Imigração, saúde global e direitos humanos

Miriam Ventura Sobre o autor

Com maior ou menor intensidade as migrações marcaram a história de diversos países, com diferentes repercussões culturais, sociais e políticas. O fenômeno se caracteriza por sua “temporalidade histórica” 11. Vasconcellos MP. Na velocidade do mundo: migrações e mudanças sociais. Saúde Soc 2013; 22:279-82. e natureza mutante, que exige análise crítica dos contextos em que emergem os deslocamentos humanos, das dinâmicas, tensões, condições e repercussões para os indivíduos, as comunidades e os estados nacionais envolvidos - de origem e de destino.

Os fluxos migratórios contemporâneos têm sido mais numerosos, rápidos, diversificados e complexos do que no passado, atingindo todos os continentes, classes sociais, gêneros, etnias/raças, gerações. As razões e motivações para os deslocamentos são igualmente diversas. Os conflitos armados e políticos, e os desastres ambientais têm forçado os deslocamentos de grandes contingentes populacionais. A busca pessoal por melhores perspectivas e condições de vida igualmente motiva migrações em situações nem sempre menos dramática do que a dos refugiados.

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, é um exemplo importante de instrumento jurídico de regulação do fluxo migratório, que visa a garantir os direitos humanos daqueles forçados a migrar e estabelecer deveres de solidariedade aos países. No contexto atual, o estatuto se mostra insuficiente para responder às dinâmicas cada vez mais complexas em vista “da real insuficiência fática das medidas de controle de fronteiras22. Schwarz RG. Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI. Revista Internacional de Direito e Cidadania 2009; (5):181-5. (p. 182) e das novas circunstâncias.

No Brasil, a migração dos haitianos trouxe a discussão sobre a aplicação do estatuto dos refugiados (Lei nº 9.474/1997) no caso da motivação não política. Além dos obstáculos legais relativos à documentação, revelou-se a ausência de estratégias e políticas para o acolhimento, atitudes discriminatórias e inúmeras dificuldades de integração. Atores da sociedade civil mobilizaram-se em prol de uma nova Lei de Migração nº 13.445, de 21 de novembro de 2017, que incorporou avanços importantes, imediatamente neutralizados e desvirtuados pelo Decreto Presidencial nº 9.199, de 20 de novembro de 2017 33. Ramos AC, Rios A, Clève C, Ventura D, Granja JG, Morais JLB, et al. Regulamento da nova Lei de Migração é contra legem e praeter legem. Consultor Jurídico 2017; 23 nov. https://www.conjur.com.br/2017-nov-23/opiniao-regulamento-lei-migracao-praetem-legem.
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A condição de saúde dos imigrantes é um aspecto central para a sua inserção e integração à sociedade. Exige compreender o processo saúde, doença e cuidado desses grupos, e refletir sobre as respectivas responsabilidades dos Estados. Alguns desafios são apontados: a sustentabilidade dos sistemas de saúde nacionais; o efetivo acesso à atenção integral de saúde de nacionais e imigrantes; os meios e recursos adequados para o enfrentamento das doenças transmissíveis e não transmissíveis de impacto local e mundial; captação e alocação de recursos para pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico que atendam à maioria da população mundial.

Na atenção à saúde observa-se que um dos alvos das reformas dos sistemas tem sido a redução da cobertura populacional, com alguns países optando pela “exclusão de imigrantes ilegais e residentes sem qualquer inscrição na Previdência Social44. Giovanella L, Stegmüller K. The financial crisis and health care systems in Europe: universal care under threat? Trends in health sector reforms in Germany, the United Kingdom, and Spain. Cad Saúde Pública 2014; 30:2263-81. (p. 2276), atingindo a universalidade do direito humano à saúde. Mesmo em situações em que não há restrições legais expressas estabelecidas, o acesso dos imigrantes à saúde é dificultado por outros fatores (culturais, gênero, raça/etnia, classe social), que apontam que as ações necessárias à integração do imigrante devem considerar aspectos mais amplos.

O Espaço Temático: Populações Refugiadas e Saúde reúne três análises que evidenciam injustiças e desigualdades sociais em saúde, perpetradas por práticas políticas, econômicas e culturais de dominação e exploração de territórios e de grupos de imigrantes 55. Goulart BG. Multiculturality skills, health care and communication disorders. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00217217.,66. Castiglione DP. Border policies and health of refugee populations. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00006018.,77. Pacheco-Coral AP. Statelessness, exodus, and health: forced internal displacement and health services. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00027518.. As graves deficiências e insuficiências das leis e políticas migratórias também apontadas denunciam violações aos direitos humanos dos imigrantes e nos levam a refletir sobre o elevado valor ético da saúde, a necessidade de mobilizarmos a solidariedade social, e de exigirmos ações políticas que vinculem a saúde dos imigrantes, sem discriminações, às reivindicações democráticas por cidadania e justiça social.

A imigração constitui, no século XXI, a principal fronteira dos direitos humanos, colocando à prova a capacidade do mundo de universalizar estes direitos e dos países efetivá-los nos seus próprios territórios 22. Schwarz RG. Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI. Revista Internacional de Direito e Cidadania 2009; (5):181-5.. A “crise do capitalismo democrático” 44. Giovanella L, Stegmüller K. The financial crisis and health care systems in Europe: universal care under threat? Trends in health sector reforms in Germany, the United Kingdom, and Spain. Cad Saúde Pública 2014; 30:2263-81. globalizada tem implicado pressões econômicas, demográficas, epidemiológicas e políticas, e impulsionado políticas estatais nem sempre favoráveis aos direitos humanos dos imigrantes.

As evidências apresentadas no Espaço Temático sugerem uma necessária articulação entre direitos humanos e saúde global para análise dos problemas de saúde imigratórios, e nos remetem ao referencial proposto por Mann e colaboradores, nos anos 1990 88. Gruskin S, Tarantola D. Um panorama sobre saúde e direitos humanos. In: Paiva V, Ayres JRCM, Buchalla CM, organizadores. Vulnerabilidade e direitos humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá; 2012. p. 71-94., para responder aos desafios da epidemia de HIV/aids. Essa proposta teórico-metodológica de cunho ético-político tem repercutido positivamente para identificar e atender demandas e necessidades, encaminhar conflitos em saúde, e ampliar a pesquisa em saúde.

Explorar essa articulação e vinculação entre direitos humanos e saúde global pode ser uma chave para avançar nas questões de saúde imigratórias, e fortalecer o argumento de que a saúde das pessoas deve ser sustentada por um esforço coletivo internacional, cooperativo e sem fronteiras, que permita a reorganização dos países e uma governança em saúde, que ultrapasse as ações de controle das epidemias e pandemias. Espera-se que essa proposta fortaleça as recomendações internacionais em prol dos sistemas universais de saúde e das necessárias mudanças de políticas e práticas de saúde locais em relação aos imigrantes.

Que a leitura dos artigos nos estimule a avançar na busca de abordagens inovadoras, que ampliem nossa compreensão, e na produção de evidências científicas das injustiças e desigualdades sociais em saúde de territórios e de grupos de imigrantes, em diferentes culturas e contextos sociopolíticos, fundamentais para o enfrentamento das questões de poder e dominação intrínsecas ao fenômeno migratório.

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    Vasconcellos MP. Na velocidade do mundo: migrações e mudanças sociais. Saúde Soc 2013; 22:279-82.
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    Schwarz RG. Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI. Revista Internacional de Direito e Cidadania 2009; (5):181-5.
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    Ramos AC, Rios A, Clève C, Ventura D, Granja JG, Morais JLB, et al. Regulamento da nova Lei de Migração é contra legem e praeter legem. Consultor Jurídico 2017; 23 nov. https://www.conjur.com.br/2017-nov-23/opiniao-regulamento-lei-migracao-praetem-legem
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    Giovanella L, Stegmüller K. The financial crisis and health care systems in Europe: universal care under threat? Trends in health sector reforms in Germany, the United Kingdom, and Spain. Cad Saúde Pública 2014; 30:2263-81.
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    Goulart BG. Multiculturality skills, health care and communication disorders. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00217217.
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    Castiglione DP. Border policies and health of refugee populations. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00006018.
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    Pacheco-Coral AP. Statelessness, exodus, and health: forced internal displacement and health services. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00027518.
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    Gruskin S, Tarantola D. Um panorama sobre saúde e direitos humanos. In: Paiva V, Ayres JRCM, Buchalla CM, organizadores. Vulnerabilidade e direitos humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá; 2012. p. 71-94.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2018
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br