Nos três artigos publicados nesse fascículo, Migowski et al. apresentam as novas diretrizes para a detecção precoce do câncer de mama no Brasil 11. Migowski A, Stein AT, Ferreira CBT, Ferreira DMTP, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. I - Métodos de elaboração. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00116317.,22. Migowski A, Azevedo e Silva G, Dias MBK, Diz MDPE, Sant'Ana DR, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. II - Novas recomendações nacionais, principais evidências e controvérsias. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00074817.,33. Migowski A, Dias MBK, Nadanovsky P, Azevedo e Silva G, Sant'Ana DR, Stein AT. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. III - Desafios à implementação. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00046317.. A atualização é particularmente oportuna, uma vez que analisa concepções errôneas persistentes, controvérsias recentes e fenômenos novos. O trabalho tem o mérito de haver formulado as novas diretrizes através de uma revisão das evidências científicas publicadas, com independência e transparência, além de uma metodologia sólida.
O câncer de mama é potencialmente curável, desde que diagnosticado e tratado precocemente. Existem duas abordagens diferentes, porém bastante complementares, para alcançar esse objetivo: (i) downstaging, i.é. ao garantir que a doença clinicamente detectável seja diagnosticada em estágio inicial e (ii) rastreamento, i.é., através da detecção precoce da doença clinicamente oculta, ou seja, antes de apresentar sintomas ou ser palpável no exame clínico (i. é. com tumor < 2cm).
Uma parte importante das diretrizes nacionais brasileiras lida com o rastreamento. A mamografia está longe de ser uma ferramenta de rastreamento perfeita, e está associada tanto a benefícios quanto a danos (p.ex.: falsos-positivos, sobrediagnóstico e sobretratamento, além de cânceres induzidos por radiação ionizante). No entanto, a revisão das evidências publicadas realizada por Migowski et al. confirmou que, apesar das recentes controvérsias, as evidências científicas como um todo confirmam uma redução de 20-25% na mortalidade por câncer de mama através do rastreamento mamográfico a cada dois anos em mulheres entre 50 e 69 anos, com os benefícios superando os eventuais danos. Esses achados corroboram os do Grupo de Trabalho da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) sobre rastreamento de câncer de mama 44. Lauby-Secretan B, Scoccianti C, Loomis D, Benbrahim-Tallaa L, Bouvard V, Bianchini F, et al. Breast-cancer screening: viewpoint of the IARC Working Group. N Engl J Med 2015; 372:2353-8..
Os programas populacionais de rastreamento mamográfico têm sido desenvolvidos em muitos países de renda alta desde o final dos anos 1980, quando foram publicados os resultados dos primeiros estudos randomizados. Desde então houve pressão crescente por grupos nacionais e internacionais em defesa dos sistemas de saúde nos países de renda baixa e média, no sentido de replicar a experiência dos países de renda alta. No entanto, essa demanda tem sido mal interpretada, porque aquilo que funciona nos países de renda alta não se repete necessariamente nos países de renda baixa e média. Os programas populacionais de rastreamento mamográfico são empreendimentos complexos e multidisciplinares que, para serem eficazes, exigem acesso à mamografia de alta qualidade, cobertura alta da população-alvo (pelo menos 70% 55. World Health Organization. Cancer control: early detection. WHO guide to effective programmes. Geneva: World Health Organization; 2007.) com sistema de recall, acesso oportuno aos serviços diagnósticos e terapêuticos para mulheres com alterações suspeitas detectadas pelo rastreamento, além da inclusão de mecanismos abrangentes de garantia de qualidade (p.ex.: equipes de saúde bem-treinadas, protocolos padronizados, metas de desempenho bem-definidas e procedimentos de auditoria regulares). Infelizmente, os sistemas de saúde nos países de renda baixa e média são deficientes, sem a infraestrutura ou os recursos humanos e financeiros para implementar programas como rastreamento em grande escala. Portanto, as tentativas de implementar o rastreamento mamográficos nesses contextos têm resultado em iniciativas oportunistas que são desiguais e muito menos eficazes em comparação com o rastreamento organizado. O Brasil não é exceção - as diretrizes nacionais de 2004 recomendavam que todas as mulheres entre 50 e 69 anos deveriam fazer rastreamento mamográfico a cada dois anos 66. Instituto Nacional de Câncer. Controle do câncer da mama: documento de consenso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer; 2004.; no entanto, mais de uma década depois, a cobertura da faixa etária prioritária permanece baixa (variando desde 27%, com base nos dados do SUS 7, até 51%, com base em autorrelato na Pesquisa Nacional de Saúde88. Azevedo e Silva G, Souza-Junior PRB, Damacena GN, Szwarcwald CL. Early detection of breast cancer in Brazil: data from the National Health Survey, 2013. Rev Saúde Pública 2017; 51 Suppl 1:14s.), com seguimento insuficiente dos casos com achados radiológicos suspeitos (27% na faixa etária de 50 a 59 anos, 63% na faixa de 60 a 69 anos, de acordo com dados do SUS 77. Azevedo e Silva G, Bustamente-Teixeria MT, Aquino EML, Tomazelli JG, dos-Santos-Silva I. Acesso à detecção precoce do câncer de mama no Sistema Único de Saúde: uma análise a partir dos dados do Sistema de Informações em Saúde. Cad Saúde Pública 2014; 30:1537-50.). Ao mesmo tempo, devido à demanda crescente dos grupos de defesa e das sociedades profissionais, os recursos estão sendo desviados para o rastreamento de mulheres fora da faixa etária prioritária, particularmente em mulheres com menos de 50 anos 77. Azevedo e Silva G, Bustamente-Teixeria MT, Aquino EML, Tomazelli JG, dos-Santos-Silva I. Acesso à detecção precoce do câncer de mama no Sistema Único de Saúde: uma análise a partir dos dados do Sistema de Informações em Saúde. Cad Saúde Pública 2014; 30:1537-50.,99. Rodrigues TB. Compliance with mammographic screening recommendations in Minas Gerais, Brazil: historical cohort using SISMAMA data [Dissertação de Mestrado]. London: London School of Hygiene and Tropical Medicine; 2016., e para diminuir a periodicidade para menos de dois anos 99. Rodrigues TB. Compliance with mammographic screening recommendations in Minas Gerais, Brazil: historical cohort using SISMAMA data [Dissertação de Mestrado]. London: London School of Hygiene and Tropical Medicine; 2016., apesar da falta de evidências de que rastreamento em idades mais jovens ou com intervalos mais curtos estejam associados a mais benefícios do que danos. Experiências semelhantes foram observadas em outros países de renda baixa e média, levando o Grupo de Trabalho da IARC a concluir que existem atualmente poucas evidências para a custo-eficácia do rastreamento mamográfico nesses contextos 44. Lauby-Secretan B, Scoccianti C, Loomis D, Benbrahim-Tallaa L, Bouvard V, Bianchini F, et al. Breast-cancer screening: viewpoint of the IARC Working Group. N Engl J Med 2015; 372:2353-8..
Nos países de renda alta, os programas de rastreamento foram introduzidos quando a doença sintomática já estava sendo diagnosticada em estágios mais precoces. Por exemplo, na Noruega no final dos anos 1970, apenas 20% dos cânceres de mama eram diagnosticados em estágios tardios (TNM 1010. American Joint Committee on Cancer. Breast cancer staging. 7th Ed. Atlanta: American Cancer Society; 2009. estágios III/IV) 1111. Lousdal ML, Kristiansen IS, Moller B, Stovring H. Trends in breast cancer stage distribution before, during and after introduction of a screening programme in Norway. Eur J Public Health 2014; 24:1017-22., ou seja, quase duas décadas antes da introdução do rastreamento de rotina no país. No Brasil, ao contrário, aproximadamente 40% dos casos de câncer de mama são diagnosticados em estágios tardios, e essa proporção mudou pouco desde 2004, quando foram publicadas as primeiras diretrizes nacionais para rastreamento 1212. Renna Junior NL, Azevedo e Silva G. Diagnóstico de câncer de mama em estado avançado no Brasil: análise de dados dos registros hospitalares de câncer (2000-2012). Rev Bras Ginecol Obstet 2018; 40:127-36.. A maioria das mulheres diagnosticadas em estágios avançados já teriam sintomas há bastante tempo. Nos países de renda alta, o tempo transcorrido entre o reconhecimento dos sintomas e o diagnóstico costuma ser menos de 30 dias 1313. Arndt V, Sturmer T, Stegmaier C, Ziegler H, Dhom G, Brenner H. Patient delay and stage of diagnosis among breast cancer patients in Germany: a population-based study. Br J Cancer 2002; 86:1034-40.,1414. Nosarti C, Crayford T, Roberts JV, Elias E, McKenzie K, David AS. Delay in presentation of symptomatic referrals to a breast clinic: patient and system factors. Br J Cancer 2000; 82:742-8., nas no Brasil esse intervalo é muito maior (mediana de cerca de 7-8 meses) 1515. Unger-Saldana K. Challenges to the early diagnosis and treatment of breast cancer in developing countries. World J Clin Oncol 2014; 5:465-77.. A demora de três meses ou mais está associada com estágios tardios no momento do diagnóstico e, portanto, pior sobrevida 1616. Richards MA, Westcombe AM, Love SB, Littlejohns P, Ramirez AJ. Influence of delay on survival in patients with breast cancer: a systematic review. Lancet 1999; 353:1119-26..
No Brasil, a grande proporção de mulheres diagnosticadas em estágios avançados, quando as opções terapêuticas são mais limitadas e menos eficazes, chama a atenção para a urgência do downstaging enquanto prioridade nas políticas de controle do câncer de mama. A garantia do diagnóstico precoce do câncer de mama sintomático aumenta significativamente a sobrevida - p.ex.: a sobrevida aos cinco anos no Estado de São Paulo aumenta de 30% quando a doença é diagnosticada no estágio IV, para 82% quando diagnosticada no estágio IIB 1717. Fundação Oncocentro de São Paulo. Sobrevida de pacientes com câncer no Estado de São Paulo: seis anos de seguimento pelo Registro Hospitalar de Câncer. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde/Fundação Oncocentro de São Paulo; 2009. (Cadernos FOSP, 5).. É provável que o downstaging também seja mais custo-efetivo do que o rastreamento, por vários motivos. Primeiro, os recursos se concentram no pequeno grupo de mulheres sintomáticas, e não em uma população muito maior de participantes assintomáticas em um programa de rastreamento, a grande maioria das quais nunca irá desenvolver um câncer de mama. Em segundo lugar, os elementos necessários para os cuidados de saúde no diagnóstico da doença clinicamente detectável são muito menos complexos do que aqueles exigidos para diagnosticar a doença assintomática. Terceiro, é o tratamento precoce que salva vidas, e não a detecção precoce propriamente dita. Portanto, para que o rastreamento mamográfico seja eficaz, as mulheres nas quais são detectadas lesões suspeitas devem ser investigadas rapidamente (p.ex.: com mamografia confirmatória, ultrassom e/ou biópsia), e se o diagnóstico de câncer de mama for confirmado, precisam ser tratadas adequadamente. Apenas um sistema de cuidados oncológicos forte e bem organizado que consiga tratar a doença sintomática de maneira apropriada será capaz de lidar com a demanda adicional associada ao volume grande de mulheres com lesões suspeitas detectadas pelo rastreamento.
Migowski et al. reconhecem que as diretrizes nacionais de 2004 66. Instituto Nacional de Câncer. Controle do câncer da mama: documento de consenso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer; 2004. priorizaram indevidamente o rastreamento mamográfico. As diretrizes brasileiras atualizadas oferecem uma mudança bem-vinda, embora bastante tardia, ao reconhecer pela primeira vez a importância do diagnóstico precoce da doença sintomática, e ao rever as estratégias para alcançar esse objetivo. Entretanto, as estratégias bem-sucedidas no Brasil podem ser diferentes daquelas adotadas em outros países; de fato, diversas estratégias poderão ser necessárias em um país como Brasil com tanta diversidade étnica e socioeconomica. Os estudos sobre a trajetória da mulher desde o reconhecimento dos sintomas até o diagnóstico e tratamento do câncer de mama em diferentes contextos devem identificar as razões da demora e as principais barreiras modificáveis para o acesso ao diagnóstico e tratamento do câncer. Esses estudos deverão contribuir para o desenvolvimento, avaliação e implementação de abordagens localmente apropriadas e culturalmente sensíveis para o diagnóstico e tratamento precoce do câncer de mama no Brasil.
- 1Migowski A, Stein AT, Ferreira CBT, Ferreira DMTP, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. I - Métodos de elaboração. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00116317.
- 2Migowski A, Azevedo e Silva G, Dias MBK, Diz MDPE, Sant'Ana DR, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. II - Novas recomendações nacionais, principais evidências e controvérsias. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00074817.
- 3Migowski A, Dias MBK, Nadanovsky P, Azevedo e Silva G, Sant'Ana DR, Stein AT. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. III - Desafios à implementação. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00046317.
- 4Lauby-Secretan B, Scoccianti C, Loomis D, Benbrahim-Tallaa L, Bouvard V, Bianchini F, et al. Breast-cancer screening: viewpoint of the IARC Working Group. N Engl J Med 2015; 372:2353-8.
- 5World Health Organization. Cancer control: early detection. WHO guide to effective programmes. Geneva: World Health Organization; 2007.
- 6Instituto Nacional de Câncer. Controle do câncer da mama: documento de consenso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer; 2004.
- 7Azevedo e Silva G, Bustamente-Teixeria MT, Aquino EML, Tomazelli JG, dos-Santos-Silva I. Acesso à detecção precoce do câncer de mama no Sistema Único de Saúde: uma análise a partir dos dados do Sistema de Informações em Saúde. Cad Saúde Pública 2014; 30:1537-50.
- 8Azevedo e Silva G, Souza-Junior PRB, Damacena GN, Szwarcwald CL. Early detection of breast cancer in Brazil: data from the National Health Survey, 2013. Rev Saúde Pública 2017; 51 Suppl 1:14s.
- 9Rodrigues TB. Compliance with mammographic screening recommendations in Minas Gerais, Brazil: historical cohort using SISMAMA data [Dissertação de Mestrado]. London: London School of Hygiene and Tropical Medicine; 2016.
- 10American Joint Committee on Cancer. Breast cancer staging. 7th Ed. Atlanta: American Cancer Society; 2009.
- 11Lousdal ML, Kristiansen IS, Moller B, Stovring H. Trends in breast cancer stage distribution before, during and after introduction of a screening programme in Norway. Eur J Public Health 2014; 24:1017-22.
- 12Renna Junior NL, Azevedo e Silva G. Diagnóstico de câncer de mama em estado avançado no Brasil: análise de dados dos registros hospitalares de câncer (2000-2012). Rev Bras Ginecol Obstet 2018; 40:127-36.
- 13Arndt V, Sturmer T, Stegmaier C, Ziegler H, Dhom G, Brenner H. Patient delay and stage of diagnosis among breast cancer patients in Germany: a population-based study. Br J Cancer 2002; 86:1034-40.
- 14Nosarti C, Crayford T, Roberts JV, Elias E, McKenzie K, David AS. Delay in presentation of symptomatic referrals to a breast clinic: patient and system factors. Br J Cancer 2000; 82:742-8.
- 15Unger-Saldana K. Challenges to the early diagnosis and treatment of breast cancer in developing countries. World J Clin Oncol 2014; 5:465-77.
- 16Richards MA, Westcombe AM, Love SB, Littlejohns P, Ramirez AJ. Influence of delay on survival in patients with breast cancer: a systematic review. Lancet 1999; 353:1119-26.
- 17Fundação Oncocentro de São Paulo. Sobrevida de pacientes com câncer no Estado de São Paulo: seis anos de seguimento pelo Registro Hospitalar de Câncer. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde/Fundação Oncocentro de São Paulo; 2009. (Cadernos FOSP, 5).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
21 Jun 2018