Saudamos a nova edição do livro de Birn et al. É estimulante a dedicação dos autores ao tema, com revisões que atualizam esse velho/novo objeto - Saúde Internacional/Saúde Global - buscando avançar um marco teórico que aprimore a explicação sobre os fatos e processos subjacentes aos termos em momentos históricos concretos.
Chama a atenção o título desta quarta edição, diferente da anterior. Teriam assumido a denominação contemporânea, justificando a escolha, superando a ambiguidade do título anterior?
Não, essa não é a principal preocupação deste volume. Os objetivos são ambiciosos: evidenciar “o que seria necessário para promover a saúde global e a justiça social no século XXI”, com base na análise das origens históricas do “campo da Saúde Global”, as causas subjacentes aos problemas de saúde no mundo, os diferentes enfoques utilizados para resolvê-los, os atores e suas prioridades nas questões contemporâneas da Saúde Global e o seu desenvolvimento como objeto de pesquisa e como prática.
Valendo-se do instrumental da “economia política crítica” pretendem descrever, explicar e analisar a articulação da saúde com as atividades econômicas e políticas, a estrutura social, a distribuição de poder e seu controle sobre a riqueza e os recursos em geral. Os fatores comportamentais, biomédicos e os sistemas de cuidados são entendidos como parte do espectro mais amplo das forças societais que influenciam a saúde. Propõem-se a desconstruir os enfoques usuais, contrapondo-se às visões dominantes e às propostas de enfrentamento das questões incluídas na agenda da Saúde Global - doenças, instrumentos técnicos, incentivos - que emanam da arena internacional e de atores poderosos, incluindo o setor privado.
Constatam (corretamente) que a literatura sobre esse tema desconsidera o sistema mundial (composto por Estados nacionais diversificados) e as relações assimétricas de poder que regem sua dinâmica; e discute-se pouco a configuração das arenas de decisão que definem as políticas setoriais em nível internacional, regional, nacional ou local. A diversidade de atores que atuam nesses espaços e os distintos interesses envolvidos são cruciais, mas pouco analisados. Propõem dissecar essa engrenagem, desnudar seu impacto na Saúde Global e sugerir medidas para modificar essa realidade, construindo uma visão crítica alternativa.
Impressiona a quantidade de temas e informação que a extensa revisão bibliográfica traz aos leitores, lamentando-se a dominância da literatura anglo-saxônica.
Os comentários a seguir não diminuem a importância do livro nem a sua contribuição ao debate, mas nos parecem pertinentes.
A Introdução é bem elaborada e explicita a intenção dos autores na construção do livro. O trabalho se organizaria em quatro “temas-chave” − distribuição de doenças e inequidades; saúde e ordem mundial; atores, agendas, diplomacia em saúde; e governança da Saúde Global versus ativismo e resistência (transnacional, global). E, mais adiante, menciona-se que o livro estaria dividido em “três seções”: capítulos 1 a 7 − fornecem instrumentos básicos para a compreensão da importância da análise histórica na modelagem dos padrões contemporâneos, prioridades e práticas da Saúde Global; capítulos 8 a 12 − analisam os desafios atuais da Saúde Global com base em um conjunto de lentes; e capítulos 13 e 14 − apresentam processos de elaboração de políticas saudáveis em diferentes partes do mundo e responsabilidades dos atores envolvidos.
Curiosamente as seções enunciadas não estão delimitadas no corpo do livro, o que organizaria melhor a leitura e facilitaria a utilização didática; e os temas-chave estão dispersos ao longo dos capítulos e não são facilmente identificáveis.
A abordagem da “economia política crítica” difere da utilizada na edição anterior -“economia política” − e mereceria uma apresentação. Enquanto a última tem origem em séculos passados, sendo mais conhecida como “economia política internacional”, a primeira é bem recente, consiste em uma área disciplinar da denominada “teoria crítica”, que é, por definição, multidisciplinar e, em sentido amplo, se preocupa em decifrar como determinada ordem mundial foi estabelecida e em tentar vislumbrar a transformação da realidade existente. Preocupa-se com as mudanças no longo prazo e os processos subjacentes − as ideias, a lógica, os atores, as motivações − que “fazem” a história 11. Cox RW. Critical theory. In: Thomas G. Weiss TG, Wilkinson R, editors. Glasgow: International Organization and Global Governance/New York: Routledge; 2014. p. 157-68.. Esse ponto de vista condiciona a reflexão: por um lado, entender as origens e transformações, para explicar as dinâmicas contemporâneas e conhecer como se estruturam as diferentes configurações das relações de poder 11. Cox RW. Critical theory. In: Thomas G. Weiss TG, Wilkinson R, editors. Glasgow: International Organization and Global Governance/New York: Routledge; 2014. p. 157-68.,22. Fiori JL. Economia política internacional e teoria das relações internacionais. https://chacombolachas.wordpress.com/2008/03/08/economia-politica-internacional-e-teoria-das-relacoes-internacionais/ (acessado em 06/Jan/2018).
https://chacombolachas.wordpress.com/200... ; e, por outro, pensar como o curso dos eventos pode apontar para determinada perspectiva de futuro 11. Cox RW. Critical theory. In: Thomas G. Weiss TG, Wilkinson R, editors. Glasgow: International Organization and Global Governance/New York: Routledge; 2014. p. 157-68., sem, entretanto, nenhuma certeza de onde se vai chegar 22. Fiori JL. Economia política internacional e teoria das relações internacionais. https://chacombolachas.wordpress.com/2008/03/08/economia-politica-internacional-e-teoria-das-relacoes-internacionais/ (acessado em 06/Jan/2018).
https://chacombolachas.wordpress.com/200... .
Os capítulos são relevantes em si. Incluem tal quantidade de assuntos, revisões, analises e explicações conclusivas instigantes que mereceriam, cada um, uma resenha crítica específica, pelo debate que suscitam. Não há espaço para maior aprofundamento: parecem ter certa autonomia entre eles, embora se indique a retomada de certos temas em outros capítulos, fragmentando os argumentos e tornando alguns conteúdos repetitivos; e alguns tópicos são melhor elaborados que outros.
A preocupação com a precisão conceitual é relativa: utiliza-se indistintamente colonialismo e imperialismo; instituições, organizações e agências. A não distinção clara entre saúde internacional e saúde global atravessa o livro e tampouco é resolvida no capítulo 2. A revisão histórica dos fatos e processos que marcam a passagem de um termo ao outro, em distintos contextos e com variados fatores intervenientes, e o repasse das definições na literatura são bem elaborados, assim como a discussão da polissemia do termo. Mas a questão conceitual não é, de fato, enfrentada.
Entretanto, a teoria crítica se propõe a lidar com uma realidade em movimento e, sendo assim, deve continuamente reajustar seus conceitos às mudanças do objeto que pretende entender 11. Cox RW. Critical theory. In: Thomas G. Weiss TG, Wilkinson R, editors. Glasgow: International Organization and Global Governance/New York: Routledge; 2014. p. 157-68.. Assim, à história recente da Saúde Global subjaz um passado remoto que envolve a Saúde Internacional e sua dinâmica ao longo dos séculos, com elementos de continuidade e inflexões de mudança 33. Almeida CM, Lima TGFMS, Marcondes WB. Saúde e relações internacionais: novo desafio teórico e metodológico da saúde coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 257-92.. Isso exige a explicação dos significados dos termos e a elaboração conceitual.
Evidencia-se no âmbito internacional/global o que já é debatido no Brasil desde os anos 1970: os contextos econômico, social e político são determinantes das condições de saúde dos indivíduos e populações. E as relações de poder, heterogêneas e assimétricas, permeiam os processos decisórios e a formulação de políticas setoriais em todos os níveis.
A qualificação do conceito de Saúde Coletiva 44. Pêgo RA, Almeida C. Teoría y práctica de las reformas en los sistemas de salud: los casos de Brasil y México. Cad Saúde Pública 2002; 18:971-89.,55. Nunes ED, organizador. As ciências sociais em saúde na América Latina. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 1985. faz-se necessária, por estar mencionado na Introdução (p. xxi). De fato, foi formulado no Brasil pari passu ao movimento político-ideológico setorial contra a ditadura, materializado em um projeto de reforma que se contrapunha à realidade de exclusão e desigualdades vigente nas políticas sociais, incluídas as de saúde, e enfatizava a importância dos profissionais como “sujeitos políticos” dessa transformação. Sua elaboração teórica institucionalizou um novo campo de conhecimento e uma nova vertente analítica. O eixo conceitual da noção de Saúde Coletiva está situado na confluência de diferentes áreas de conhecimento, introduzindo uma inflexão decisiva: nega a dominância do saber biomédico, provoca uma ruptura com a concepção clássica da saúde pública e promove a reestruturação deste campo, enfatizando a dimensão histórica dos processos saúde/doença.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que Saúde Global, Saúde Internacional e outros termos recentes são “novos objetos (multidimensionais) em construção” no campo da Saúde Coletiva 33. Almeida CM, Lima TGFMS, Marcondes WB. Saúde e relações internacionais: novo desafio teórico e metodológico da saúde coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 257-92., no qual operam e disputam diferentes forças - atores, enfoques e paradigmas -, conformando arenas que abrigam os complexos embates referidos à saúde, traduzidos em práticas diversas: acadêmica, técnica, política e ideológica 55. Nunes ED, organizador. As ciências sociais em saúde na América Latina. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 1985..
Por fim: é equivocada a inclusão do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) como uma das “early international organizations” (Box 1-5, p. 31), juntamente com organizações públicas antecessoras do sistema multilateral e ONGs. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o IOC, seu precursor, são genuinamente brasileiros, ainda que internacionalizados desde os seus primórdios, característica que mantêm até hoje.
Em síntese, o novo livro de Birn et al. compila muito bem o “estado da arte” na Saúde Internacional/Saúde Global, é indispensável para pesquisadores e alunos da área.
É simpática a referência (não explícita) ao Brasil, na imagem que ilustra a capa, simbolizando o convite para embarcar em uma viagem de desvendamento e reflexão.
O convite para elaboração desta resenha foi aceito prazerosamente e agradecemos a oportunidade.
- 1Cox RW. Critical theory. In: Thomas G. Weiss TG, Wilkinson R, editors. Glasgow: International Organization and Global Governance/New York: Routledge; 2014. p. 157-68.
- 2Fiori JL. Economia política internacional e teoria das relações internacionais. https://chacombolachas.wordpress.com/2008/03/08/economia-politica-internacional-e-teoria-das-relacoes-internacionais/ (acessado em 06/Jan/2018).
» https://chacombolachas.wordpress.com/2008/03/08/economia-politica-internacional-e-teoria-das-relacoes-internacionais/ - 3Almeida CM, Lima TGFMS, Marcondes WB. Saúde e relações internacionais: novo desafio teórico e metodológico da saúde coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 257-92.
- 4Pêgo RA, Almeida C. Teoría y práctica de las reformas en los sistemas de salud: los casos de Brasil y México. Cad Saúde Pública 2002; 18:971-89.
- 5Nunes ED, organizador. As ciências sociais em saúde na América Latina. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 1985.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Mar 2018