Resumos
A violência contra a mulher é, antes de tudo, uma questão de valores culturais hierárquicos de gênero produzidos socialmente. Desse modo, esta pesquisa buscou compreender os sentidos atribuídos à violência sexual contra a mulher expressa nas letras de forró por rapazes adolescentes residentes na periferia de Fortaleza, Ceará, Brasil. Partimos da etnomusicologia, cuja teoria considera que estudos de músicas regionais e suas performances transpõem o espaço geográfico de sua execução, na medida em que descortinam práticas universalmente disseminadas de legitimação de violências. A pesquisa foi realizada em escolas estaduais do bairro Bom Jardim, na periferia de Fortaleza. Esse bairro registra os piores índices de violências contra as mulheres do município. Foram realizados grupos focais com seis a oito participantes, em que foram debatidas três músicas de forró cujas letras remetiam à violência sexual. Os resultados demonstraram como as músicas reproduzem e influenciam ideologias patriarcais entre os jovens nordestinos. Observa-se nas falas o discurso do “estupro reverso”, que busca justificar a violência sexual por meio da inversão de papeis de gênero, ignorando assimetrias socialmente construídas. O forró se demonstra uma arena de gênero, onde gladiadores competem para registrar ideias de masculinidade, sexualidade e relações de gênero, replicando o sexismo dominante na sociedade contemporânea e contribuindo para a perpetuação da violência contra a mulher.
Palavras-chave:
Cultura; Música; Violência Contra a Mulher; Gênero e Saúde; Etnologia
Violence against women is primarily a socially produced issue of gender-hierarchy cultural values. This study aimed to unveil the meanings assigned to sexual violence against women in the forró lyrics by adolescent boys living on the outskirts of Fortaleza, Ceará State, Brazil. Our point of departure was ethnomusicology, the theory of which contends that studies of regional songs and their performances transcend the geographic space in which they are performed, to the extent that they reflect universally disseminated practices in the legitimation of violence. The study was conducted in state public schools in the Bom Jardim neighborhood on the outskirts of Fortaleza. This neighborhood has the highest rates of violence against women in the city. Focus groups were conducted with six to eight participants each, debating three forró songs whose lyrics referred to sexual violence. The results showed that the lyrics reproduce and influence patriarchal ideologies among Northeast Brazilian youth. Quotes by the boys reveal the discourse of “reverse rape”, which seeks to condone sexual violence through the reversal of gender roles, ignoring socially constructed asymmetries. Forró proves to be a gender arena in which gladiators compete to flaunt notions of manhood, sexuality, and gender relations, replicating the dominant sexism in contemporary Brazilian society and contributing to the perpetuation of violence against women.
Keywords:
Culture; Music; Violence Against Women; Gender and Health; Ethnology
La violencia contra la mujer es, ante todo, una cuestión de valores culturales jerárquicos de género producidos socialmente. Por ello, esta investigación procuró comprender los sentidos atribuidos a la violencia sexual contra la mujer, expresada en las letras del forró por parte de chicos adolescentes, residentes en la periferia de Fortaleza, Ceará, Brasil. Partimos de la etnomusicología, cuya teoría considera que los estudios de músicas regionales y sus representaciones traspasan el espacio geográfico de su ejecución, en la medida en que desvelan prácticas universalmente diseminadas de legitimación de la violencia. La investigación se realizó en escuelas estatales del barrio de Bom Jardim, en la periferia de Fortaleza. Este barrio registra los peores índices de violencia contra las mujeres del municipio. Se crearon grupos focales de seis a ocho participantes, en los que se debatieron tres canciones de forró, cuyas letras remitían a la violencia sexual. Los resultados demostraron de qué forma las canciones reproducen e influencian ideologías patriarcales entre los jóvenes nordestinos. Se observa en las intervenciones el discurso de la “violación inversa”, que busca justificar la violencia sexual mediante la inversión de los papeles de género, ignorando las asimetrías socialmente construidas. El forró demuestra ser la arena de un coliseo del género, donde los gladiadores compiten para registrar ideas de masculinidad, sexualidad y relaciones de género, replicando el sexismo dominante en la sociedad contemporánea y contribuyendo a la perpetuación de la violencia contra la mujer.
Palabras-clave:
Cultura; Música; Violencia contra la Mujer; Género y Salud; Etnología
Introdução
Em 31 de janeiro de 2015, uma médica foi raptada por três homens na saída de um show de forró em Sobral, Ceará, Brasil, colocada no porta-malas do próprio veículo e estuprada 11. Mulher é raptada em saída de show e violentada em Sobral. O Povo Online 2015; 2 fev. http://www.opovo.com.br/app/ceara/sobral/2015/02/02/notsobral,3386811/mulher-e-raptada-em-saida-de-show-e-violentada-em-sobral.shtml (acessado em 20/Jun/2016).
http://www.opovo.com.br/app/ceara/sobral... . Infelizmente, esse não é um caso isolado. Das 9.049 notificações de violências e acidentes em 2006 e 2007, 33% foram violências sexuais 22. Ministério da Saúde. Temático prevenção de violências e cultura de paz III. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2010. (Painel de Indicadores do SUS, 5).. No Brasil, em 2011, foram notificados 12.087 casos de estupro 33. Cerqueira D, Santa D, Coelho C. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014.. Estima-se que 43% das mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência sexual ao longo da vida 44. Venturi G, Recamân M, Oliveira S. A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2004. e que anualmente 0,26% da população brasileira (cerca de 527 mil) sofre violência sexual, dos quais 10% são reportados à polícia 33. Cerqueira D, Santa D, Coelho C. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014..
Apesar da elevada frequência e das graves repercussões da violência sexual 55. Black MC, Basile KC, Breiding MJ, Smith SG, Walters ML, Merrick MT, et al. The National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS): 2010 summary report. Atlanta: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention; 2011., as ações de assistência e prevenção 66. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência contra mulheres e adolescentes: 3ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. (Norma Técnica). não reduziram a prevalência 77. Facuri CO, Fernandes AMS, Oliveira K, Andrade TS, Azevedo RCS. Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo. Cad Saúde Pública 2013; 29:889-98.. Ocorre que a vida cotidiana é atravessada por discursos sociais e pelo biopoder 88. Foucault M. História da sexualidade. I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1988.. Nesse sentido, o discurso biomédico hegemônico tem sido historicamente utilizado para legitimar dicotomias 99. Goffman E. A ritualização da feminilidade. In: Goffman E, organizadora. Os momentos e os seus homens. Lisboa: Relógio D'Água; 1999. p. 154-89.,1010. Foucault M. O nascimento da clínica. São Paulo: Editora Forense Universitária; 2004. e práticas sociais segregadoras 1111. Zanello V, Costa e Silva RM. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Rev Bioét 2012; 20:267-79.. A 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) 1212. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª Ed. Porto Alegre: Editora Artmed; 2014., por exemplo, ainda associa violência a traços de personalidade masculinos e descreve mulheres como susceptíveis a transtornos de estresse agudo. Tal patologização da violência minimiza as interfaces do sujeito com o seu mundo local moral 1212. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª Ed. Porto Alegre: Editora Artmed; 2014.,1313. Kleinman A. The violence of everyday life: the multiple forms and dynamics of social violence. In: Das V, Kleinman A, Ramphele M, Reynolds P, editors. Violence and subjectivity. Berkeley: University of California Press; 2000. p. 226-41., ignorando que injúrias de gênero são produzidas como parte de uma tendência de oposição binária culturalmente sustentada 1111. Zanello V, Costa e Silva RM. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Rev Bioét 2012; 20:267-79.,1414. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995..
A etnomusicologia, em sua vertente próxima à antropologia, emerge como possibilidade para a compreensão de comportamentos sociais 1515. Rhodes W. Toward a definition of ethnomusicology. Am Anthropol 1956; 58:457-63.. Estudos etnomusicológicos recentes possibilitam a compreensão do lugar da música na construção dos papéis de gênero 1616. Cohen S. Men making a scene: rock music and the production of gender. In: Whithley S, editor. Sexing the groove: popular music and gender. New York: Routledge; 1997. p. 17-36.,1717. Faria CN. Puxando a sanfona e rasgando o nordeste: relações de gênero na música popular nordestina (1950-1990). Mneme - Revista de Humanidades 2002; 3:1-35.,1818. Koskoff E. A feminist ethnomusicology: writings on music and gender. Chicago: University of Illinois Press; 2014.,1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.,2020. Järviluoma H, Moisala P, Vilkko A. Gender and qualitative methods. London: Sage; 2003. e sua relação com a violência cotidiana 1818. Koskoff E. A feminist ethnomusicology: writings on music and gender. Chicago: University of Illinois Press; 2014.,2121. Santos LZ. "Todos na produção": um estudo etnográfico das narrativas sônicas e raps em um bairro popular do sul do Brasil [Tese de Doutorado]. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.,2222. Maia AF, Antunes DC. Música, indústria cultural e limitação da consciência. Revista Subjetividades 2016; 8:1143-76.,2323. Johnson B, Cloonan M. Dark side of the tune: popular music and violence. Bodmin: Ashgate; 2008.. Nesse contexto, emergiu a necessidade de analisar os discursos musicais da região brasileira com os piores índices de violência contra a mulher: o Nordeste.
O forró surgiu durante a Segunda Guerra Mundial, nas festas “for all” (para todos) promovidas por militares estrangeiros no litoral nordestino 1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.. Nos anos 1940, as músicas instrumentais ganharam letras nas interpretações de Luiz Gonzaga 2424. Chianca LO. A festa do interior: São João, migração e nostalgia em Natal no século XX. Natal: Editora da UFRN; 2006.. Desde então, o forró tornou-se “um dos símbolos da ‘cultura nordestina’” 2424. Chianca LO. A festa do interior: São João, migração e nostalgia em Natal no século XX. Natal: Editora da UFRN; 2006. (p. 87). Na década de 1990, emergiu o forró eletrônico, marcado pelo mercado pop2525. Marques R. Quem "se garante" no forró eletrônico? - produzindo diferenças em contextos de fronteira e ebulição social. Cadernos Pagu 2014; 43:347-83.. A modernização atraiu novos públicos entre todas as faixas etárias e classes sociais 2626. Strathern M. Música popular, moral e sexualidade: reflexões sobre o forró contemporâneo. Revista Contracampo 2009; 20:132-46.. Suas letras, contudo, permaneceram marcadas por princípios patriarcais, dentre eles, a valorização da virilidade masculina 2626. Strathern M. Música popular, moral e sexualidade: reflexões sobre o forró contemporâneo. Revista Contracampo 2009; 20:132-46.,2727. Brilhante AVM, Silva JG, Vieira LJES, Barros NF, Catrib AMF. Construção do estereótipo do "macho nordestino" nas letras de forró no Nordeste brasileiro. Interface (Botucatu, Online) 2018; [Epub ahead of print]. e a objetificação dos corpos femininos 1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.,2525. Marques R. Quem "se garante" no forró eletrônico? - produzindo diferenças em contextos de fronteira e ebulição social. Cadernos Pagu 2014; 43:347-83..
Estudos prévios analisaram a relação entre forró e violência de gênero 1717. Faria CN. Puxando a sanfona e rasgando o nordeste: relações de gênero na música popular nordestina (1950-1990). Mneme - Revista de Humanidades 2002; 3:1-35.,1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.,2626. Strathern M. Música popular, moral e sexualidade: reflexões sobre o forró contemporâneo. Revista Contracampo 2009; 20:132-46.,2727. Brilhante AVM, Silva JG, Vieira LJES, Barros NF, Catrib AMF. Construção do estereótipo do "macho nordestino" nas letras de forró no Nordeste brasileiro. Interface (Botucatu, Online) 2018; [Epub ahead of print].. É necessário, contudo, compreender a dinâmica da música e da cultura popular nas práticas cotidianas, principalmente entre adolescentes em processo de consolidação dos papéis de gênero. Diante dessa premissa, emergem as perguntas: qual o papel da música na perpetuação e legitimação da violência sexual? Como a música atua na estruturação dos papéis sócias de gênero entre adolescentes? Partimos, assim, do referencial teórico da etnomusicologia para compreender os sentidos atribuídos por rapazes residentes na periferia de Fortaleza, Ceará, à violência sexual contra a mulher nas letras de forró.
Metodologia
Descrição do contexto
O bairro do Bom Jardim, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,403 2828. Universidade Estadual do Ceará; Universidade Federal do Ceara´. Mapa da criminalidade e da violência em Fortaleza. Perfil da SER V. http://www.uece.br/covio/dmdocuments/regional_V.pdf (acessado em 20/Out/2016).
http://www.uece.br/covio/dmdocuments/reg... , está localizado na Secretaria Regional de Saúde de maior vulnerabilidade social da cidade - a SER V. Essa é a Regional mais populosa de Fortaleza (com 585.347 habitantes) e a mais pobre, com rendimento familiar médio de 3,07 salários mínimos. É também a mais jovem, com 44% da população com até 20 anos e a segunda com o maior índice de analfabetismo (17,83%). O bairro pertence à Área Integrada de Segurança (AIS) 2, território com o maior registro de homicídios de Fortaleza, chegando a 209 apenas no primeiro semestre de 2015 2929. Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social. Indicadores criminais 2017. http://www.sspds.ce.gov.br/noticiaDetalhada.do?tipoPortal=1&codNoticia=2142&titulo=Reportagens&action=detail (acessado em 11/Jul/2017).
http://www.sspds.ce.gov.br/noticiaDetalh... . Também apresenta o maior número de registros de violência contra mulheres, com 246 casos em 2014 3030. Observem. Filtro de pesquisa sobre a violência contra a mulher em Fortaleza, 2016. http://observem.woese.com/page/9086 (acessado em 20/Out/2016).
http://observem.woese.com/page/9086... .
Na etnomusicologia, o trabalho de campo analisa sons como fenômenos imbricados às dinâmicas sociais 2121. Santos LZ. "Todos na produção": um estudo etnográfico das narrativas sônicas e raps em um bairro popular do sul do Brasil [Tese de Doutorado]. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.. Desse modo, durante oito meses, entre março e novembro de 2014, pesquisadoras e equipe técnica experienciaram uma imersão profunda no cotidiano do Bom Jardim. Aprofundamos as observações etnográficas nos bailes de forró, observando estrutura física, som, performances sociais, dinâmica das festas e as relações entre homens e mulheres em situações reais. As anotações do diário de campo situaram os resultados, evitando interpretações descontextualizadas 3131. Orlandi E. A leitura e os leitores possíveis. In: Orlandi E, organizador. A leitura e os leitores. Campinas: Editora Pontes; 1998. p. 7-24.. O aprofundamento histórico-social nos discursos do forró, desde os anos 1940 até a contemporaneidade, foi realizado em um estudo prévio 1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016., permitindo uma interpretação semântica contextualizada 3232. Bibeau G, Corin EE. From submission to the text to interpretative violence. In: Bibeau G, Corin EE, editors. Beyond textuality: asceticism and violence in anthropological interpretation. Berlin/New York: Mouton de Gruyter; 1995. p. 3-54. dos discursos associados às letras e festas de forró no Bom Jardim.
Seleção dos participantes
Participaram da pesquisa 14 rapazes entre 14 e 18 anos, matriculados nas duas escolas estaduais de Ensino Fundamental e Médio do Bom Jardim. O vínculo com os adolescentes foi construído durante três anos de atuação de um projeto de extensão. Os critérios de inclusão foram: ser do gênero masculino, estar regularmente matriculado em alguma das escolas, frequentar com regularidade (mínima de uma vez ao mês) festas de forró e ouvir regularmente as músicas. Foram excluídos os adolescentes menores de 18 anos sem autorização dos responsáveis. Identidade de gênero e orientação sexual não foram consideradas critérios de inclusão ou exclusão. Optamos por investigar o público masculino por diversas razões: os homens são os principais perpetradores de violência sexual 3333. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres/Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos/Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; 2015.,3434. Brilhante AVM, Moreira GAR, Vieira LJES, Catrib AMF. Um estudo bibliométrico sobre a violência de gênero. Saúde Soc 2016; 25:703-15.; são escassos os estudos abordando os sentidos da violência pela ótica masculina 3535. Lenz K, Oliveira C. Homens e violência conjugal: uma análise de estudos brasileiros. Ciênc Saúde Coletiva 2011; 16:2401-13.; e, finalmente, adolescentes sentem-se mais livres para tratar de temas controversos entre pares do mesmo gênero do que em grupos mistos 3636. Brilhante AVM, Catrib AMF, Silva RM. Educação sexual na adolescência como estratégia de promoção da saúde. Fortaleza: EdUECE; 2014..
Dos 14 participantes, 100% declararam-se heterossexuais; 71% relataram relações sexuais prévias; 35,7% tinham namorada; 57,1% são evangélicos e 42,9% católicos.
Coleta de dados
Foram realizados dois grupos focais em agosto de 2015 com seis e oito participantes. Dois facilitadores masculinos conduziram os grupos, fortalecendo o elo afetivo entre os presentes. Após explicações preliminares, foram reproduzidas três músicas de forró elegidas em estudo prévio 1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.. A seleção baseou-se na presença de elementos associados à violência sexual e na ampla reprodução midiática. Após cada música iniciava-se o debate sobre o significado dos seus conteúdos. As discussões foram gravadas e transcritas na íntegra.
As músicas - Levanta o Copo, da banda Aviões do Forró; Bichinha Cheia de Besteira e Dança da Piroca Torta, da banda Saia Rodada, estão denominadas no artigo por M1, M2 e M3. As letras estão dispostas a seguir:
M1 - Levanta o Copo
“Começou, aumenta o som, quero ver quem aprendeu/Pode chamar o garçom/Enche o seu que eu encho o meu/É só levantar o copo. É muito fácil/Gatinha mamadinha vai, corre pro abraço/Eu quero ver/Levanta o copo/Dá uma rodadinha/Dá um golinho/Tá facinho/Taca cachaça que ela libera/Se você tá com medo de pedir um beijo pra ela/Taca cachaça que ela libera”.
M2 - Bichinha Cheia de Besteira
“Eu tenho um amigo/Ele é um cara legal/A namorada dele é que é bestinha demais/Se chama pra ir à praia/Ai, eu tenho medo/Pra tomar um banho de rio/Ai, eu tenho medo/Um banho de piscina/Ai, eu tenho medo/Ô bichinha cheia, cheia, cheia de besteira (...) Um dia lá na praia foi aquele rebuliço/Ele foi tomar banho e deixou ela comigo/E veio um caranguejo entrou na saia da loirinha/E ela gritava: tira, tira, tira o bicho/Tira, tira, tira, tira o bicho/Tira, tira, tira, tira o bicho/ Tira, tira, tira, tira o bicho/Eu levantava o pano mas o bicho não saía”.
M3 - Dança da Piroca Torta
“Tô chegando na balada na maior animação/Mas pra me desanimar tá lotado de dragão/A feiosa me chamou pra tomar uma meiota/Aí, eu mostrei pra ela a dança da piroca torta/Torta, torta dança da piroca torta/Pra esquerda ou pra direita o importante é encoxar/Balançando nesse som roça em todo lugar/Já tomei muita cachaça não sei se você se importa/Agora quero dançar ‘bebo’ o forró da piroca torta/Torta, torta dança da piroca torta”.
Procedimento de análise
Após a transcrição das falas e leituras exaustivas do material resultante, a análise seguiu os princípios da Análise do Discurso (AD) 3131. Orlandi E. A leitura e os leitores possíveis. In: Orlandi E, organizador. A leitura e os leitores. Campinas: Editora Pontes; 1998. p. 7-24.. Foram identificadas quatro formações discursivas principais, a saber: desmoralização da vítima, legitimação do estupro pelo álcool, desqualificação da recusa feminina e banalização da violência contra a mulher. As formações discursivas foram relacionadas às formações ideológicas para chegar aos processos discursivos. Nesse momento observamos paráfrases, metáforas e fenômenos semânticos produzidos por substituições contextuais, fazendo emergir o não-dito 3737. Orlandi E. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 8ª Ed. Campinas: Editora Pontes; 2009.. O dispositivo analítico foi então construído com base em recortes de sequências discursivas, sendo analisado à luz do contexto sociohistórico 3131. Orlandi E. A leitura e os leitores possíveis. In: Orlandi E, organizador. A leitura e os leitores. Campinas: Editora Pontes; 1998. p. 7-24.,3737. Orlandi E. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 8ª Ed. Campinas: Editora Pontes; 2009..
Procedimentos éticos
O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Fortaleza, sob o número 435/2011. Os nomes dos informantes são fictícios.
Resultados
A imersão no cotidiano do Bom Jardim aproximou músicas e discursos das práticas sociais. Iniciamos os resultados com a descrição do contexto que situou a análise dos discursos. A essa etapa, segue-se o aprofundamento nas quatro categorias identificadas nos discursos: desmoralização da vítima, legitimação do estupro pelo álcool, desqualificação da recusa feminina e banalização da violência contra a mulher.
Imersão no cotidiano do Bom Jardim
O nome Bom Jardim deriva de um antigo bordel onde as prostitutas adotavam nomes de flores. O bordel se foi, mas os espinhos ficaram. Os resíduos do descaso governamental e da violência urbana são evidentes. Ruas esburacadas, lixo e esgoto a céu aberto, praças abandonadas e grades de ferro protegendo portas e janelas de mercadinhos familiares coexistem com fronteiras invisíveis que delimitam áreas de comando de diferentes grupos criminosos. Para acessá-las, é necessária autorização. Em conversas com moradores do bairro é frequente a comparação com o passado. “Antes era bem pior” - eles dizem, no mesmo instante em que o telejornal noticia mais um tiroteio no Bom Jardim. Onde há grande vulnerabilidade social, como no Bom Jardim, músicas e festas atuam na catarse e na resistência às condições sociais e ao estigma territorial 3838. Wacquant L. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. 2ª Ed. Rio de janeiro: Revan; 2005..
Caminhar pelas ruas do bairro favoreceu uma densa imersão sônica. Diversos estilos musicais vibram no Bom Jardim. Em meio ao funk e à música sertaneja, contudo o forró se destaca. Calçadas, carros, celulares - tudo vibra ao som do forró eletrônico.
Seis casas de forró animam a paisagem de pobreza e desprezo. São grandes terrenos cercados por muros altos, com passagens estreitas que funcionam como entrada e saída. As bilheterias são pequenos buracos na parede, através dos quais a compra do ingresso transcorre sem contato visual entre cliente e funcionário. Para atrair mulheres, as casas lhes oferecem entradas gratuitas até um determinado horário. Ao chegar, observa-se o código de vestuário tacitamente estabelecido para as mulheres: shorts curtos ou calças justas compõe o visual com saltos altos, blusas decotadas e maquiagens carregadas.
Em palcos pequenos apresentam-se bandas geralmente compostas por dois vocalistas - um homem e uma mulher -, além de duas ou três dançarinas. Vestimentas, música e movimentos dos corpos exaltam no palco a sensualidade feminina e a virilidade masculina, em performances reproduzidas no salão de forma ritualística. Observamos sequências temporais, hierarquias, regras, interditos e obrigações 99. Goffman E. A ritualização da feminilidade. In: Goffman E, organizadora. Os momentos e os seus homens. Lisboa: Relógio D'Água; 1999. p. 154-89.. Hierarquicamente, cabe ao homem a abordagem, enquanto as mulheres posicionam-se em rodas aguardando a intervenção masculina. Essa aproximação modifica-se com o tempo e o limiar do álcool. Se no começo há convites, do meio para o fim da festa há puxões pela cintura e palavras jocosas ao pé do ouvido. Embora homens e mulheres consumam bebidas, o álcool assume simbologias diferentes entre os gêneros. Para os homens, autoriza abordagens grosseiras. Para as mulheres, desqualifica a recusa. Desse modo, quando a mulher foge à previsibilidade ritualística, rechaçando a abordagem, ela é ofendida com gestos e palavras. “Vagabunda”, “maloqueira”, “piriguete”, “troço” foram palavras ouvidas nas festas do Bom Jardim. Tudo se articula para que, naquele grande terreno com infraestrutura precária e forte presença de álcool, tudo seja permitido. “Ninguém é de ninguém” - ouvimos. Uma faixa na entrada de uma das casas de forró sintetiza o ambiente: “Tudo junto e misturado!”.
Análise dos discursos
Desmoralização da vítima
As falas dos adolescentes revelam a internalização de valores patriarcais que os levam a distinguir duas categorias de mulheres: “a honesta” e “a vagabunda”. A mulher honesta é descrita como alguém que não frequenta o forró, não ingere bebidas alcoólicas, mantém o controle e o recato. A essas mulheres, segundo nossos informantes, cabe a tutela social. Para Carlos, 15 anos, “Quando o cara bota alguma coisa na bebida dela, aí eu acho sacanagem. Porque às vezes a menina tá tomando um refrigerante, nem tá no forró nem nada. Aí, o cara vem e coloca algum trampo na bebida dela. Aí eu acho que é estupro mesmo. O cara é um sacana”. Carlos distingue essa menina “honesta” da “vagabunda”. Comportamentos que fujam ao recato, como frequentar o forró e consumir bebidas alcoólicas, são tomados como autorização para o assédio. A essas mulheres não é dada a opção da recusa e Carlos não reconhece nelas uma vítima de violência: “Mas a criatura tá num forró, bebendo todas, sai do forró com o cara e depois diz que não queria! Ah, faça-me o favor, né?”.
Essas ideias são corroboradas por todos os informantes, na medida em que nenhum deles reconheceu a violência em M3. Para eles, a música apenas descreve a dinâmica das festas. Segundo, Adriano, 17 anos: “O forró foi feito pra dançar coladinho e a gente encoxa mesmo. É pra isso que a gente vai no forró”. Augusto, 16 anos, exemplifica a naturalização do assédio: “Olha, o forrozeiro que disser que nunca fez isso, tá mentindo. A gente vai pro forró pra que mesmo? Pra dançar, beber e namorar. A gente e as mulheres também. Todo mundo lá quer a mesma coisa”. Apesar de a mulher ter avançado na ocupação do ambiente externo ao lar, a crença hegemônica ainda é a de que a mulher que foge ao recato socialmente preconizado abre mão de sua dignidade, como corrobora Mário, 18 anos: “Tá no forró pra quê? Não quer ser encoxada vai pra missa e não pro forró, né?”.
A moralidade surge nos discursos como uma estrutura ideológica sólida, capaz de determinar contra quem a violência é legitimada. Nascido e criado em meio a interdiscursos carregados dessa ideologia, João, 15 anos, encontra no comportamento sensual e livre de algumas mulheres a autorização tácita para a abordagem masculina, invalidando qualquer negativa sequencial. Após a execução de M2, João afirma: “Mas, assim, tem menina que faz tudo. Se exibe toda. Dá mó pinta pro cara e, aí, na hora de chegar junto, fica que nem diz a música, cheia de besteira. Aí, não dá!”. José, 17 anos, corrobora essa percepção quando afirma: “Tem delas que procuram. Não perdem uma chance de deixar o cara doido. Aí, sai com ele. Vai pra algum canto só os dois. Deixa o cara em ponto de bala e, aí, nada! Vem com ‘agora não’. Porra, é difícil pro cara”.
A racionalidade da desmoralização feminina é reforçada pela massificação do estereótipo da “mulher interesseira”. Essa imagética, frequente em diversas mídias, contribui para a generalização desse estereótipo, culminando na invisibilidade de algumas violências e no indulto de outras. Paulo, 16 anos, afirma: “Eu vi uma vez numa novela que a menina fez sexo bêbada e engravidou do cara. Cara, ela bebeu, foi pro quarto com ele e depois que tira a roupa fica com ‘não quero’. A própria mãe da menina fez foi gostar porque o cara tinha dinheiro. Só é estupro quando o cara é liso”. A afirmação é complementada por Ricardo, 15 anos, que reforça: “Ou então, se o cara tivesse dinheiro e depois dispensasse ela. Aí, também era estupro”.
O interessante é que não há uma barreira rígida entre a “mulher honesta” e a “vagabunda”. Esse limite é determinado pelo assujeitamento ou não às estruturas de controle vigente. Segundo Lucas, 18 anos, para ser “vagabunda” basta que a mulher defenda outra: “Hoje em dia é cheio de vagabunda querendo se dar bem em cima da gente. E é tudo vagabunda, mesmo. As que fazem e as que defendem”.
Há, portanto, uma trivialização da violência decorrente de um processo discursivo. Os homens não se percebem como criminosos e as mulheres, assujeitadas, não se percebem como vítimas.
Legitimação do estupro pelo álcool
Enquanto a embriaguez masculina é culturalmente estimulada, o consumo de álcool por mulheres é culturalmente utilizado para legitimar a violência sexual, como demonstra a fala de Marcos, 17 anos: “Quem vai pras festa sabe. O mulheriu hoje bebe mais que o macharal e é muito! Né pouco não. Aí bebe porque quer. Ninguém tá obrigando. Depois se arrepende e fica com negócio de ‘Ah, eu não queria’, ‘Ah, eu tava bêbada’, (...). Mas na hora não disse nada. Não reclamou de nada. É só depois pra pagar de santa”.
A culpabilização da vítima é transversal aos discursos, encontrando eco em informações descontextualizadas e em crenças do senso comum, como demonstra Jorge, 14 anos, ao afirmar: “Cara, eu vi num programa uma vez que ninguém faz nada bêbado que não fizesse bom. (...) Então se a mulher bebe e faz sexo, bebeu por que quis, fez sexo por que quis. Frescura isso de depois vir botar a culpa em cima do cara”.
Para os nossos informantes, as mulheres bebem sabendo das consequências - ficar “molinha” - e assumem o risco. Lucas, 18 anos, alega: “Cada um tem que saber seu limite na bebida. O cara tá oferecendo, mas não tá obrigando ela a tomar. Ela bebe porque quer. E sabe que fica molinha, molinha quando bebe. Pra mim isso é coisa de quem quer dar e não tem coragem”.
No processo de legitimar o crime sexual cometido contra uma mulher entorpecida, emerge nos discursos um ardil ideológico aqui nomeado de “estupro reverso”. A estratégia consiste em inverter os papéis no que se refere ao uso do álcool - o homem está alcoolizado e não a mulher. Apesar disso, a prerrogativa da abordagem permanece masculina. Tal distorção é exemplificada por Luís, 16 anos: “Até porque o cara às vezes tá bêbado também né. Se a menina tá bêbada, inventaram agora que é estupro. Agora se a menina faz sexo com o cara e ele tá bêbado, não é. Sacanagem isso”. O discurso da violência reversa surge após M1, sendo retomado após M3, por Jorge, 14 anos: “Olha aí, tá vendo? A cunhã se aproveitou do cara que tava bêbo e aí não é estupro”.
Desqualificação da negativa feminina
M2 provocou reações paradoxais. Alguns informantes, como André, 15 anos, reconheceram a violência: “O ritmo é muito bom de dançar. Aí a gente nem percebe. Mas escutando, prestando bem atenção, é pesado isso, cara. Nesse caso aí, é estupro sim”.
Apesar do reconhecimento da violência, o crime é atenuado pela desqualificação da negativa feminina. Na música, uma longa introdução apresenta uma mulher “cheia de besteira”, cuja recusa ao ato sexual é expressa em tom infantilizado, contrastando com a dança sexual. A performance objetiva desqualificar a negativa e cumpre seu papel. Essa estratégia ideológica está refletida na fala de Lucas, 18 anos: “Se eu te disser que eu nunca tinha prestado atenção nessa música direito. Assim, eu sabia que o bicho era o pênis, né? Mas eu não tinha atentado que era forçado. Até porque a cantora canta bem animadinha”.
Apenas André, 15 anos, considerou válida a negativa: “Bicho, mas se ela disser que não quer e disser de verdade não pode. É estupro”. Sua percepção, contudo, não é compartilhada por seus colegas. A ideologia socialmente disseminada de que a mulher diz não querendo dizer sim perpassa os discursos sociais, sendo sumarizada por Pedro, 17 anos: “E quando é que a gente sabe que o não de uma mulher é não?”.
Banalização da violência contra a mulher
A banalização da violência contra a mulher encontra respaldo no alívio cômico e na “coisificação” feminina. Os chistes ocorreram principalmente após a reprodução de M3, ancorando-se na falta de beleza da mulher. Pedro, 17 anos, afirma: “Oxe! Mas se ela tinha era que agradecer o cara! O cara tava tão bêbado que nem ligou dela ser feia”. Os discursos consecutivos, todavia, demonstram que a falta de beleza não é o problema: feia ou bonita a mulher é reduzida a uma fonte de prazer masculino, como nos diz Adriano, 17 anos: “Dá uma hora no forró que você já tá tontim de bêbado e aí, nessa hora, é a que aparecer na frente. Pode ser bonita, pode ser feia. O que passar na frente tá valendo”. Reduzida à sua vagina, a mulher ainda precisa ser grata, segundo afirmara anteriormente Pedro. O alívio cômico que permeia os discursos contribui para atenuar o assédio sexual e moral. É frequente em chistes e piadas a deturpação de conceitos para produzir riso. Esse artifício é utilizado por Carlos, 15 anos. O adolescente desvirtua os sentidos de “igualdade” e “democracia” para legitimar práticas desiguais e assujeitadoras, ao afirmar: “Isso é pra mostrar que o forró é democrático. Até as feias têm seu momento de felicidade”.
Discussão
Os resultados obtidos são permeados de paradoxos, sendo um deles transversal a todos os discursos. Apesar da sensualidade inerente ao forró, a moralidade está no cerne das falas. Para além do idiossincrático, podemos pensar o que há de coletivo nessas situações. A sociedade estabelece regras morais cuja infração culmina em crimes sociais não incluídos na legislação, mas socioculturalmente arrolados 3939. Dornelles JR. O que é crime. São Paulo: Editora Brasiliense; 1988.. A ordem social determina quais formas de violência são culturalmente consentidas e contra quem o são 4040. Minayo MCS. Violência: um problema para a saúde dos brasileiros. In: Ministério da Saúde, organizador. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 9-41.. Nesse sentido, o não-dito tem um grande poder de dominação, já que faz passar por ontológico algo socialmente construído 3737. Orlandi E. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 8ª Ed. Campinas: Editora Pontes; 2009.. Desse modo, ser vítima de estupro é um status social condicionado à reputação. Não basta sofrer a violência. É necessário receber da sociedade o aval de quem realmente é inocente 4141. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas 2017; 25:9-29..
O artifício da moralidade na desqualificação da vítima é uma prática histórica e persistente inclusive no âmbito jurídico 4242. Marca~o R, Gentil P. Crimes contra a dignidade sexual?: comenta´rios ao Ti´tulo VI do Co´digo Penal. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva; 2015.. Para além do dito, contudo, é crucial a análise do não-dito, mas implícito na persistência secular dessa estrutura ideológica. As conquistas feministas das últimas décadas modificaram a balança da economia familiar, alterando relações intrafamiliares e sociais 4141. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas 2017; 25:9-29.. A toda reação à norma hegemônica, contudo, emerge uma contrarreação 88. Foucault M. História da sexualidade. I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1988.,4343. Faludi S. Backlash: the undeclared war against women. New York: Vintage; 1992., culminando na persistência de antigos discursos assujeitadores, repaginados pela cosmiatria da pós-modernidade.
No mundo globalizado, artefatos culturais transformam-se em fenômenos de massa, responsáveis pela veiculação maciça de fenômenos ideológicos. Para Althusser 4444. Althusser L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença; 1974., o Aparelho Repressivo do Estado pertence ao poder público, já os Aparelhos Ideológicos do Estado - incluindo expressões culturais - pertencem aos domínios particulares. Nesse processo, a “midiação da cultura” magnificou os simbolismos das relações de controle e a violência embutida no processo 4545. Thompson JB. Ideologia e cultura moderna - teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 7ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2007.. A massificação do estereótipo da “mulher interesseira”, por exemplo, atua em retroalimentação com a divisão sexual do trabalho 4444. Althusser L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença; 1974. e com a “coisificação” 4646. Moffatt A. Psicoterapia del oprimido. São Paulo: Cortez Editora; 1991. da mulher, na medida em que reafirma o homem como mantenedor financeiro da relação e a passividade da mulher que, como coisa, foi comprada 1919. Brilhante AVM, Catrib AMF. A violência contra a mulher e o forró nosso de cada dia. Fortaleza: EdUECE; 2016.. Nesse processo, estereótipos como “vagabunda” e “interesseira” tornam-se passíveis de generalização para a totalidade das mulheres 4141. Sousa RF. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas 2017; 25:9-29.. Basta para tal apenas o mero questionamento da ordem patriarcal vigente, como demonstra a frase de Lucas.
O álcool surge nos discursos legitimando a violência sexual, aparte do que afirma o Código Penal Brasileiro sobre a presunção da violência contra pessoas que não puderem oferecer resistência 4242. Marca~o R, Gentil P. Crimes contra a dignidade sexual?: comenta´rios ao Ti´tulo VI do Co´digo Penal. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva; 2015.. Entre a letra da lei e sua execução existe, contudo, a cultura, o biopoder 88. Foucault M. História da sexualidade. I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1988. e as formações ideológicas 4444. Althusser L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença; 1974..
A sociedade não possui as mesmas regras morais sobre o consumo de álcool para homens e mulheres. A embriaguez abona a má conduta masculina - a culpa é do álcool. Apenas a mulher é culpabilizada por “beber porque quer”. Nesse caso, o álcool é inocente - a culpa é da mulher. Ocorre que as exigências morais para homens e mulheres divergem de modo geral. O álcool é apenas um elemento dentro de um vasto complexo que remonta a ocupação dos espaços externos ao lar. A percepção de Marcos sobre o aumento do consumo de bebidas alcoólicas por mulheres é corroborada pelas estatísticas 470. Alguns estudos, contudo, associam esse fenômeno com mudanças de comportamento social, incluindo a ampliação do espaço feminino no mercado de trabalho e na vida social e política 4747. Klingemann H. Alcohol and its social consequences: the forgotten dimension. Geneva: World Health Organization; 2001.,4848. Rehm J. Concepts, dimensions and measures of alcohol-related social consequences: a basic framework for alcohol-related benefits and harm. In: Klingemann H, Gmel G, editors. Mapping the social consequences of alcohol consumption. Dordrecht: Springer Netherlands; 2001. p. 11-9.. Desse modo, a condenação moral da mulher pelo consumo de bebidas alcoólicas coaduna com as formações ideológicas que assujeitam as mulheres 4444. Althusser L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença; 1974. e docilizam seus corpos 4949. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2009.. Descortina-se o verdadeiro crime social, não-dito pelos discursos, mas implícito nas estruturas ideológicas: a ocupação do espaço externo pela mulher e o direito ao seu próprio corpo e à sua sexualidade 1414. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995..
As assimetrias sociais entre os gêneros são novamente ignoradas na falácia do “estupro reverso”. Esse ardil atribui igual valor social a duas situações distintas. Em ambas, a prerrogativa da abordagem é masculina. Essa realidade condiz com o observado durante a imersão nas casas de forró. A diferença entre as cenas está em quem fez uso abusivo do álcool. O ritual do forró, contudo, reflete os valores externados em suas letras. Seu cerne gira em torno da virilidade masculina 1414. Saffioti H, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995.,4343. Faludi S. Backlash: the undeclared war against women. New York: Vintage; 1992., de modo que esta sempre é legitimada - com ou sem álcool. Dessa maneira, ao ignorar as assimetrias sociais entre os gêneros, o discurso do “estupro reverso” produz uma falácia argumentativa. Ao afirmar que a mulher, por ser feia, deveria “agradecer” a investida masculina, Pedro reitera duas construções ideológicas: o papel social da mulher de satisfação do prazer masculino e a permissão de punir a mulher que ocupa o espaço externo. Embora, nesse momento, o adolescente busque reiterar discursos que sustentam o ardil do “estupro reverso”, termina por ilustrar seu paradoxo.
Outra categoria que emergiu dos discursos foi a desqualificação da negativa feminina. Essa estrutura ideológica parte do pressuposto de que as mulheres dizem não porque assim são ensinadas. Seria uma simulação para que não abrissem mão do recato, cabendo ao homem “transformar” a negativa em permissão 5050. Brilhante AVM, Moreira GAR, Vieira LJES, Silva RM, Catrib AMF. O "macho nordestino" em formação: sexualidade e relações de gênero entre adolescentes. Rev Bras Promoç Saúde 2015; 28:471-8.. O paradoxo desse argumento é que ele torna vitimável exatamente o estereótipo tutelado socialmente: a mulher “honesta”.
Segundo Goffman 99. Goffman E. A ritualização da feminilidade. In: Goffman E, organizadora. Os momentos e os seus homens. Lisboa: Relógio D'Água; 1999. p. 154-89. (p. 188), a “ritualização da feminilidade” determina o comportamento feminino ideal e “tudo o que impeça o ideal (...)” deve ser “cortado, suprimido”. Ora, mas se a própria negativa - associada à simbologia do recato - deve ser desrespeitada, o que resta à mulher? Os discursos dos adolescentes demonstram que a ritualização da feminilidade normativa não depende de atitudes, mas de passividades. Mulheres que fujam aos dispositivos de controle da sexualidade são destituídas da proteção social, tendo de aceitar passivamente a violência. De modo semelhante, o direito de recusar a abordagem é negado à mulher apenas por esta ser mulher. Cabe-lhe novamente a passividade diante do desejo masculino. É a “coisificação”, a transformação da pessoa em objeto 4646. Moffatt A. Psicoterapia del oprimido. São Paulo: Cortez Editora; 1991..
A banalização da violência e o alívio cômico surgem nos discursos como argamassa que consolida estruturas ideológicas atreladas ao inconsciente 5151. Freud S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Completas/Sigmund Freud. v. I. Rio de Janeiro: Imago Editora; 1996.,5252. Lacan J. Seminário V: as formações do inconsciente, 1957-58. Recife: Traço Freudiano Veredas Lacanianas; 1958.. O processo psíquico da construção do chiste demanda um ouvinte 5151. Freud S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Completas/Sigmund Freud. v. I. Rio de Janeiro: Imago Editora; 1996.. Partindo do pressuposto de que a estruturação do inconsciente é atravessada pelo discurso do outro 5252. Lacan J. Seminário V: as formações do inconsciente, 1957-58. Recife: Traço Freudiano Veredas Lacanianas; 1958., no chiste o significante encontra um significado transformando-se em símbolo linguístico 3131. Orlandi E. A leitura e os leitores possíveis. In: Orlandi E, organizador. A leitura e os leitores. Campinas: Editora Pontes; 1998. p. 7-24.. Desse modo, as piadas e chistes nos discursos dos adolescentes reforçam práticas assujeitadoras das mulheres e a “coisificação” de seus corpos.
Cabe ressaltar que o forró é um símbolo cultural do Nordeste. A misoginia inerente às letras, contudo, converte-se em injúria estrutural e cotidiana 1313. Kleinman A. The violence of everyday life: the multiple forms and dynamics of social violence. In: Das V, Kleinman A, Ramphele M, Reynolds P, editors. Violence and subjectivity. Berkeley: University of California Press; 2000. p. 226-41.. Não existe discurso inocente 5353. Denzin N. Performance ethnography: critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks: Sage; 2003.. Ignorar isso é perpetuar a violência.
Imagine uma performance musical, ciente de que som, ritmo e movimento exercem efeitos físicos e psicológicos sobre a audiência 5454. Seeger A. Etnografia da música. Cadernos de Campo 2008; 17:237-69.. Visualize um palco, onde são reproduzidas, em um ritmo alegre e envolvente, as letras aqui descritas. Imagine-se agora adolescente, em processo de introjeção dos papéis de gênero, estabelecendo uma relação de pertencimento com esse artefato cultural. Agora, relembre que 43% das mulheres sofreram algum tipo de violência sexual, sendo que mais de 50% não pediram ajuda e que em 53% dos casos os maridos e parceiros foram os agressores 44. Venturi G, Recamân M, Oliveira S. A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2004.; que o Brasil é o 5º país do mundo em feminicídio e que dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares (incluindo parceiros e ex-parceiros em 33,2%) 3333. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres/Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos/Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; 2015..
Não pretendemos aqui criticar o forró como expressão cultural, mas sim alertar sobre a violência subliminar de letras e performances, e sua influência nos discursos sociais dos adolescentes. Críticas a esses discursos contribuem para a criação de relações de gênero mais justas, saudáveis e menos violentas entre os gêneros.
Conclusão
O presente artigo objetivou compreender os sentidos atribuídos por rapazes residentes na periferia de Fortaleza à violência sexual contra a mulher nas letras de forró. Os achados da pesquisa descortinaram um panorama preocupante. Os sentidos da violência sexual determinados pelas posições ideológicas nos discursos expuseram a construção de relações conflituosas entre os gêneros como norma social. Nesse processo, letras e performances do forró contribuem para que esses adolescentes estabeleçam uma relação de pertença com um contexto pautado pela violência contra a mulher.
Agradecimentos
À equipe técnica, por sua contribuição para os grupos focais.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Mar 2018
Histórico
- Recebido
20 Jan 2017 - Revisado
14 Jul 2017 - Aceito
28 Ago 2017