Resumos
A despeito dos avanços da Reforma Psiquiátrica e das elevadas taxas de infecção pelo HIV entre usuários de serviços de saúde mental, é evidenciada a falta de políticas de prevenção para essa população. Tal lacuna é agravada pela dificuldade de profissionais de saúde mental em abordar a sexualidade dos usuários de serviços de saúde mental. Este artigo analisa as percepções e práticas dos profissionais de saúde mental sobre esses temas em três modelos de serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Foram realizados oito grupos focais com equipes de profissionais de saúde mental de uma instituição universitária pública, de um Centro de Atenção Psicossocial III (CAPS III) e do Consultório na Rua. Participaram 61 profissionais de saúde mental (40 mulheres e 21 homens), majoritariamente na faixa de 20 e 40 anos, residentes e profissionais de diversas áreas. Os profissionais de saúde mental reconheceram uma maior vulnerabilidade dos usuários de serviços de saúde mental às situações de violência sexual, mas não às IST/aids. Afirmaram ser importante abordar a sexualidade e a prevenção das IST/ aids, todavia, tais temas não aparecem nas discussões em equipe e raramente no dia a dia do cuidado devido à falta de formação e conhecimento dos profissionais de saúde mental, bem como da ausência de diretrizes e orientações institucionais. Os profissionais de saúde mental reconheceram suas dificuldades e reforçaram a importância da construção de espaços de troca de experiências nos serviços. Os achados apontam a necessidade de incorporar a sexualidade e a prevenção das IST/ aids na dinâmica institucional e na formação dos profissionais de saúde mental. Apesar da desinstitucionalização e dos avanços no campo da aids, além da oferta de um cuidado integral e humanizado, tais temas ainda não foram incorporados ao debate na RAPS. Foram indicadas recomendações que visam contribuir na melhoraria da qualidade do cuidado oferecido.
Palavras-chave:
Sexualidade; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Saúde Mental; Pessoal de Saúde; Serviços de Saúde
Despite major strides in the Psychiatric Reform and high HIV rates among users of mental health services, there is a lack of prevention policies for this population. The gap is further aggravated by mental health professionals’ difficulty in approaching the sexuality of mental health care users. The article analyzes the perceptions and practices of mental health professionals concerning these issues in three service models in the Network of Psychosocial Care (RAPS) in the city of Rio de Janeiro, Brazil. Eight focus groups were held with mental health care teams from a public university institution in a Center for Psychosocial Care III (CAPS III) and a Street Outreach Service. A total of 61 health professionals participated (40 women and 21 men), mostly 20 to 40 years of age, both residents and professionals from various health fields. The health professionals identified greater vulnerability of users of mental health care services to situations of sexual violence, and not only to STD/AIDS. They emphasized the importance of addressing sexuality and STD/AIDS prevention; however, these issues do not appear in the team discussions and rarely surface in daily patient care due to their lack of training and knowledge, as well as to the absence of institutional guidelines. The health professionals admitted their difficulties and highlighted the importance of establishing spaces for exchange of experiences in the services. The findings point to the need to incorporate sexuality and STD/AIDS prevention in the institutional dynamics and training of mental health professionals. Despite mental health deinstitutionalization and strides in the AIDS field, in addition to the supply of comprehensive humanized care, such themes have still not been incorporated into the debates in the RAPS. The article concludes with recommendations to help improve the quality of mental health care.
Keywords:
Sexuality; Acquired Immunideficiency Syndrome; Mental Health; Health Personnel; Health Services
Respecto a los avances de la Reforma Psiquiátrica y las elevadas tasas de infección por VIH entre usuarios de servicios de salud mental, se evidencia una falta de políticas de prevención para esta población. Tal laguna se agrava por la dificultad de los profesionales de salud mental en abordar la sexualidad de los usuarios de servicios de salud mental. Este artículo analiza las percepciones y prácticas de los profesionales de salud mental sobre esos temas en tres modelos de servicios de la Red de Atención Psicosocial (RAPS) del municipio de Río de Janeiro, Brasil. Se realizaron ocho grupos focales con equipos de profesionales de salud mental de una institución universitaria pública, de un Centros de Atención Psicosocial III (CAPS III) y de un consultorio en la calle. Participaron 61 profesionales de salud mental (40 mujeres y 21 hombres), mayoritariamente dentro de una franja de 20 a 40 años, residentes y profesionales de diversas áreas. Los profesionales de salud mental reconocieron una mayor vulnerabilidad de los usuarios de servicios de salud mental a situaciones de violencia sexual, pero no a las ETS/SIDA. Afirmaron que era importante abordar la sexualidad y la prevención de las ETS/SIDA, sin embargo, tales temas no aparecen en las discusiones en equipo y raramente en el día a día del cuidado, debido a la falta de formación y conocimiento de los profesionales de salud mental, así como la ausencia de directrices y orientaciones institucionales. Los profesionales de salud mental reconocieron sus dificultades y reforzaron la importancia de la construcción de espacios de intercambio de experiencias en los servicios. Los hallazgos apuntan la necesidad de incorporar la sexualidad y la prevención de las ETS/SIDA en la dinámica institucional y en la formación de los profesionales de salud mental. A pesar de la desinstitucionalización, y de los avances en el campo del SIDA, además de la oferta de un cuidado integral y humanizado, tales temas todavía no fueron incorporados al debate en la RAPS. Se indicaron recomendaciones que tienen como objetivo contribuir a la mejora de la calidad del cuidado ofrecido.
Palabras-clave:
Sexualidad; Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Salud Mental; Personal de Salud; Servicios de Salud
Introdução
No Brasil, a Reforma Psiquiátrica trouxe importantes avanços no campo da Saúde Mental, como o processo de desinstitucionalização, caracterizado pela redução de leitos em hospitais psiquiátricos e implantação de serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico. Orientado pelo princípio da inclusão social das pessoas com transtorno mental, tais mudanças priorizam tratamentos capazes de manter a convivência familiar e social e oferecer acolhimento integral e promoção dos direitos humanos no âmbito da atenção básica 11. Programa Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Prevenção e atenção às IST/AIDS na saúde mental no Brasil: análises, desafios e perspectivas. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. (Série Pesquisas, Estudos e Avaliação, 11)..
Um dos marcos dessa mudança foi a Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001 22. Brasil. Lei n.º 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 abr., que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Outro marco foi a regulamentação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em 2011 33. Ministério da Saúde. Portaria n.º 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 26 dez., que descreve os serviços (também denominados de dispositivos) e ações de atenção psicossocial para pessoas com sofrimento psíquico, transtorno mental ou necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços de saúde municipais, abertos e comunitários, que oferecem atendimentos diários; organizados em cinco modalidades conforme público, horário de funcionamento e tamanho do município.
Os CAPS devem ser circunscritos ao espaço de convívio social dos usuários e objetivam oferecer acompanhamento clínico e reinserção social, pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Segundo a RAPS, as equipes de saúde devem cuidar e fazer a reabilitação psicossocial daqueles que padecem com intenso sofrimento psíquico num determinado território. Os serviços se caracterizam pelo trabalho interdisciplinar da equipe técnica - psiquiatra, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e profissionais de nível médio - responsável por acolher, escutar e oferecer possibilidades terapêuticas no cuidado para pessoas em sofrimento psíquico 44. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. (Série F. Comunicação e Educação em Saúde)..
A construção de uma rede comunitária de cuidados é fundamental para a consolidação da Reforma Psiquiátrica 55. Garcia L, Santana P, Pimentel P, Kinoshita RT. A política nacional de saúde mental e a organização da Rede de Atenção Psicossocial no Sistema Único de Saúde. In: Formigoni MLOS, organizador. O uso de substâncias psicoativas no Brasil. Módulo 1. 5ª Ed. Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas; 2014. p. 122-39.. A articulação dos pontos de atenção - Estratégia Saúde da Família, Núcleo de Apoio à Saúde da Família, Equipe de Consultório na Rua, Centro de Convivência e Cultura, CAPS, Unidades de Acolhimento, Serviços de Atenção em Regime Residencial, de Atenção Hospitalar e Residencial Terapêutico - constitui um conjunto de referências capazes de acolher a pessoa com sofrimento psíquico. Com a consolidação da RAPS, muitas experiências de transformação são revistas ou iniciadas.
Em 2016, dentre os avanços e desafios da Reforma Psiquiátrica, foi destacada a implantação da RAPS, expressa pelo funcionamento de 2.328 CAPS e de 357 Residências Terapêuticas no Brasil. Serviços de saúde mental chegaram a regiões mais interiorizadas do país, e diversos profissionais foram incorporados aos serviços criados. Houve igualmente uma ampliação da discussão dos desafios do processo de desinstitucionalização, como o protagonismo dos usuários, dos familiares e da sociedade e da importância de progredir-se na oferta de serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico 22. Brasil. Lei n.º 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 abr..
A despeito das conquistas assinaladas, a abordagem da sexualidade e da prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (IST)/aids entre os usuários de saúde mental esteve ausente das reflexões dos temas emergentes e relevantes da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica Brasileira 66. Vasconcelos EM. Desafios políticos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. São Paulo: Editora Hucitec; 2010.. A maior vulnerabilidade dos usuários de saúde mental às IST e aids 11. Programa Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Prevenção e atenção às IST/AIDS na saúde mental no Brasil: análises, desafios e perspectivas. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. (Série Pesquisas, Estudos e Avaliação, 11).,77. Amarante P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cad Saúde Pública 1995; 11:491-4.,88. Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. (Coleção Loucura & Civilização). ganhou pouca visibilidade na área da Saúde Mental e nas políticas de aids, no Brasil e no mundo. Na literatura, prevalece a abordagem dos transtornos psiquiátricos de pessoas vivendo com HIV/ aids, decorrentes dos efeitos do HIV 99. Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. Atenção em saúde mental nos serviços especializados em DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (Série B. Textos Básicos de Saúde).. Faltam estudos e diretrizes, nacionais e internacionais, sobre a prevenção da aids entre usuários de saúde mental, visando evitar a infecção do HIV nessa população 1010. World Health Organization. Consolidated guidelines on HIV prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. Geneva: World Health Organization; 2014..
A carência de ações de prevenção contrasta com as elevadas taxas de infecção pelo HIV entre usuários de saúde mental em diversos países 1111. Rosenberg SD. Prevalence of HIV, Hepatitis B, and Hepatitis C in people with severe mental illness. Am J Public Health 2001; 91:31-7.,1212. McKinnon K, Cournos F, Herman R, Le Melle S. HIV and people with serious and persistent mental illness. In: Citron K, editor. HIV & psychiatry: a training and resource manual. Cambridge: Cambridge University Press; 2005. p. 138-52.. Entre 2006 e 2007, foi conduzido o primeiro estudo multicêntrico brasileiro sobre soroprevalência da infecção pelo HIV, sífilis, hepatite B e C na população de usuários de serviços de saúde mental. O estudo envolveu pessoas internadas em hospitais psiquiátricos públicos e usuários de serviços substitutivos, como CAPS 11. Programa Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Prevenção e atenção às IST/AIDS na saúde mental no Brasil: análises, desafios e perspectivas. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. (Série Pesquisas, Estudos e Avaliação, 11)., de todas as regiões do país. Segundo os achados 1313. Guimarães MDC, Campos LN, Melo APS, Carmo RA, Machado CJ, Acurcio FA, et al. Prevalence of HIV, syphilis, hepatitis B and C among adults with mental illness: a multicenter study in Brazil. Rev Bras Psiquiatr 2009; 31:43-7., as taxas de infecção nessa população foram de 0,8% para o HIV, 14,7% para hepatite B, 2,6% para hepatite C e 1,1% para sífilis; taxas significativamente mais elevadas (até 3 vezes) quando comparadas às taxas da população geral à época 1414. Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico AIDS e DST 2016; Ano V, nº 1.. Tais dados indicam uma maior vulnerabilidade dos usuários de serviços de saúde mental e apontam para a necessidade de se criar políticas de prevenção às IST/ aids para essa população.
A maior vulnerabilidade dos usuários de serviços de saúde mental à infecção pelo HIV está relacionada à dificuldade em estabelecer uniões estáveis, às desvantagens sociais e econômicas, à frequência de abuso sexual e ao juízo crítico prejudicado, principalmente nas intercorrências psiquiátricas. Demais fatores, como impulsividade e baixa autoestima do usuários de serviços de saúde mental, somada à dificuldade dos profissionais de saúde mental em abordar a sexualidade dos usuários, comprometem ações de prevenção das IST/ aids 1515. Seeman MV, Lang M, Rector N. Chronic schizophrenia: a risk factor for HIV? Can J Psychiatry 1990; 35:765-8.,1616. Aruffo JF, Coverdale JH, Chacko RC, Dworkin RJ. Knowledge about AIDS among women psychiatric outpatients. Hosp Community Psychiatry 1990; 41:326-8.,1717. Cournos F, Empfield M, Horwath E, McKinnon K, Meyer I, Schrage H, et al. HIV seroprevalence among patients admitted to two psychiatric hospitals. Am J Psychiatry 1991; 148:1225-30.,1818. Kelly JA, Murphy DA, Bahr GR, Brasfield TL, Davis DR, Hauth AC, et al. AIDS/HIV risk behavior among the chronic mentally ill. Am J Psychiatry 1992; 149:886-9.,1919. Menon AS, Pomerantz S, Harowitz S, Appelbaum D, Nuthi U, Peacock E, et al. The high prevalence of unsafe sexual behaviors among acute psychiatric inpatients: implications for AIDS prevention. J Nerv Ment Dis 1994; 182:661-6.. A despeito de os profissionais de saúde mental se preocuparem com os riscos de os usuários de serviços de saúde mental se infectarem nas relações sexuais dentro do espaço institucional 2020. Mann CG. Sexualidades & saúde mental: um olhar institucionalizado. In: Amarante P, organizador. A loucura na (da) história. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2002; p. 309-31.,2121. Pinto DS, Mann CG, Wainberg M, Mattos P, Broxado SB. Sexuality, vulnerability to HIV, and mental health: an ethnographic study of psychiatric institutions. Cad Saúde Pública 2007; 23:2224-33.,2222. Wainberg M, McKinnon K, Elkington KS, Mattos P, Mann CG, Pinto D. HIV risk behaviors among outpatients with severe mental illness in Rio de Janeiro, Brazil. World Psychiatry 2008; 7:166-72., faltam ações de prevenção das IST/ aids nessa população; o que priva esses sujeitos do acesso a informações e ações sobre direitos sexuais, riscos de abuso e exploração sexual, dentro e fora da instituição 99. Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. Atenção em saúde mental nos serviços especializados em DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (Série B. Textos Básicos de Saúde).,2323. Oliveira SB. Loucos por sexo: um estudo sobre a vulnerabilidade dos usuários dos serviços de saúde mental [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1998..
As lacunas assinaladas reiteram que a sexualidade de pessoas com transtorno mental tem sido tratada apenas pelo seu aspecto patológico, a partir da configuração de sintomas e anomalias. Prevalece a visão de que os “mentalmente enfermos”, especialmente os institucionalizados, não têm condições de levar uma vida sexualmente ativa segundo os padrões de “normalidade” definidos socialmente 2424. Birman J. Sexualidade na Instituição Asilar. Rio de Janeiro: Achiamé; 1980.. A noção de padrões de “normalidade” nos remete à contribuição das reflexões no campo das ciências sociais, centradas na concepção da sexualidade como construção social e histórica, opondo-se ao essencialismo que paira sobre as condutas e significados do que seja sexual, restrito às dimensões psíquicas e reprodutivas 2525. Parker R. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller; 1991.,2626. Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 1993..
Em suma, mesmo com novos dispositivos e abordagens voltadas para a inclusão social e o resgate da cidadania dos indivíduos portadores de transtorno mental 66. Vasconcelos EM. Desafios políticos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. São Paulo: Editora Hucitec; 2010., a sexualidade do usuários de serviços de saúde mental e a prevenção das IST/ aids na saúde mental não têm sido incorporadas ao debate. Para avançar nessa discussão, este trabalho objetiva caracterizar como a sexualidade e a prevenção das IST/ aids são abordadas em diferentes tipos de serviços de saúde mental no Município do Rio de Janeiro, tendo, por base, grupos focais (GF) realizados com 61 profissionais de saúde mental.
Procedimentos metodológicos
Trata-se de um estudo qualitativo, orientado pelas contribuições das ciências sociais na compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos sociais acerca do tema pesquisado. Ao focalizar a dimensão subjetiva e interpretativa de aspectos da vida social, tal perspectiva favorece a compreensão das relações entre os sistemas culturais, estruturas sociais e as visões e práticas sociais dos sujeitos sociais 2727. Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes; 1994.. Tal perspectiva é coerente com o objetivo de identificar e analisar as crenças, os valores e as práticas dos profissionais de saúde mental acerca da abordagem da sexualidade e da prevenção das IST/ aids no contexto do cuidado do transtorno mental.
Como estratégia metodológica, optou-se pela realização de GF por permitir o diálogo entre membros do grupo, fornecendo elementos para a compreensão das representações intersubjetivas das normas culturais, bem como das visões de mundo dos indivíduos e grupos sociais. Conforme destaca Flick 2828. Flick U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2ª Ed. Porto Alegre: Bookman; 2004. (p. 124), cria-se “uma situação interativa mais próxima da vida cotidiana que permite o encontro do entrevistador com o entrevistado”. Embora tal abordagem metodológica revele limitações para apreender a complexidade de um tema tabu, como a sexualidade, tal estratégia possibilita identificar as ideias que emergem sobre o conceito no grupo.
Durante os GF, foram abordados: (1) temáticas relevantes para a prática dos profissionais de saúde mental e assuntos difíceis de serem trabalhados pela equipe dos serviços; (2) os significados atribuídos pelos profissionais de saúde mental sobre o tema da sexualidade no campo da Saúde Mental e as abordagens da sexualidade na prática com usuários de serviços de saúde mental; (3) presença de diretrizes ou suporte institucional para profissionais de saúde metal sobre sexualidade ou IST/ aids; (4) caracterização do enfoque da sexualidade e da prevenção das IST/ aids na formação acadêmica e na trajetória profissional dos participantes.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, e pelas demais instituições coparticipantes (CAAE nº 42646415.1.0000.5240). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Universo do estudo e processo de recrutamento
No Município do Rio de Janeiro, os serviços de assistência à saúde mental incluem: 13 CAPS tipo II (para municípios com até 200 mil habitantes); oito CAPSi (exclusivos para crianças e adolescentes); três CAPSad tipo II (para crianças, adolescentes e adultos usuários de álcool e drogas); quatro CAPSad tipo III (para usuários de álcool e drogas, com funcionamento 24h); cinco CAPS tipo III (para municípios com até 200 mil habitantes, porém com funcionamento 24h); 82 residências terapêuticas e sete equipes de Consultório na Rua. Há quatro hospitais municipais especializados em saúde mental e dois grandes serviços, com ambulatório, internação e hospital-dia, servindo de referência para o Grande Rio: o Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ) e o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ).
Com o intuito de abarcar diferentes modelos de serviços da RAPS, foram contemplados, na pesquisa, profissionais de saúde mental que trabalham numa instituição psiquiátrica universitária de grande porte, num CAPS III ou no Consultório na Rua; todos no Município do Rio de Janeiro. Não foram delimitadas, a priori, categorias profissionais, escolaridade ou tempo de atuação profissional, sendo priorizados o cuidado e o contato direto e diário com usuários de serviços de saúde mental.
O recrutamento dos profissionais de saúde mental se deu por contato prévio com os coordenadores dos serviços para expor os objetivos do estudo. O fato de o primeiro autor ter uma longa inserção no campo da Saúde Mental foi um facilitador pela familiaridade com as estruturas dos serviços e o conhecimento de profissionais nesse campo. O agendamento dos GF foi feito pelos coordenadores dos serviços, buscando data e horário adequados aos profissionais.
Os oito GF foram realizados nos próprios serviços: quatro na instituição universitária (com profissionais do ambulatório, hospital-dia, internação e residência multiprofissional em saúde mental), dois no CAPS III e dois no Consultório na Rua, envolvendo duas das sete equipes existentes, com mais tempo de existência na RAPS.
Perfil dos participantes
Participaram do estudo quarenta mulheres e 21 homens, na faixa de 23 a mais de 50 anos, com períodos diferenciados de atuação no serviço. A maior parte era de profissionais com nível superior (80,3%), divididos em diversas categorias: 12 residentes multiprofissionais em saúde mental; dez psicólogos; nove enfermeiros; seis médicos/psiquiatras; seis terapeutas ocupacionais; quatro assistentes sociais e um musicoterapeuta. Entre os profissionais de nível médio, participaram sete auxiliares/técnicos em enfermagem; quatro agentes comunitários de saúde (ACS) e um oficineiro. Dos 44 participantes com nível superior, um enfermeiro e um terapeuta ocupacional realizaram pós-graduação sobre sexualidade humana. Os GF foram realizados com até 12 profissionais, numa média de sete participantes por grupo.
Nos depoimentos dos 61 participantes dos oito grupos focais, citados nos resultados, foi indicada a atuação profissional do depoente, gênero, idade e filiação institucional. Os participantes da instituição universitária foram numerados de 1 a 27 e pela sigla (IU); os do Consultório na Rua, numerados 1 a 15 e pela sigla CNAR; e os do CAPS III, numerados de 1 a 19 e pela sigla CAPS.
Análise dos dados
Para análise dos relatos dos profissionais, foi utilizada a técnica de codificação ou categorização temática que objetiva “expressar dados e fenômenos na forma de conceitos” 2828. Flick U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2ª Ed. Porto Alegre: Bookman; 2004. (p. 277). A aplicação de nomes a passagens de texto não é arbitrária, envolvendo um processo deliberado e refletido de categorização do conteúdo do texto 2828. Flick U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2ª Ed. Porto Alegre: Bookman; 2004.. Após a criação das categorias, os dados foram organizados com o auxílio de um programa de análise qualitativa, o MAXQDA 11 (VERBI GmbH, Berlim, Alemanha. https://www.maxqda.com/products/more-new-features).
Sexualidade e aids entre usuários de serviços de saúde metal: o olhar e a prática dos profissionais
Formação profissional e diretrizes institucionais
Com base nos relatos, depreende-se que os temas da sexualidade e da prevenção às IST/ aids entre pessoas com transtorno mental não fizeram parte da formação profissional (cursos técnicos, graduação e pós-graduação) dos participantes. Segundo alguns médicos e enfermeiros, o exercício da sexualidade foi relacionado apenas à reprodução sexual ou às IST e, entre os psicólogos, a partir da teoria psicanalítica. A fala é ilustrativa:
“Nenhum de nós tem uma formação específica para lidar com sexualidade. Nós temos na medicina um curso que vai ensinar sobre doenças venéreas e prevenções, mas o manejo clínico com o paciente numa instituição psiquiátrica o que é privilegiado é a doença mental. Mas, no âmbito maior da doença mental, a questão da sexualidade não ganha o mesmo interesse. Se a pessoa ouvir vozes, isso aí ganha grande relevo. Se a pessoa estiver transando, não” (IU7, médico psiquiatra, 55 anos).
Os achados confirmam a afirmação de Souza 2929. Souza MCMR. Representações de profissionais da saúde mental sobre sexualidade de pessoas com transtorno mentais [Tese de Doutorado]. Belo Horizonte: Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais; 2014. sobre a ausência da discussão sobre as dimensões socioculturais da sexualidade em grande parte dos currículos de formação na área da saúde em geral, e da saúde mental em particular. Soma-se a essa lacuna, uma abordagem fragmentada das disciplinas, focada no tratamento de doenças e/ou na discussão psicanalítica em detrimento de uma capacitação para preparar os profissionais para uma prática integral da sexualidade no cuidado, que contemple seus aspectos psicossociais e culturais.
Durante o GF, foi relatado que sexualidade e prevenção das IST/ aids também não fazem parte das diretrizes e ações institucionais dos serviços investigados; ademais, não são citados como assuntos relevantes no cotidiano da prática do cuidado.
“Aqui, no serviço, pela residência multiprofissional, um dos temas que se discute muito é o da desinstitucionalização, principalmente com os pacientes de longa permanência, isso, para gente, é um tema relevante” (IU22, enfermeira, 31 anos).
Quanto aos desafios e as dificuldades na implementação da Reforma Psiquiátrica, os participantes citaram o processo de desinstitucionalização, a participação dos familiares, a violência em territórios dos serviços, a articulação entre a equipe do serviço e a necessidade de suporte para os profissionais de saúde mental. Novamente, a sexualidade e a IST/ aids entre os usuários de serviços de saúde mental não foram referidas, reiterando o silêncio desses assuntos na luta antimanicomial.
Prática cotidiana: as demandas sobre sexualidade do usuários de serviços de saúde de mental
Segundo os depoimentos, o exercício da sexualidade do usuários de serviços de saúde mental apenas é tratado quando o usuário traz o assunto no atendimento, diante de casos de violência sexual na instituição ou de algum risco perceptível de transmissão de IST/ aids. Interessante observar que os profissionais, quando indagados acerca da prevalência das IST/HIV entre os usuários de serviços de saúde mental, revelaram desconhecimento e falta de reflexão sobre o assunto. Todavia, quando questionados sobre os casos de violência sexual nessa população, reconhecem a recorrência de casos de diferentes tipos, incluindo a violência sexual, ilustrada na fala:
“A minha pouca experiência aqui no CAPS, durante dois anos que fiz acolhimento, todo mundo teve história de estupro na família... isso é comum. Não necessariamente psicóticos, mas assim... parece que tem uma prevalência maior...” (CAPS13, Enfermeira, 31 anos).
Na visão dos profissionais de saúde mental, os usuários não aparentam vergonha ou constrangimento em compartilhar suas experiências sexuais. Parece que o assunto está antes associado a uma demanda espontânea do usuário do que a uma iniciativa do profissional. A abordagem da sexualidade é classificada pelos profissionais de saúde mental como uma dimensão da intimidade do usuário, com a qual o profissional não está disposto ou preparado para lidar. Assim, quando surge o assunto, busca-se encaminhar para outro profissional mais preparado para aquela situação:
“Nem sempre um profissional da área da saúde ele tem de chegar mais íntimo do que o compromisso básico. Se você perguntar da sexualidade, a pessoa vai começar a contar da vida dela, vai começar a contar várias coisas, e você vai abrir um outro leque de reações. E nem sempre um profissional está disposto a mergulhar na vida do outro assim” (IU7, médico psiquiatra, 55 anos).
Muitos participantes reconhecem que a abordagem da sexualidade na saúde mental ainda segue o modelo biomédico clássico de atenção e cuidado à saúde, centrado na doença, na clínica e na assistência individual e curativa 3030. Lima JC, Binsfeld L. O trabalho do enfermeiro na organização hospitalar: núcleo operacional autônomo ou assessoria de apoio ao serviço médico? Rev Enferm UERJ 2003; 11:98-103.. Na prática dos profissionais, predomina uma visão estigmatizante sobre o descontrole da sexualidade do usuário de serviços de saúde mental relacionada diretamente aos sintomas do transtorno. Se o indivíduo vivencia a fase hipomaníaca, apresenta uma hiperssexualidade; se está em um quadro depressivo, sua libido estará afetada e, consequentemente, o exercício de sua sexualidade 3131. Elkington KS, McKinnon K, Mann CG, Collins PY, Leu C, Wainberg M. Perceived mental illness stigma and hiv risk behaviors among adult psychiatric outpatients in Rio de Janeiro, Brazil. Community Ment Health J 2009; 46:56-64.,3232. Ribeiro BT, Pinto DS, Mann CG. Mental healthcare professionals' role performance: challenges in the institutional order of a psychiatric hospital. In: Hamilton HE, Chou W-YS, editors. The Routledge handbook of language and health communication. Abingdon: Routledge; 2014. p. 389-406.,3333. Mann CG. HIV & loucura: os dois lados da mesma moeda [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1997.:
“O que a gente vê é que a Saúde Mental é só a Saúde Mental, né? Assim, o paciente psiquiátrico é só a cabeça. Ele não tem um corpo, ele não precisa ir a outros médicos, ele não transa, ele não faz nada. Ele é só um doente” (IU1, enfermeira, 24 anos).
Na instituição universitária, há uma maior preocupação com os “pacientes” internados, pois as consequências das manifestações da sexualidade podem representar risco do ponto de vista jurídico, dado que, durante a internação, o sujeito encontra-se sob tutela ou responsabilidade daquela instituição. Caso surjam situações como gravidez indesejada ou transmissão de alguma IST/HIV, há a possibilidade de a instituição sofrer sanções legais pelos familiares ou pelos próprios usuários de serviços de saúde mental. Nos CAPS, há uma maior autonomia dos sujeitos, porém, os profissionais alegam ser difícil conciliar as necessidades do serviço e dos usuários de serviços de saúde mental envolvidos em relacionamentos íntimos.
As divergências observadas ocorrem mais entre os contextos institucionais investigados do que entre os profissionais de saúde mental do mesmo GF, possivelmente em função da complexidade dos serviços da RAPS e da heterogeneidade do tempo de experiência das equipes profissionais. A despeito dessas diferenças, o “controle” da sexualidade do usuários de serviços de saúde mental, na prática do “cuidado” diário, é um grande desafio para todos os profissionais. Nos relatos dos profissionais de saúde mental, nota-se a falta de clareza sobre o que deve ser permitido quando se aborda a sexualidade do usuários de serviços de saúde mental. Tendo em vista o entrelaçamento entre “descontrole” da sexualidade, loucura e estigma da doença mental 3232. Ribeiro BT, Pinto DS, Mann CG. Mental healthcare professionals' role performance: challenges in the institutional order of a psychiatric hospital. In: Hamilton HE, Chou W-YS, editors. The Routledge handbook of language and health communication. Abingdon: Routledge; 2014. p. 389-406., parece haver dúvidas sobre os parâmetros do comportamento sexual dos usuários de serviços de saúde mental que devem ser aceitos e estimulados na prática do cuidado:
“O paciente de saúde mental é diferente de outro paciente. O paciente comum a gente orienta: ‘olha, a camisinha, usa, não sei o quê’ e, claro, a gente dá as informações científicas de como a pessoa pode se prevenir e como ela vai fazer é problema dela. Eu não sei, na verdade, se o paciente de Saúde Mental... parece, que é diferente. (...) se ele tá em surto, naquela coisa involuntária... eu acho que deve ser mais difícil. Acho que ele, ao contrário daquele que está mais apaziguado, a gente já faz um certo controle, sabe que não vai transar aqui na sala. Se já é difícil pra quem tá ‘centrado’ entre aspas, imagina pra quem não tá?” (CNAR14, psicóloga, 56 anos).
Pelos depoimentos depreende-se que cada profissional adota a postura que considera mais acertada, sem que o tema seja debatido pela equipe e demais funcionários da instituição. Parte dos profissionais procura orientar o usuários de serviços de saúde mental de que ele está internado para realizar tratamento e não para ter envolvimento emocional e/ou sexual. Tal enfoque sugere que as expressões da sexualidade podem apenas ser exercidas em circunstâncias adequadas, ou seja, fora do espaço institucional 2323. Oliveira SB. Loucos por sexo: um estudo sobre a vulnerabilidade dos usuários dos serviços de saúde mental [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1998..
“Controle dentro da enfermaria é algo muito complexo, já falei disso várias vezes. Acho que, na verdade, não é obrigação nossa quando uma pessoa ou algum paciente quer fazer sexo, ele tem que buscar lá fora. (...) O problema são os outros pacientes, os que sofrem abusos” (IU18, médico psiquiatra, 39 anos).
A distribuição de preservativos na instituição, principalmente no setor de internação, foi considerada problemática. Para alguns profissionais, a oferta do preservativo pode proteger os usuários de serviços de saúde mental das IST/ aids, mas eles têm receio que “estimule” a prática sexual no espaço institucional. Há igualmente dúvidas se a permissão para o exercício saudável da sexualidade é compatível com a responsabilidade da instituição de “cuidar” dos usuários de serviços de saúde mental, percebidos como incapazes de controlar a sua sexualidade. Nota-se, assim, o dilema entre negar a atividade sexual e, desse modo, destituir o indivíduo de sua cidadania ou aceitar essas práticas e assumir suas implicações para a assistência. Tal dilema se expressa pela preocupação dos profissionais de saúde mental com os riscos das relações sexuais desprotegidas entre usuários de serviços de saúde mental, contraposta às dúvidas quanto à pertinência da oferta do preservativo na instituição.
“Algumas pessoas se você distribui preservativo é como se você estivesse estimulando e permitindo. Aí se você não distribui, as coisas estão de certa forma acontecendo, e você não tá de certa forma estimulando, mas as coisas acontecem. E tem a questão da família. ‘Ah, viu, aconteceu, minha filha’ aí acha que a filha foi violentada. Então, tem uma coisa que a instituição fica ali naquela dificuldade” (IU8, médica psiquiatra, 49 anos).
Como apontado por Birman 2424. Birman J. Sexualidade na Instituição Asilar. Rio de Janeiro: Achiamé; 1980. a sexualidade do indivíduo portador de transtorno mental ainda é associada ao seu quadro clínico, o que faz com que os profissionais de saúde mental enfrentem o dilema entre controlar ou cuidar da expressão da sexualidade do usuários de serviços de saúde mental. Muitos apontaram essa tênue linha como uma das grandes dificuldades na abordagem da sexualidade desses usuários de serviços de saúde mental, associada à falta de diretrizes e/ou ações institucionais.
Reconhecimento da falta de formação e disponibilidade para o debate
Ao serem indagados sobre como poderiam ser orientados para abordar sexualidade e prevenção de IST/ aids junto aos usuários de serviços de saúde mental, a maioria apontou o momento do grupo focal como um espaço oportuno de discussão e troca. A instituição poderia organizar oficinas, palestras, cursos ou rodas de conversas regulares para discutir tais temas associados aos casos, dado que o espaço do serviço é mais viável para reunir as pessoas.
Apesar da motivação para a abordagem da sexualidade e prevenção das IST/ aids, os participantes reconhecem desafios para implementar os diversos modelos de intervenção em função: da falta de tempo, da dificuldade para conciliar as agendas, da alta rotatividade de profissionais e da necessidade de supervisão de um especialista no assunto. A despeito dessas dificuldades, em todos os GF, foi assinalada a importância da construção de um espaço de troca de experiências e discussões sobre sexualidade e prevenção das IST/ aids no campo da saúde mental. Inclusive, foram feitas sugestões para solucionar os desafios enumerados, como a oferta de diversos horários e espaçamento dos encontros para não interferir na rotina dos serviços.
Os achados apontam que é difícil falar sobre aids e sexualidade no cuidado em saúde mental, mas os profissionais indicaram disponibilidade e interesse. Um deles afirmou quanto mais os profissionais de saúde mental discutirem sobre meios de criar, melhorar e/ou manter espaços para discussão na clínica diária do cuidado, menos complicado e mais natural poderá ser lidar com as demandas e dúvidas dos usuários de serviços de saúde mental acerca da sexualidade e da prevenção das IST/ aids.
Discussão
Os resultados dos GF com profissionais de saúde mental de três diferentes dispositivos da RAPS permitiram identificar as lacunas existentes na formação e na prática profissional no que tange à sexualidade e à prevenção das IST/ aids junto aos usuários de serviços de saúde mental. Para determinadas categorias profissionais, o foco é na etiologia e no cuidado com as IST/ aids ou na teoria psicanalítica, dissociada de uma reflexão sobre a abordagem sociocultural e histórica da sexualidade, presente nas ciências sociais 2525. Parker R. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller; 1991.,2626. Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 1993.,3434. Carrara S, organizador. Curso de especialização em gênero e sexualidade. Rio de Janeiro: Editora do Centro de Estudos, Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico em Saúde Coletiva/Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; 2010..
Diante da falta de formação e de diretrizes institucionais, constatou-se que a sexualidade e as IST/ aids raramente são abordadas no atendimento ao usuários de serviços de saúde mental; ademais, não aparecem nas reuniões de equipe como um tema relevante. Por conta desse despreparo e do surgimento das demandas dos usuários de serviços de saúde mental no cotidiano da clínica do cuidado, alguns participantes buscam, por conta própria, formações complementares. Todavia, não há espaços para compartilhamento das experiências entre os membros da equipe nem com a coordenação dos serviços.
Os achados reiteram que, a despeito dos avanços da Reforma Psiquiátrica no mundo e no Brasil sobre a desinstitucionalização e a oferta de um cuidado mais integral e humanizado aos usuários de serviços de saúde mental, a sexualidade e a saúde sexual não têm sido incorporadas ao debate. Nota-se que o exercício da sexualidade dos usuários de serviços de saúde mental não é considerado como um direito dessa população, que se encontra em condições de maior vulnerabilidade ao abuso sexual e às IST/ aids.
Vale ressaltar que, no novo modelo assistencial aos usuários de serviços de saúde mental, estimulam-se as trocas interpessoais como medida terapêutica, e há uma maior valorização do indivíduo como uma pessoa singular e possuidora de desejos. Como destacado por Birman & Serra 3535. Birman J, Serra A. Os descaminhos da subjetividade: um estudo da instituição psiquiátrica no Brasil. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1988., o indivíduo com transtorno mental, antes visto como incapaz de expressar seus sentimentos, acaba sendo estimulado a construir laços relacionais dentro e fora da Instituição Psiquiátrica. Nesse cenário, a convivência possibilita uma maior circulação de afeto, não mais encarado como um distúrbio, embora continue a ser regulada. Esse convívio produz como efeito o “aparecimento” da sexualidade.
No entanto, desde o surgimento da Psiquiatria Clássica, ainda predomina uma concepção distorcida da sexualidade das pessoas com transtornos psiquiátricos. Ao considerar a atividade sexual dos usuários de serviços de saúde mental como anômala, essa passa a ser objeto de uma pedagogia institucional nos espaços de assistência, estruturada a partir dos valores morais. Será, então, pela culpabilização e pela proibição, que a instituição psiquiátrica vai fornecer ao usuários de serviços de saúde mental a direção para os seus desejos, ensinando-lhe “o justo gozo e a satisfação correta” 3535. Birman J, Serra A. Os descaminhos da subjetividade: um estudo da instituição psiquiátrica no Brasil. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; 1988. (p. 130). Tal perspectiva tem privado esses sujeitos do acesso a informações sobre sexualidade, direitos, riscos de abuso e exploração sexual.
Cabe assinalar que o surgimento da aids, nos anos 1980, somado aos movimentos sociais feministas e da população LGBT impulsionaram as investigações sobre a sexualidade no campo das ciências sociais e a luta política por direitos sexuais e reprodutivos. A partir das contestações dos movimentos feministas da segunda metade do século XX e dos movimentos de sexualidades não hegemônicas, tais atores sociais têm tido papel relevante na construção da sexualidade e da reprodução sexual como sendo da ordem do direito à livre expressão 3434. Carrara S, organizador. Curso de especialização em gênero e sexualidade. Rio de Janeiro: Editora do Centro de Estudos, Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico em Saúde Coletiva/Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; 2010.. No entanto, no campo da saúde mental, a despeito das iniciativas dos movimentos sociais organizados, os direitos sexuais e reprodutivos não têm sido contemplados ou discutidos na agenda desses movimentos. Prevalece o silêncio e a invisibilidade da temática.
A realização dos GF proporcionou reflexões acerca da prática coletiva de cuidados aos usuários de serviços de saúde mental nos serviços e das possibilidades de solucionar as lacunas nas formações profissionais. Importante destacar que os participantes do estudo reconhecem as dificuldades para abordar esse tema no cuidado aos usuários de serviços de saúde mental e revelam interesse e disponibilidade para participarem de discussões com a equipe. Grande parte sugeriu a criação de oficinas ou rodas de conversa regulares sobre aids e sexualidade na instituição com o intuito de preencher lacunas na formação profissional, orientadas por profissionais com experiência na área. Alguns argumentaram que as intervenções deveriam ser direcionadas tanto para profissionais formados quanto para os cursos de graduação e pós-graduação. Tal enfoque é coerente com as reflexões sobre as relações entre saberes e práticas 3636. Bourdieu P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996., haja vista que a formação profissional pode ser compreendida como uma construção de saberes e conhecimentos que vai desde os processos de ensino mais formais até a prática profissional exercida diariamente 3737. Mora C, Monteiro S, Moreira COF. Education, practices and paths of counselors at HIV testing centers in Rio de Janeiro, Brazil. Interface Comun Saúde Educ (Online) 2015; 19:1145-56.,3838. Rufino AC, Madeiro AP. Teaching sexuality in Brazilian medical schools. Einstein (São Paulo) 2015; 13:vii-viii..
Este estudo apresenta limitações pela pequena abrangência de serviços da RAPS, pela ausência de observações etnográficas nesses serviços e pela técnica do GF não permitir um aprofundamento das trajetórias individuais. No entanto, seus achados atualizam e aprofundam dados da literatura no contexto local. Ademais, permitem avançar no desafio da incorporação da sexualidade e da prevenção das IST/ aids no cuidado aos usuários de serviços de saúde mental ao caracterizar as visões dos profissionais de saúde mental e a abordagem desses temas no cotidiano dos serviços de saúde mental.
Conclusões e recomendações
A importância da inserção do tema da sexualidade nos currículos das escolas das áreas das ciências e práticas do cuidado e nas diretrizes institucionais se justifica pela associação entre sexualidade e saúde entre os diferentes grupos populacionais. Tem-se, portanto, a expectativa que os profissionais de saúde sejam capazes de prestar assistência sobre sexualidade e saúde sexual, incluindo os usuários de serviço de saúde mental. No entanto, a adequada assistência fica comprometida em função do despreparo profissional 3838. Rufino AC, Madeiro AP. Teaching sexuality in Brazilian medical schools. Einstein (São Paulo) 2015; 13:vii-viii., da ausência de diretrizes institucionais e do desconhecimento da equipe de profissionais acerca dos aspectos socioculturais, políticos e históricos que conformam as representações e práticas sexuais dos diversos grupos populacionais. É preciso problematizar sobre o “controle” e o “cuidado” excessivo dos profissionais em relação à sexualidade dos usuários de serviços de saúde mental em nome da sua “segurança” e da responsabilidade institucional.
Com base nos achados do estudo, cabe propor algumas recomendações visando colaborar para uma melhoria na qualidade do cuidado oferecido pelos profissionais de saúde mental aos usuários de serviços de saúde mental no que se refere à sexualidade e à prevenção das IST/ aids. Um aspecto relevante diz respeito à importância da inserção nos currículos da graduação e pós-graduação dos profissionais de saúde, principalmente os de saúde mental, de conteúdos sobre os aspectos socioculturais da sexualidade e formas de abordagem do tema entre os usuários de serviços de saúde mental 3232. Ribeiro BT, Pinto DS, Mann CG. Mental healthcare professionals' role performance: challenges in the institutional order of a psychiatric hospital. In: Hamilton HE, Chou W-YS, editors. The Routledge handbook of language and health communication. Abingdon: Routledge; 2014. p. 389-406.. De forma complementar, seria importante criar, nos serviços da RAPS, espaços de sensibilização continuados sobre os temas (cursos, rodas de conversa, oficinas...) para a equipe dos profissionais de saúde mental, visando ao debate de casos e de procedimentos institucionais, como assinalado pelos participantes.
Outra recomendação é retomar os investimentos em cursos de capacitação para profissionais de saúde mental no manejo da sexualidade e discussão da prevenção das IST/ aids, tal como promovido pelo Ministério da Saúde, entre 2001 e 2007. O curso teve como objetivo sensibilizar os profissionais de saúde mental, de todas as regiões do Brasil, a partir de aulas teóricas e práticas sobre sexualidade dos usuários de serviços de saúde mental e sexo seguro. Tal iniciativa poderia ser adaptada para a necessidade de cada serviço da RAPS, seguida por uma contínua avaliação sobre seus impactos.
O referido curso foi uma oportunidade ímpar de aproximação entre os vários serviços, possibilitando a articulação entre as Coordenações de Saúde Mental e IST/ aids em diversos estados. Nesse sentido, cabe reiterar a relevância dessa parceria no âmbito local para fomentar a integração entre os saberes e proporcionar os espaços de troca e aporte técnico-científico para as equipes das instituições da RAPS. A necessidade de colaboração e fortalecimento da articulação entre a Coordenação de Saúde Mental e o Departamento de IST, aids e Hepatites Virais foi citada no documento Atenção em Saúde Mental nos Serviços Especializados em DST/ aids 99. Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. Atenção em saúde mental nos serviços especializados em DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (Série B. Textos Básicos de Saúde)., visando a ações que ultrapassem a estratégia de redução de danos dirigida aos usuários de álcool e outras drogas. Segundo o documento, tal colaboração deve acontecer também “por meio de editais conjuntos de projetos de ONG, universidades e secretarias estaduais e municipais” 99. Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. Atenção em saúde mental nos serviços especializados em DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (Série B. Textos Básicos de Saúde). (p. 118).
Ainda há muito que se fazer para alcançar uma real integralidade no cuidado aos usuários de serviços de saúde mental. A partir da presente análise, objetiva-se estimular a abordagem de temas ainda negligenciados como a sexualidade e a prevenção das IST/ aids no atendimento ao usuário da saúde mental. Para tanto, além da visão dos profissionais de diferentes dispositivos da RAPS, faz-se necessário contemplar, em estudos futuros, a perspectiva dos usuários sobre a Reforma Psiquiátrica 3939. Andrade AP, Maluf SW. Cotidianos e trajetórias de sujeitos no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira. In: Fleisher S, Ferreira J, organizadores. Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond; 2014. p. 33-56., bem como aprofundar a compreensão acerca da invisibilidade da abordagem sociológica da sexualidade dos usuários de serviços de saúde mental.
Agradecimentos
Este estudo é parte da Tese de Doutorado apresentada na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), e foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), nos dois primeiros anos do curso de doutoramento, e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelo Programa “Doutorado Nota 10” (Edital 01/2015), nos últimos dois anos.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Ago 2018
Histórico
- Recebido
11 Maio 2017 - Revisado
30 Dez 2017 - Aceito
02 Fev 2018