Resumo:
O objetivo deste estudo foi compreender como as mães interpretam e explicam a morte de seus filhos no período neonatal. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas com 15 mulheres residentes no Município de São Luís, Maranhão, Brasil, cujos recém-nascidos morreram no período de julho de 2012 a julho de 2014. A coleta de dados foi realizada entre 1º de abril e 29 de agosto de 2014. As entrevistas incluíram perguntas acerca do trabalho de parto, parto, nascimento e puerpério. Foi realizada análise de conteúdo na modalidade temática. A partir da fala das entrevistadas, foram evidenciadas fragilidades na rede de assistência. Para muitas, o atendimento recebido esteve relacionado a eventos que levaram à morte dos filhos. Foram identificados como núcleos de sentido a demora no atendimento e a negligência na maternidade, que evidenciaram um contexto de violência obstétrica sofrida pelas mulheres. Fica evidente a importância de criação de estratégias para promover e assegurar o cuidado humanizado no atendimento ao parto e nascimento. Deve-se buscar o fortalecimento de políticas públicas integralizadas que contemplem as demandas de atenção à saúde da mulher e da criança.
Palavras-chave:
Mortalidade Neonatal; Humanização da Assistência; Trabalho de Parto
Abstract:
The aim of this study was to learn how mothers interpret and explain the death of a newborn child. The study used a qualitative approach. We conducted semi-structured interviews with 15 women in São Luís, Maranhão State, Brazil, whose newborn infants died between July 2012 and July 2014. Data were collected from April 1st to August 29th, 2014. The interviews included questions on labor, delivery, birth, and postpartum. Thematic content analysis was performed. The mothers’ testimony evidenced weaknesses in the network of care. Many of the mothers linked the care they received to events leading to their infants’ death. Core meanings identified by the analysis included slow and negligent care in the maternity hospital, revealing a context of obstetric violence against the women. There is an evident need to create strategies to promote humane care during labor and childbirth, strengthening comprehensive and integrated public policies to meet the demands for care for pregnant women and their infants.
Keywords:
Neonatal Mortality; Humanization of Assistence; Obstetric Labor
Resumen:
El objetivo de este estudio fue comprender cómo interpretan y explican las madres la muerte de sus hijos durante el período neonatal. Se trata de una investigación con enfoque cualitativo. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas con 15 mujeres residentes en el municipio de São Luis, Maranhão, Brasil, cuyos recién nacidos murieron durante el período de julio de 2012 a julio de 2014. La recogida de datos se realizó entre el 1 de abril y el 29 de agosto de 2014. Las entrevistas incluyeron preguntas sobre el trabajo de parto, parto, nacimiento y puerperio. Se realizó un análisis de contenido en la modalidad temática. A partir de las intervenciones de las entrevistadas, se evidenciaron fragilidades en la red de asistencia. Para muchas, la atención recibida estuvo relacionada con eventos que llevaron a la muerte de sus hijos. Se identificaron como núcleos de sentido la tardanza en la atención y la negligencia en la maternidad, que evidenciaron un contexto de violencia obstétrica sufrida por las mujeres. Es evidente la importancia de crear estrategias para promover y asegurar el cuidado humanizado en la atención al parto y nacimiento. Se debe buscar el fortalecimiento de políticas públicas integradas que contemplen las demandas de atención a la salud de la mujer y del niño.
Palabras-clave:
Mortalidad Neonatal; Humanización de la Atención; Trabajo de Parto
Introdução
A mortalidade infantil é um problema de saúde pública mundial e um importante indicador dos níveis de desenvolvimento social e econômico da população, especialmente quanto ao seu componente neonatal, que concentra o maior número de óbitos. Esse componente é de difícil redução porque depende principalmente de ações dirigidas à qualificação da atenção prestada ao pré-natal, parto e ao recém-nascido 11. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.130, de 5 de agosto de 2015. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). Diário Oficial da União 2015; 6 ago.,22. Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.,33. Lorenzi DRS, Tanaka ACd'A, Bozzetti MC, Ribas FE, Weissheimer L. A natimortalidade como indicador de saúde perinatal. Cad Saúde Pública 2001; 17:141-6.,44. Gurgel RQ, Guimarães AMD, Dória MLD, Ribeiro ERO, Lima DDF, Bettiol H, et al. Características das gestações, partos e recém-nascidos da região metropolitana de Aracaju, Sergipe, Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant 2009; 9:167-77..
A mortalidade neonatal precoce (0 a 6 dias) tem sido o principal componente das mortes na infância no Brasil 22. Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.,55. França EB, Lansky S, Rego MAS, Malta DC, França JS, Teixeira R, et al. Principais causas da mortalidade na infância no Brasil, em 1990 e 2015: estimativas do estudo de Carga Global de Doença. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:46-60.. Em 2015, a mortalidade neonatal chegou a 55% dos óbitos de menores de cinco anos, sendo 41% nos primeiros seis dias de vida 55. França EB, Lansky S, Rego MAS, Malta DC, França JS, Teixeira R, et al. Principais causas da mortalidade na infância no Brasil, em 1990 e 2015: estimativas do estudo de Carga Global de Doença. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:46-60.. De acordo com Castro et al. 66. Castro ECM, Leite AJM, Guinsburg R. Mortalidade com 24 horas de vida de recém-nascidos pré-termo de muito baixo peso da Região Nordeste do Brasil. Rev Paul Pediatr 2016; 34:106-13. (p. 110), “quanto mais precoce o óbito do recém-nascido, mais ligado está às condições antenatais, ao periparto e ao parto propriamente dito”. Alguns dos aspectos que podem explicar tais dificuldades estão relacionados aos processos de trabalho no cuidado e na gestão desses serviços.
Segundo o relatório anual dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) 77. Objetivos de desenvolvimento do Milênio. Relatório nacional de acompanhamento. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014., as afecções perinatais respondiam por 59% do total de óbitos em menores de um ano no Brasil. As malformações congênitas foram responsáveis por 20% do total de óbitos nessa faixa etária. De acordo com Lansky et al. 88. Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt SDA, Carvalho ML, et al. Birth in Brazil survey: neonatal mortality, pregnancy and childbirth quality of care. Cad Saúde Pública 2014; 30 Suppl 1:S192-207., as taxas de mortalidade perinatais ainda são elevadas, e a maioria dos óbitos é considerada evitável e poderia ser prevenida com a melhoria da assistência, não apenas no que diz respeito à sua resolubilidade clínica, mas também à sua organização em sistemas hierarquizados e regionalizados, assegurando o acesso da gestante e do recém-nascido, em tempo oportuno, a serviços de qualidade.
Nas últimas décadas, muitos avanços tecnológicos têm sido empreendidos, visando a uma melhor assistência ao parto e puerpério, porém a redução da mortalidade perinatal ainda é um desafio e tem sido foco de muitas políticas de saúde no Brasil. O Ministério da Saúde vem enfrentando essa situação, sobretudo a partir de estratégias que articulam as coordenações de saúde da mulher, saúde da criança, atenção básica e Política Nacional de Humanização.
Dentre essas, destacam-se a Rede Cegonha, lançada em 2011, e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC), implementada em 2014. A Rede Cegonha é uma estratégia para o enfrentamento da mortalidade materna e neonatal, da violência obstétrica e da baixa qualidade da rede de atenção ao parto e nascimento, desenvolvendo ações para ampliação e qualificação do acesso ao planejamento reprodutivo, pré-natal, parto e puerpério. A Rede Cegonha também visa a garantir às crianças o nascimento seguro e o desenvolvimento e crescimento saudáveis com o objetivo de qualificar a atenção à mulher e à criança 99. Ministério da Saúde. Manual prático para implementação da Rede Cegonha. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. A PNAISC, por sua vez, é um conjunto de ações programáticas e estratégicas que visam a garantir o pleno desenvolvimento da criança em todas as etapas do ciclo de vida. Um dos eixos em que se estrutura refere-se à atenção humanizada e qualificada à gestação, ao parto, ao nascimento e ao recém-nascido 11. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.130, de 5 de agosto de 2015. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). Diário Oficial da União 2015; 6 ago..
Essas iniciativas provocam a necessidade de mudanças no modelo de atenção à saúde das mulheres e das crianças, reconhecendo a importância dos dispositivos relacionais em suas dimensões ética, interativa e comunicacional, e não somente do saber técnico-científico 1010. Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor saúde. Interface Comun Saúde Educ 2000; 4:109-16..
Como parte fundamental dessa mudança no modelo, destaca-se a necessidade de repensar o processo de trabalho dos profissionais, que, muitas vezes, é atravessado por violência institucional, exercida por ação ou omissão, envolvendo os abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre usuários e profissionais dentro das instituições.
As violências cometidas especificamente contra as mulheres usuárias de serviços de saúde foram classificadas por d’Oliveira et al. 1111. d'Oliveira AFPL, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet 2002; 359:1681-5. em quatro tipos: negligência, violência verbal, violência física e violência sexual. A negligência é a omissão dos profissionais para com as parturientes. A violência verbal refere-se ao tratamento rude, ameaças, gritos, repreensão, humilhação e abuso verbal. Já a violência física diz respeito a agressões, procedimentos violentos e sem consentimento, e a violência sexual é caracterizada pelo estupro ou abuso sexual.
Quando ocorridas especificamente na assistência à gravidez, ao parto, ao pós-parto e ao abortamento, essas situações têm sido descritas, no Brasil e em outros países da América Latina, como “violência obstétrica” 1212. Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25:377-82., configurando-se como uma dimensão da violência institucional 1313. Mariani A, Nascimento-Neto J. Violência obstétrica como violência de gênero e violência institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. Cadernos da Escola de Direito 2016; 2:48-60., reconhecida como questão de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 1212. Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25:377-82..
Em estudo de base populacional no Brasil, cerca de um quarto das mulheres relatou alguma forma de violência na assistência ao parto 1414. Venturi G, Godinho T. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2013.. Uma revisão sistemática sobre a violência obstétrica no Brasil 1515. Santos RCS, Souza NF. Violência institucional obstétrica no Brasil: revisão sistemática. Estação Científica (UNIFAP) 2015; 5:57-68. identificou que ela é praticada por médicos e profissionais da enfermagem, em especial, na forma de negligência, violência verbal e violência física, o que reforça a importância desse tema no cenário brasileiro.
Situações de violência obstétrica comprometem a qualidade da assistência à mulher e ao recém-nascido. Em pesquisas que avaliaram a perspectiva de mães sobre o óbito infantil, foram evidenciadas dificuldades de acesso aos serviços, problemas na relação com os profissionais de saúde, desrespeito à subjetividade das entrevistadas, descontinuidade entre o pré-natal e o parto e peregrinação 1616. Goulart LMHF, Somarriba MG, Xavier CC. A perspectiva das mães sobre o óbito infantil: uma investigação além dos números. Cad Saúde Pública 2005; 21:715-23.. Problemas relacionados à estrutura dos serviços de saúde e ao atendimento do profissional foram atribuídos como possíveis causas dos óbitos infantis. Além disso, o desconhecimento e/ou a desvalorização da percepção materna sobre a doença do filho podem também ter influência sobre o óbito 1717. Hadad S, França E, Uchôa E. Preventable infant mortality and quality of health care: maternal perception of the child's illness and treatment. Cad Saúde Pública 2002; 18:1519-27..
Esta pesquisa buscou compreender como as mães interpretam e explicam a morte de seus filhos no período neonatal.
Métodos
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada no Município de São Luís, Maranhão, Brasil, com mulheres que perderam o filho no período neonatal entre os meses de julho de 2012 e julho de 2014, identificadas no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) a partir das Declarações de Óbito (DO), no período de 1º de abril a 30 de maio de 2014.
Foram encontradas 410 DO. Os critérios de inclusão foram relativos aos dados maternos: ser residente do Município de São Luís, ter gestação igual ou superior a 32 semanas, ser mãe de recém-nascidos com peso de nascimento igual ou superior a 2.500 gramas. Foram identificadas 55 DO. Dessas, nove estavam sem endereço e foram excluídas. A partir dos endereços, foram identificados os Distritos Sanitários de Saúde da residência e a cobertura pela Estratégia Saúde da Família (ESF), sendo que 15 eram de áreas sem cobertura, ficando a amostra inicial de 31 mulheres. Foi realizado contato com os agentes comunitários de saúde para localização do domicílio e solicitação de autorização para visita dos pesquisadores. Das 31 mulheres, 15 aceitaram participar da pesquisa.
Os dados sociodemográficos foram extraídos das DO, e o diagnóstico de morte evitável foi obtido na ficha de investigação do óbito infantil e fetal no Núcleo de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde, a partir da lista de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde (SUS) 1818. Malta DC, Duarte EC, Almeida MF, Dias MAS, Morais Neto OL, Moura L, et al. Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiol Serv Saúde 2007; 16:233-44..
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas no domicílio, em datas e horários decididos pelas entrevistadas, no período de 2 de junho a 29 de agosto de 2014. Foi utilizado como instrumento um roteiro com perguntas abertas sobre gravidez, pré-natal, parto, percepção dos fenômenos que envolveram o adoecimento e a morte do filho. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas, perfazendo um total de 107 páginas.
Foi realizada análise de conteúdo na modalidade temática de acordo com os seguintes passos: pré-análise (transcrição das entrevistas, leitura exaustiva, flutuante e interrogativa do material, apreensão das ideias centrais e determinação da unidade de registro e unidade de contexto), categorização e exploração (apreensão do núcleo de compreensão do texto, busca de expressões ou palavras significativas, em torno das quais as falas se organizavam) e interpretação 1919. Bardin L. Análise de conteúdo. 5ª Ed. Lisboa: Edições 70; 2011..
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, segundo protocolo 566.334, e seguiu as normas da Resolução nº 466/2012. As identidades das mulheres foram mantidas no anonimato, e seus nomes foram substituídos por nomes de mulheres conhecidas nacional e/ou internacionalmente, que perderam seus filhos ou que lutaram de alguma forma pelos direitos de mulheres e crianças.
Resultados e discussão
Foram entrevistadas 15 mulheres distribuídas nos sete Distritos Sanitários de Saúde do Município de São Luís, com idade entre 20 e 32 anos, a maioria de cor parda, com baixa escolaridade e de religião católica. No que se refere à ocupação, seis eram donas de casa, uma estudante e oito tinham trabalho remunerado. Quanto ao óbito, sete ocorreram no primeiro dia de vida, sendo três na sala de parto. Outros quatro óbitos ocorreram entre um e sete dias, e os outros quatro aconteceram a partir do oitavo dia. De acordo com os registros das DO, cinco ocorreram por sepse, três por malformações, três por causas respiratórias, dois por hipoxemia, um por causas cardíacas e um por outras afecções perinatais. Quatro crianças receberam alta e foram reinternadas. Todos os óbitos ocorreram em maternidades ou hospitais de referência do SUS.
As 15 mulheres entrevistadas, mesmo quando reconheciam que seu filho tinha alguma doença diagnosticada, referiam que a morte poderia ter sido evitada. Dentre elas, dez associaram o óbito a questões relacionadas ao cuidado prestado no início do trabalho de parto. A investigação das DO mostrou que 13 das 15 mortes eram evitáveis. Lansky et al. 2020. Lansky S, França E, Carmo Leal M. Mortalidade perinatal e evitabilidade: revisão da literatura. Rev Saúde Pública 2002; 36:759-72., em estudo realizado em Belo Horizonte (Minas Gerais), demonstraram que 40% dos óbitos perinatais e 60% dos óbitos neonatais poderiam ter sido evitados com uma melhor assistência à gestante e à criança. Resultados semelhantes foram apresentados no estudo de Gonçalves et al. 2121. Gonçalves AC, Costa MCN, Barreto FR, Paim JS, Nascimento EMR, Paixão ES, et al. Neonatal mortality trends in the city of Salvador (Bahia-Brazil), 1996-2012. Rev Bras Saúde Matern Infant 2015; 15:337-47., realizado na cidade de Salvador (Bahia), em que 79,1% dos óbitos neonatais foram devidos a causas claramente evitáveis, das quais 89,4% seriam reduzíveis por adequada atenção à gestação, ao parto e ao recém-nascido.
Na busca da compreensão sobre como as mulheres entrevistadas interpretaram e explicaram a morte de seus filhos, foram identificados os seguintes núcleos de sentido: “demora no atendimento” e “negligência na maternidade”, que evidenciaram um contexto de violência obstétrica sofrida pelas mulheres nas maternidades.
Do trabalho de parto à maternidade: a demora no atendimento
Um dos fatores destacados pelas mulheres como causa mais importante da morte do filho foi a demora no atendimento em diversos momentos da assistência, com destaque para a peregrinação até conseguir vaga, como observado nas falas a seguir.
“Me mandaram pra uma maternidade, na hora fui pra outra, fiquei andando pra lá e pra cá” (Cissa).
“Mandaram eu ir pra unidade mais próxima, que era mais rápido. Eu perdendo líquido, a bolsa estourada (...). E a dor aumentando demais. Chegando lá, não tinha leito pra eu ficar” (Tássia).
“Fomos na primeira maternidade. Quando chegamos lá fomos mal atendidos, nós nem entramos porque lá não tinha leito. Fomos pra outra maternidade, também não tinha leito, aí foi quando nós fomos em outra maternidade (...) Aí eu subi” (Carlota).
Nenhuma das entrevistadas conhecia a maternidade de referência para o seu parto. Um dos objetivos da Rede Cegonha é estabelecer, desde o pré-natal, um vínculo entre a gestante e a maternidade de referência, que deve ter sempre uma vaga disponível para as gestantes vinculadas 99. Ministério da Saúde. Manual prático para implementação da Rede Cegonha. Brasília: Ministério da Saúde; 2011., já que a peregrinação para o parto está fortemente associada ao óbito neonatal 88. Lansky S, Friche AAL, Silva AAM, Campos D, Bittencourt SDA, Carvalho ML, et al. Birth in Brazil survey: neonatal mortality, pregnancy and childbirth quality of care. Cad Saúde Pública 2014; 30 Suppl 1:S192-207. e materno, pelo fato de a assistência ao parto ser prestada tardiamente. Além disso, a descontinuidade da assistência iniciada no pré-natal é motivo de medo, insegurança e ansiedade para as parturientes 1616. Goulart LMHF, Somarriba MG, Xavier CC. A perspectiva das mães sobre o óbito infantil: uma investigação além dos números. Cad Saúde Pública 2005; 21:715-23..
A peregrinação ocorre também em função da orientação inadequada que as gestantes recebem no pré-natal sobre o processo de trabalho de parto ativo. Somado a isso, algumas maternidades só admitem as gestantes quando chegam em período expulsivo e, consequentemente, muitas acabam voltando para casa e retornam à maternidade em outro momento. Assim, orientação adequada, fácil acesso aos serviços de saúde e melhor articulação em rede são necessários, sendo imprescindível a existência de um sistema de transporte e comunicação entre as unidades, evitando o sofrimento e a angústia das gestantes 2222. Cunha SF, D'Eça Júnior A, Rios CTF, Pestana AL, Mochel EG, Paiva SS. Peregrinação no anteparto em São Luís-Maranhão. Cogitare Enferm 2010; 15:441-7..
A peregrinação em busca de uma maternidade tem sido considerada como violência obstétrica, já que está diretamente associada à negação dos direitos da mulher e resulta da precariedade do sistema de saúde, que restringe consideravelmente o acesso aos serviços oferecidos. Isso faz com que muitas mulheres em trabalho de parto vivenciem uma verdadeira jornada em busca de uma vaga na rede pública hospitalar, situação que traz sérios riscos para suas vidas e as de seus filhos 2323. Rodrigues DP, Alves VH, Penna LHG, Pereira AV, Branco MBLR, Silva LA. The pilgrimage in reproductive period: a violence in the field of obstetrics. Esc Anna Nery Rev Enferm 2015; 19:614-20..
Negligência na maternidade
Outra explicação apresentada pelas mulheres como causa da morte do filho foi a negligência por parte dos profissionais que as atenderam na maternidade. Essa negligência foi relatada a partir de duas dimensões da atenção, que se distinguem, mas não se separam: a prática técnico-assistencial equivocada ou insuficiente e a competência relacional de profissionais durante o atendimento, que inclui a violência verbal, mas que não se restringe a ela.
A primeira dimensão inclui questões como demora, falha ou inadequação na tomada de decisões por parte da equipe e negligência no tratamento medicamentoso, como pode ser visto nos relatos abaixo:
“Depois daquelas contrações eu já pressenti, senti que já tinha passado a hora da minha filha nascer, e logo quando eu tocava nela eu não sentia mais ela mexer. Fiquei, fiquei, fiquei, fiquei e depois de muito tempo me levaram pra uma sala de parto” (Anita).
“Na minha opinião foi questão do atendimento na maternidade. Falha lá na hora do parto, ou na hora da alta que não observaram que ela não tava bem (...) Ninguém chegava, até depois do parto ninguém, nenhuma médica foi me examinar, nem a mim, nem ao bebê no dia da alta” (Carlota).
“O médico matou. Tenho certeza. Porque até o momento, era pra essa criança ter nascido de uma cesária. Pelo menos tido um corte pra ele ter descido (...) O atendimento lá não foi nada bom” (Debora).
“Eu acho que foi negligência médica!” (Lucinha).
“O atendimento que me deram naquele hospital foi péssimo, e justamente por causa disso, aconteceu o que aconteceu né, eu ter perdido a minha filha...” (Anita).
“Acho que houve um pouco de negligência deles porque eles pediram o medicamento. Já que lá não tinha, eles deram a guia pra comprar. A gente comprou. Mas só que eles não administraram” (Cora).
Questões semelhantes foram encontradas em Belo Horizonte, em estudo sobre o óbito infantil na perspectiva das mães 1616. Goulart LMHF, Somarriba MG, Xavier CC. A perspectiva das mães sobre o óbito infantil: uma investigação além dos números. Cad Saúde Pública 2005; 21:715-23.. Essas mulheres relataram a má qualidade da assistência como causa importante do óbito, e atribuíram a morte dos filhos a negligência, falta de atenção, não valorização da queixa, displicência e demora na realização das intervenções. Relataram também precariedade dos serviços de saúde, tanto pelos leitos insuficientes quanto pela baixa qualidade de equipamentos e do serviço prestado. Cabe destacar que, conforme referido anteriormente, segundo a investigação dos óbitos, 13 dos 15 óbitos foram considerados evitáveis.
Para seis entrevistadas, houve demora na decisão dos profissionais na indicação de uma cesariana que elas consideravam necessária, e atribuíram a essa demora uma possível causa de morte dos seus filhos. Dentre elas, quatro associaram a possível realização da cesariana a uma melhor assistência, e achavam que a cirurgia poderia ter salvado seus filhos. Ficou evidente, em algumas entrevistas, a valorização da cirurgia cesariana.
De fato, as cesarianas podem salvar vidas em situações específicas e com indicações precisas. A partir dos relatos, não se pode fazer uma avaliação sobre a pertinência ou não dessas indicações. Além disso, sabe-se que, no panorama atual, o imaginário social sobre cesariana faz com que esse tipo de parto seja considerado como aquele que traz menor sofrimento 2424. Griboski RA, Guilhem D. Mulheres e profissionais de saúde: o imaginário cultural na humanização ao parto e nascimento. Texto Contexto Enferm 2006; 15:107-14., por ter sido introjetado culturalmente um modelo de assistência que é oferecido de forma hegemônica 2525. Lothian J. Birth plans: the good, the bad, and the future. J Obstet Gynecol Neonatal Nurs 2006; 35:295-303.,2626. Lothian J. Listening to mothers: the First National U.S. Survey of Women's Childbearing Experiences. J Perinat Educ 2003; 12:vi-viii..
Independente do fato de haver ou não indicação da cesariana, foi observado que houve falha na forma de comunicação das condutas por parte dos profissionais. As falhas de comunicação podem ter ocorrido pela não compreensão do que foi dito pelos profissionais às mulheres, pela não inclusão das mulheres nas conversas entre profissionais, muitas vezes realizadas na beira do leito e sem explicações adequadas, e ainda por conta de conversas e decisões paralelas entre os profissionais 2727. Queiroz MVO, Jorge MSB, Marques JF, Cavalcante AM, Moreira KAP. Indicadores de qualidade da assistência ao nascimento baseados na satisfação de puérperas. Texto Contexto Enferm 2007; 16:479-87..
Outra questão evidenciada pelas entrevistadas foi a sensação de que havia algo de errado com o bebê, e o fato de que essa percepção não foi valorizada pelos profissionais.
“Aí a pediatra foi dar alta e eu perguntei pra ela de novo: ‘será que meu filho tá bem?’. Ela disse: ‘por que, mamãe?’. Porque ele não tá respirando direito, ele tá sempre respirando cansadinho, acelerado. Ela disse: ‘não, mamãe, tá tudo bem com ele, o coraçãozinho dele tá bem, o exame de sangue tá bem, não tem nada... Tá tudo normal’. Aí eu disse: ‘senhora, o meu filho não tá bem’. Sempre dizendo que ele não tá bem e eles dizendo que tava” (Tassia).
Em estudo sobre mortes infantis pós-neonatais evitáveis em Belo Horizonte, Hadad et al. 1717. Hadad S, França E, Uchôa E. Preventable infant mortality and quality of health care: maternal perception of the child's illness and treatment. Cad Saúde Pública 2002; 18:1519-27. mostraram, com base nos depoimentos das mães, que a não valorização da percepção materna da doença da criança por parte dos profissionais de saúde e a insuficiente comunicação com a família tiveram influência sobre o óbito.
Essas questões se articulam ao segundo aspecto, que diz respeito à falta de competência relacional dos profissionais durante o atendimento. Algumas falas destacam experiências de descaso e também de violência verbal e física:
“Passava na mão de um médico e ia pra mão de outro. Médico olhava e não tava nem aí...” (Elza).
“Todo mundo sumiu. Eu olhava para um lado e pro outro e não olhava mais ninguém” (Anita).
“O que me revoltava era eles ali conversando (...) Aí quando veio a decisão. A diretora veio e disse “ó mãe, o teu filho vai nascer de normal! Não tem nada que impeça não. Nós já entramos em reunião, a gente se reuniu e seu filho vai nascer normal. Então a senhora que se conforme com isso aí porque seu filho vai nascer normal” (Èdith).
“Na hora do parto piorou a situação. Porque veio (...) Acho que uns oito enfermeiros, não sei se era enfermeiro. Veio oito pessoas fora o médico. Aí um segurou, uns seguraram minhas pernas, que eu não tinha mais força (...) Eles fizeram a criança nascer. (...) E o médico puxando a criança (...) O médico meteu a mão dentro de mim, eu não tive um corte sequer. Ele meteu a mão dentro de mim e puxou a criança. Quando a criança ia saindo ele torceu o pescoço da criança, entendeu? Aí eu sei que (...) Não teve choro” (Débora).
As falas acima relatam tanto a sensação de não estarem sendo acompanhadas, quanto maus tratos sofridos na relação com alguns profissionais da equipe de saúde, que lhes dirigiam palavras grosseiras e de desvalorização, em situações de explícita violência verbal ou física.
Para Goulart et al. 1616. Goulart LMHF, Somarriba MG, Xavier CC. A perspectiva das mães sobre o óbito infantil: uma investigação além dos números. Cad Saúde Pública 2005; 21:715-23., o sentimento de medo, desamparo e solidão, que normalmente acompanha as mulheres nos momentos que antecedem o parto, é agravado pelas rotinas hospitalares burocratizadas, que têm como diretriz a automatização do trabalho, e não o bem-estar da díade mãe-filho. Para esses autores, a relação com os profissionais de saúde foi marcada pela falta de comunicação e exclusão da subjetividade das mulheres 2828. Aguiar JM, d'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2013; 29:2287-96..
Os relatos das entrevistadas evidenciam o abuso de poder nos centros obstétricos e como as mulheres são tomadas como objetos de intervenção, e não como sujeitos ativos e protagonistas nas decisões do processo de parto e nascimento.
O sofrimento das mulheres com a assistência ao parto tem registros em diferentes momentos históricos, ainda que sob denominações diversas 1919. Bardin L. Análise de conteúdo. 5ª Ed. Lisboa: Edições 70; 2011.,2929. Tesser CD, Knobel R, Andrezzo HFA, Diniz SG. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10:1-12.. Segundo Diniz et al. 1212. Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25:377-82., no Brasil, ainda que já comparecesse na pauta feminista e mesmo na de políticas públicas na década de 1980, o tema foi sendo relativamente negligenciado 1212. Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25:377-82.. É nesse século que essa questão ganha visibilidade, a partir de estudos que têm demonstrado como são frequentes as atitudes discriminatórias e desumanas na assistência ao parto, nos setores privado e público no Brasil 1212. Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25:377-82.,1414. Venturi G, Godinho T. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2013.,2828. Aguiar JM, d'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2013; 29:2287-96.,3030. Gomes AMA, Nations MK, Luz MT. Pisada como pano de chão: experiência de violência hospitalar no Nordeste brasileiro. Saúde Soc 2008; 17:61-72.,3131. Diniz CSG, Chacham AS. O "corte por cima" e o "corte por baixo": o abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo. Questões de Saúde Reprodutiva 2006; 1:80-91.,3232. McCallum C, Reis AP. Re-significando a dor e superando a solidão: experiências do parto entre adolescentes de classes populares atendidas em uma maternidade pública de Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saúde Pública 2006; 22:1483-91.,3333. Menezes DCS, Leite IC, Schramm JMA, Leal MC. Avaliação da peregrinação anteparto numa amostra de puérperas no Município do Rio de Janeiro, Brasil, 1999/2001. Cad Saúde Pública 2006; 22:553-9..
Aguiar et al. 2828. Aguiar JM, d'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2013; 29:2287-96. entrevistaram profissionais acerca da violência institucional em maternidades e, ainda que muitos tenham reconhecido o tratamento grosseiro e desrespeitoso com as mulheres, os relatos mostraram uma banalização destes atos, sendo encarados inclusive como “brincadeiras”. Também foi relatado pelos profissionais que condutas violentas, como uso de jargões pejorativos, ameaças e reprimendas às parturientes, são comuns e consideradas como formas de utilizar sua autoridade para manejar situações corriqueiras do serviço.
A banalização da violência contra as usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero presentes na formação dos profissionais de saúde e na organização dos serviços, sendo incorporadas nos processos de trabalho, sem estranhamento por parte dos profissionais 1212. Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, et al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25:377-82.. Para Mariani & Nascimento-Neto 1313. Mariani A, Nascimento-Neto J. Violência obstétrica como violência de gênero e violência institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. Cadernos da Escola de Direito 2016; 2:48-60., a violência obstétrica se configura como uma dimensão da violência institucional, mas também de gênero, destacando que gênero não regula apenas a relação entre homens e mulheres. Embora haja uma construção histórica da relação de poder do homem (médico) no início da hospitalização do parto e nascimento sobre a mulher (parturiente) 3434. Barboza L, Mota A. Violência obstétrica: vivências de sofrimento entre gestantes do Brasil. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde 2016; 5:119-29.,3535. Wolff LR, Waldow VR. Violência consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde Soc 2008; 17:138-51. no ambiente de assistência ao parto e nascimento, hoje muitos profissionais são mulheres. Muitas vezes, essas profissionais também reproduzem a violência de gênero contra outras mulheres.
Isso evidencia a existência de uma hierarquia sexual, de modo que, quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela 3636. Rego S, Gomes AP, Siqueira-Batista R. Bioética e humanização como temas transversais na formação médica. Rev Bras Educ Méd 2008; 32:482-91.. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, profissionais do sexo, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro.
Esse fenômeno é perpetuado por um conjunto de fatores que compreende o processo de socialização dos profissionais de saúde, seja na sua formação e treinamento profissional, seja durante sua atuação em serviços de atenção ao parto e, ainda, pela violência estrutural presente em nossa sociedade 1111. d'Oliveira AFPL, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet 2002; 359:1681-5.. A violência institucional em maternidades públicas tem sido apontada em alguns estudos como resultado da falta de investimentos no setor 2828. Aguiar JM, d'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2013; 29:2287-96. e da precariedade do sistema de saúde 3333. Menezes DCS, Leite IC, Schramm JMA, Leal MC. Avaliação da peregrinação anteparto numa amostra de puérperas no Município do Rio de Janeiro, Brasil, 1999/2001. Cad Saúde Pública 2006; 22:553-9..
O parto é um evento de extrema vulnerabilidade emocional, e a negligência propicia condições para possíveis complicações obstétricas, o que evidencia a importância de um cuidado de qualidade, evitando complicações e mortes. Os sentimentos de ansiedade e medo observados durante o trabalho de parto dificultam a participação ativa da parturiente. Uma assistência acolhedora por parte de familiares e profissionais contribui para aliviar as expectativas negativas e estimula o protagonismo do parto 3737. Santos J, Tambellini C, Oliveira S. Presença do acompanhante durante o processo de parturição: uma reflexão. REME Rev Min Enferm 2011; 15:453-8.,3838. World Health Organization. The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based childbirth: WHO statement. Geneva: World Health Organization; 2014.. É fundamental uma boa comunicação com as gestantes durante o trabalho de parto, com a realização de orientações a cada procedimento, valorizando a participação ativa das parturientes e respeitando o seu momento de dor 99. Ministério da Saúde. Manual prático para implementação da Rede Cegonha. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.,3535. Wolff LR, Waldow VR. Violência consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde Soc 2008; 17:138-51.,3939. World Health Organization. Intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization; 2018..
Diversos autores 1111. d'Oliveira AFPL, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet 2002; 359:1681-5.,3939. World Health Organization. Intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization; 2018.,4040. Malheiros PA, Alves VH, Rangel TSA, Vargens OMC. Parto e nascimento: saberes e práticas humanizadas. Texto Contexto Enferm 2012; 21:329-37.,4141. Nagahama EEI, Santiago SM. Práticas de atenção ao parto e os desafios para humanização do cuidado em dois hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde em município da Região Sul do Brasil. Cad Saúde Pública 2008; 24:1859-68.,4242. Souza G, Gaíva M, Modes A. A humanização do nascimento: percepção dos profissionais de saúde que atuam na atenção ao parto. Rev Gaúcha Enferm 2011; 32:479-86. destacam a formação profissional pautada no modelo biomédico e o consequente despreparo e desqualificação das equipes como um dos principais obstáculos para a prática da humanização no parto e nascimento. Consideram que se trate de problema de grande repercussão sobre a saúde de mães e recém-nascidos 1111. d'Oliveira AFPL, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet 2002; 359:1681-5.,4040. Malheiros PA, Alves VH, Rangel TSA, Vargens OMC. Parto e nascimento: saberes e práticas humanizadas. Texto Contexto Enferm 2012; 21:329-37.. Outra dimensão da mesma questão diz respeito à enorme resistência, principalmente por parte de profissionais médicos e suas entidades, devido ao deslocamento de poder que promovem e pela revisão de práticas que implicam 2929. Tesser CD, Knobel R, Andrezzo HFA, Diniz SG. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10:1-12..
Para Wolff & Waldow 3535. Wolff LR, Waldow VR. Violência consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde Soc 2008; 17:138-51., apesar dos esforços em torno da humanização, persiste uma assistência em que prevalece o abuso de poder e a violência contra as parturientes. As autoras chamam a atenção para a violência física e psicológica: manipulações vaginais desnecessárias, realizadas em demasia por inúmeras pessoas, desconfortáveis e, às vezes, dolorosas e constrangedoras. Andrade et al. 4343. Andrade PON, Silva JQP, Diniz CMM, Caminha MFC. Factors associated with obstetric abuse in vaginal birth care at a high-complexity maternity unit in Recife, Pernambuco. Rev Bras Saúde Matern Infant 2016; 16:29-37., em pesquisa envolvendo 603 mulheres que tiveram parto normal em maternidade de alta complexidade, corroboram esses resultados, afirmando que 87% das pacientes sofreram algum tipo de violência durante o trabalho de parto e parto, considerando o uso de intervenções desnecessárias.
A violência institucionalizada nos serviços de saúde, expressa na relação desigual entre profissionais e mães, também foi observada no estudo de Goulart et al. 1616. Goulart LMHF, Somarriba MG, Xavier CC. A perspectiva das mães sobre o óbito infantil: uma investigação além dos números. Cad Saúde Pública 2005; 21:715-23., que investigou a morte infantil sob a perspectiva das mães. Segundo os autores, nas diversas histórias e percursos que terminaram com o óbito da criança, a relação com os profissionais da saúde foi marcada pela falta de comunicação, que aumentou ainda mais o sofrimento dessas mulheres.
Em pesquisa realizada em São Paulo, foi observado que as mulheres perceberam a negligência médica como um tipo de mau atendimento, descrito das seguintes formas: falta de manejo da dor no parto (antes, durante e depois), ocorrência de complicações que ameacem a integridade física tanto da mulher quanto do bebê, exposição desnecessária da intimidade da paciente, dificuldades na comunicação, realização de procedimento ou exame sem consentimento ou de forma não respeitosa, discriminação por condição social ou cor, e, sobretudo, por tratamento grosseiro marcado pela impaciência ou indiferença dos profissionais, e por falas de cunho moralista e desrespeitoso 4444. Aguiar JM, d'Oliveira AFPL. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface Comun Saúde Educ 2011; 15:79-92.. O trabalho de Aguiar et al. 2828. Aguiar JM, d'Oliveira AFPL, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2013; 29:2287-96. indica que os relatos dos profissionais terminam por justificar e naturalizar a violência, contribuindo para a discriminação das mulheres e para a banalização do modo como são tratadas. Essa naturalização acaba se dando por quem a pratica, mas muitas vezes também por quem a sofre e por quem a testemunha.
Para Silva et al. 4545. Silva ALA, Mendes ACG, Miranda GMD, Souza WV. A qualidade do atendimento ao parto na rede pública hospitalar em uma capital brasileira: a satisfação das gestantes. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00175116., é evidente a necessidade de reorganização da política de assistência obstétrica com a consolidação das redes de atenção. O maior desafio parece ser justamente a inclusão de boas práticas que respeitem e dignifiquem a mulher e que superem a tecnocracia, restituindo o sentido social ao parto e nascimento, como um evento familiar, incorporando ações que considerem as mulheres e suas singularidades 4646. Pasche DF, Vilela MEDA, Martins CP. Humanização da atenção ao parto e nascimento no Brasil: pressupostos para uma nova ética na gestão e no cuidado. Tempus (Brasília) 2010; 4:105-17.,4747. Modes PSSA, Gaíva MAM, Patricio LFO. Assistência ao recém-nascido no nascimento: a caminho da humanização? - pesquisa qualitativa. Online Braz J Nurs (Online) 2010; 9(1). http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/rt/printerFriendly/j.1676-4285.2010.2715/598.
http://www.objnursing.uff.br/index.php/n... . Em recente diretriz 3939. World Health Organization. Intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization; 2018., a OMS recomenda um modelo de cuidado intraparto que leve em conta a complexidade e a diversidade desse momento, com uma abordagem mais humana.
Esta pesquisa permitiu que as mulheres relatassem suas experiências e, para muitas, essa foi a única oportunidade de falar sobre a perda do filho e as situações que a ela se associaram no contexto da atenção à saúde. Apesar disso, destacamos como principais limitações do estudo o tempo entre o óbito e a realização das entrevistas, além da dificuldade de garantir privacidade no domicílio, fazendo com que algumas entrevistas fossem interrompidas por familiares ou conhecidos, necessitando serem retomadas posteriormente.
Conclusões
Esta pesquisa deu voz às mulheres e possibilitou a expressão de uma “dor calada”, trazendo à tona situações vivenciadas nos serviços de saúde. Para muitas, o atendimento recebido foi parte importante dos eventos que levaram à morte do seu filho. Essa pesquisa não pretendeu avaliar a assistência, mas compreender como as mulheres interpretam e explicam a morte de seus filhos no período neonatal.
As falas permitiram a identificação de situações que indicam uma fragilidade na rede de atenção durante o parto e o nascimento, como demora no atendimento e negligência profissional, configurando diferentes situações de violência nas experiências relatadas pelas entrevistadas. Nesse sentido, destaca-se a importância da efetiva inserção das doulas e a garantia do direito ao acompanhante de livre escolha, que, além de oferecerem à mulher maior segurança, podem favorecer o processo de comunicação com a equipe.
Esses achados demonstram a importância de um redirecionamento das práticas de assistência ao parto e nascimento, além de reforçar a necessidade de um olhar mais sensível para o enfrentamento da mortalidade neonatal precoce. Evidenciam também a necessidade de novas pesquisas que contribuam para o desenvolvimento de estratégias voltadas para a melhoria dos processos de trabalho e mudança de práticas dos profissionais.
Este parece ser um importante caminho para uma assistência que terá melhores resultados, expressos não apenas nas taxas de mortalidade infantil e materna, como também na garantia dos direitos básicos a um atendimento integral da saúde e da condição de estrutura e funcionamento adequados de seus recursos.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), pelo financiamento aos bolsistas do grupo de pesquisa e às mulheres que participaram dessa pesquisa.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Jan 2019
Histórico
- Recebido
06 Nov 2017 - Revisado
26 Jul 2018 - Aceito
03 Set 2018