O livro de Maria Regina Cotrim Guimarães constitui uma contribuição importante para se compreender o papel dos manuais de medicina popular na organização da medicina oficial no período imperial e no diálogo entre os saberes cientificos e os saberes populares de cura. A escolha da obra de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz se mostrou oportuna na medida em que a figura desse polonês que emigrou para o Brasil em 1840 expressa a ambivalência do processo de organização dos manuais médicos como dispositivos de popularização de saberes de cura com uma linguagem acessível à sociedade escravista.
O livro se oferece a duas leituras complementares. Há uma leitura mais direta relacionada com o papel dos manuais de cura produzidos no Brasil Imperial e que objetivavam ajudar a divulgação, no cotidiano das populações, de saberes e práticas oficiais sancionadas pelas instituições médicas. Há outra leitura do livro menos saliente, mas também muito relevante, que diz respeito à importância dos saberes e das práticas médicas na transformação da política de corpos da ordem escravista fundada no poder patriarcal e na experiência familiar oligárquica. Nesta segunda leitura, a nova política de corpos, de feitio liberal, aparece como necessária para disciplinar as populações locais de mestres e escravos na produção de uma nova realidade forjada pelo trabalho livre, mesmo que servil.
Na primeira leitura, o livro nos oferece informações valiosas sobre as fronteiras tênues entre a medicina oficial, que se supunha legitimada pela ciência, e as práticas terapêuticas populares que se reproduziam por gerações de pais, mães e tias, por crenças e rotinas familiares. O livro mostra com muita clareza que essas fronteiras eram na época muito sutis não sendo claros os lugares de enunciação do discurso “verdadeiro” sobre a saúde. Tais fronteiras continuam porosas ainda hoje quando se observam as relações entre as parteiras tradicionais e as parteiras diplomadas, ou entre os agentes de saúde e as benzedeiras populares. No contexto de sociedades colonais escravistas, a organização dos dispositivos de controle e de disciplinamento dos indivíduos se abre para racionalidades diversas entre o patriarcalismo escravista e o patriarcalismo moderno.
A segunda leitura que o livro de Maria Regina nos oferta tem a ver com os usos corporais. O livro nos exibe muitas imagens e informações interessantes para observar as contradições dos processos de constitução de dispositivos de biopolítica inspirados pelo liberalismo clássico e que visavam, em linhas gerais, disciplinar as populações mediante certas tecnologias de controle social. As normas sanitárias, a organização das estatísticas sobre nascimento e morbidade e os manuais de ajuda para saúde no cotidiano, por exemplo, apareciam como tecnologias importantes para se formar uma ordem política nacional e para organizar a classe trabalhadora nas cidades e nas áreas rurais. O projeto liberal de formação do estado nacional exigia que se organizassem as populações, e tal organização passava também pelo disciplinamento dos corpos, das emoções e dos hábitos de cuidar de si. O processo complexo de organização das práticas em saúde expressa as contradições históricas naquele século XIX entre o liberalismo político e econômico em expansão com base nas pressões externas voltadas à organização do estado nacional, por um lado, e às resistências internas ligadas à sociedade patriarcal e à ordem familiar escravocrata na organização do poder e da economia local, por outro.
Nessa linha de reflexão, os compêndios de medicina popular como os organizados por Pedro Luiz Napoleão Chernoviz aparecem como dispositivos ambivalentes à proporção que respondem a várias demandas simultâneas. Uma delas diz respeito ao fato de que tais manuais buscavam legitimar o conhecimento médico oficial - que era fundamental para moldar os corpos para o mundo do trabalho e da sociedade industrial pela valorização de saberes e práticas populares de cura, que constituíam a condição de acesso ao sagrado tradicional. Outra prova do caráter ambivalente desses manuais se revela pelo fato de que a conciliação entre saberes médicos oficiais e populares era a condição para a emergência de um novo fazer político entre o privado e o público. O tema da higiene é emblemático nesse sentido. Numa primeira interpretação, o higienismo tem a ver com a melhoria das condições de salubridade dos indivíduos para prevenção de doenças. Porém, em sentido mais institucional e jurídico, o higienismo foi fundamental para justificar a criação de uma série de tecnologias de controle das populações como os censos e as estatísticas para acompanhamento de variações das taxas de nascimento, morte, epidemias entre outras e para organizar políticas públicas de saneamento, de vacinas.
É interessante notar que numa ordem social doméstica pré-liberal como aquela as tentativas de organização de dispositivos normativos de cura passavam necessariamente pelos espaços das cozinhas, das salas e alcovas, que eram os lugares onde se formava a percepção coletiva do poder e da vida na ausência do que podemos chamar, na perspectiva liberal, de uma ordem pública aberta e simétrica. Por isso, os manuais de medicina popular caíam bem no ambiente caseiro e eram servidos nas conversas com parentes, amigos e vizinhos do mesmo modo que eram servidos os lanches de final de tarde ou as fantasias amorosas. Pelos manuais de medicina popular, os saberes médicos oficiais adentravam as casas grandes para aparecer como novidades que ajudavam a reproduzir as representações do trabalho e do cotidiano por ricos e por pobres. Esclarece a autora que esses manuais de medicina não desconheciam a ordem escravista, racialista e excludente e que seus autores tinha consciência de que “o bom funcionamento da produção agrícola era também, em última instância, reflexo da preservação da saúde e da cura das inúmeras doenças da população escravizada” (p. 23). Assim, os manuais são peças arqueológicas curiosas que refletem as adaptações “racionais” da ordem liberal científica moderna em expansão, no contexto de uma ordem familiar e doméstica escravista e colonial. Constata-se esse fato pela leitura de títulos como Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades dos Negros de 1839, assinado pelo dr. Jean-Baptiste Imbert, ou então O Médico e o Cirurgião da Roça, de 1857, de autoria do dr. Louis François Bonjean.
Também é importante destacar que a organização liberal dos dispositivos da biopolítica e de adestramento das tecnologias dos corpos e das mentes, o biopoder, apenas se tornou possível na ordem escravocrata e antiliberal em razão da presença dos especialistas e visitantes europeus. Por isso, muitos dos mais famosos organizadores de manuais de medicina popular eram estrangeiros como o próprio Chernoviz, polonês de origem, exilado na França onde fez seus estudos de medicina, tendo migrado para o Brasil em 1840, tornando-se membro da Academia Imperial de Medicina.
A transição da ordem escravista para a ordem liberal mercantil no século XIX se realizou pela produção de tecnologias de adestramento dos corpos e da reorganização das representações da vida e da morte. O livro nos convida a entender as particularidades de constituição dos cuidados dos corpos em sociedades como a brasileira, forjada no contexto da ordem pós-colonial, e que continuam a incidir sobre os modos de construção social da realidade.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Fev 2018