois textos sobre temas estratégicos para os sistemas de saúde - a privatização da atenção à saúde e a organização da atenção primária em saúde - baseados em pesquisas que abrangeram diversos países da América do Sul. Um segundo grupo de quatro artigos apresenta estudos de caso sobre a trajetória das políticas de saúde na Colômbia, no México e no Brasil. Tais países se destacam não só pela sua importância em termos populacionais, territoriais e econômicos, como também pelas experiências de reforma dos sistemas de saúde nas últimas décadas, de distintos sentidos e temporalidade, que expressam os projetos políticos em disputa e as dificuldades estruturais a serem enfrentadas pelas nações latino-americanas.
Por fim, fascículo se encerra com uma entrevista com Asa Cristina Laurell. Reconhecida internacionalmente como uma das principais representantes do pensamento social em saúde na América Latina, a autora aborda os diferentes processos de reforma dos sistemas de saúde na região nas últimas décadas, seus principais condicionantes e atores envolvidos, bem como os desafios a serem enfrentados em múltiplos níveis para o fortalecimento do direito à saúde.
Assim, o fascículo temático visa contribuir para a compreensão dos elementos de identidade e as singularidades dos países da região, bem como para a reflexão sobre a complexidade dos desafios impostos à ampliação dos direitos sociais e à construção de sistemas de saúde mais abrangentes e igualitários na América Latina. Boa leitura!
- 1Mesa-Lago C. Reassembling social security: a survey of pensions and health care reforms in Latin America. New York: Oxford University Press; 2008.
- 2Gough I, Wood G. Insecurity and welfare regimes in Asia, Africa and Latin America. Cambridge: Cambridge University Press; 2008.
- 3Haggard S, Kaufman RR. Development, democracy, and welfare states: Latin America, East Asia, and Eastern Europe. Princeton: Princeton University Press; 2008.
- 4Levitsky S, Roberts RM. The resurgence of the Latin American left. Baltimore: John Hopkins University Press; 2011.
- 5López-Calva LF, Lustig N. Declining inequality in Latin America. New York: Brookings Institution Press/United Nations Development Programme; 2010.
- 6Blofield M. The great gap: inequality and the politics of redistribution in Latin America. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press; 2011.
- 7Huber E, Stephens JD. Democracy and the left: social policy and inequality in Latin America. Chicago: University of Chicago Press; 2012.
- 8Fine B, Saad-Filho A. Thirteen things you need to know about neoliberalism. Critical Sociology 2016; 1-22.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Jul 2017