O texto de Ligia Bahia sobre os 30 anos do SUS provoca a reflexão sobre questões incômodas para os defensores de um dos mais ousados projetos de transformação de uma política social no Brasil, a reforma sanitária desencadeada no contexto da redemocratização dos anos 1980.
Os avanços do SUS nas últimas três décadas não foram triviais. A existência de um sistema de saúde de desenho público e universal em um país populoso e economicamente relevante da América Latina tem importância internacional. O reconhecimento constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado em 1988, em uma lógica abrangente de seguridade social, colocou a cidadania em outro patamar, ainda que as dificuldades para a efetivação do direito tenham persistido nas décadas posteriores. A implantação do SUS, em contextos adversos e sob constrangimentos, propiciou avanços político-institucionais, na configuração de políticas específicas, na expansão de serviços públicos, no acesso, no modelo de atenção e em resultados de saúde.
Porém, os percalços e contradições também foram muitos e se expressam de forma contundente nas relações público-privadas em saúde, foco da análise da autora. O texto se orienta pelo questionamento do “ganha-ganha na saúde, como se a vitória do SUS pudesse ser obtida apenas pelo incremento do público e pudesse não priorizar estratégias efetivas de desprivatização”.
Nesse sentido, o texto traz três contribuições. A primeira diz respeito à discussão das alterações na natureza e características do público, do filantrópico, do privado e, sobretudo, na dinâmica de suas relações, considerando modalidades assistenciais, agendas, organizações e atores. A autora demonstra que o sistema público cresceu, mas o setor privado também. Ambos se transformaram desde 1988, o que se expressa em novas configurações organizacionais, tipos de serviços e formas de atuação política. A autora refuta definições simplistas e afirma que as relações entre público e privado se tornaram cada vez mais imbricadas, resultando em uma estratificação complexa na oferta e na utilização de serviços de saúde. O argumento central é que essas características travam a plena implementação de políticas universais na saúde.
A segunda contribuição do texto reside em explorar as explicações para o caráter e a dinâmica dessas mudanças e a consequente “perda de potência do projeto democratizante na saúde”, representado pela Reforma Sanitária brasileira. Ligia Bahia critica interpretações supostamente reducionistas, que não ajudariam a compreensão da complexidade do fenômeno nem o enfrentamento dos desafios ao SUS. Assim, questiona análises muito centradas na determinação inexorável do capitalismo, nas características histórico-estruturais do país ou na trajetória prévia do sistema de saúde brasileiro.
Cabe ponderar que explicações desse tipo não povoam os estudos à toa. O recurso à história é fundamental em tempos de sua negação. Mesmo a menção ao remoto passado colonial do Brasil tem sido recorrente em análises sobre a sociedade brasileira contemporânea em diversos âmbitos, em face de mazelas persistentes ou recorrentes, como a inserção subordinada do país no cenário internacional, a estrutura fundiária, o trabalho precário e as graves desigualdades sociais entre brancos, negros e indígenas, com expressão na saúde. As transformações do capitalismo e a financeirização afetam de forma contundente a saúde em diversos países, incluindo o Brasil, como mostram pesquisas recentes (inclusive da autora). A análise da trajetória prévia do sistema de saúde brasileiro, feita em trabalhos clássicos, demonstra o vigor com que o Estado brasileiro historicamente apoiou o setor privado e a conformação dos mercados em saúde, característica reiterada em diferentes conjunturas e ainda atual, como o próprio texto aponta. Há espaço para explorar cada um desses fatores e vários outros. A existência de análises que põem a luz em alguns deles não significa o desconhecimento dos autores em relação aos demais, nem sua opção por um viés determinista que ignore a relevância de mediações e escolhas políticas.
O tom provocador, no entanto, tem o propósito de alertar para a complexidade dos fenômenos em questão e orientar o foco da reflexão para a dinâmica e o espaço da política. A terceira contribuição do texto, portanto, reside em uma aposta na política, como fator explicativo das mudanças recentes e espaço potencial para a ação transformadora em outro sentido.
A autora chama a atenção para a multiplicidade de atores e instâncias de articulação que pautam as políticas de saúde, extrapolando o âmbito do Estado e os limites setoriais. Critica as posições de diversos governos democráticos em relação à saúde, destacando medidas adversas ao SUS adotadas por diferentes órgãos do Executivo (além do Ministério da Saúde) e posicionamentos contraditórios no Legislativo e no Judiciário. Ressalta ainda a relevância da organização de grupos empresariais no período, que além de diversificar sua atuação no setor saúde, lograram indicar quadros para órgãos públicos e ocupar espaços, com crescente influência sobre a agenda política em vários âmbitos. Após o golpe parlamentar de 2016, a situação foi agravada diante da reorganização das forças conservadoras, que acentuaram os ataques aos direitos defendidos na Constituição Federal de 1988.
Ao mesmo tempo, as forças progressistas, em geral e na saúde, estariam carecendo de articulação e atualização de projetos. A argumentação da autora provoca os leitores, especialmente os sanitaristas, em dois sentidos. O primeiro, de realização de estudos que permitam maior compreensão sobre a dinâmica das mudanças em curso, incluindo a atuação do setor privado e dos grupos de pressão nos vários espaços. O segundo, de ação política, por meio da atualização de estratégias e táticas de enfrentamento dos desafios, em defesa do SUS e do direito à saúde, em um contexto de “competição política entre público e privado por recursos materiais e simbólicos”.
Em síntese, o texto endossa uma questão decisiva para o futuro do SUS: não há possibilidade de construir um sistema de fato público e universal sem enfrentar interesses econômicos que reforçam os espaços dos mercados no setor e padrões de consumo de serviços de saúde estratificados segundo a inserção das pessoas na economia e descolados das necessidades de saúde. E mais: tal enfrentamento requer atualização de projetos e ação política coordenada.
Se alguns autores têm explorado os limites de compatibilidade entre capitalismo financeiro e democracia - como Streeck 11. Streeck W. How will capitalism end? New Left Rev 2014; 87:35-64., citado pela autora - outros têm questionado a “ilusão do capitalismo” 22. Block F. Capitalism: the future of an illusion. Oakland: University of California Press; 2018.. Tal ilusão seria a captura cognitiva das elites e outros segmentos pela crença na inevitabilidade da adoção de determinadas políticas diante da natureza do capitalismo, solapando o reconhecimento da habilidade coletiva de conduzir reformas que produzam uma economia condizente com as necessidades da cidadania 22. Block F. Capitalism: the future of an illusion. Oakland: University of California Press; 2018..
Em um contexto de capitalismo perverso, o tema da agência política ganha centralidade 33. Evans P. Sustaining social protection and provision: the front line in the battle for the good society. Ciênc Saúde Coletiva; no prelo., intimando o pensamento crítico e a ação coletiva. No caso da saúde, a atuação dos sanitaristas em defesa do SUS é central, mas requer ampla articulação em torno de uma agenda de luta pela democracia e por um modelo de desenvolvimento que assuma a plena efetivação do SUS como pilar da concretização dos direitos, da justiça e do bem-estar social.
- 1Streeck W. How will capitalism end? New Left Rev 2014; 87:35-64.
- 2Block F. Capitalism: the future of an illusion. Oakland: University of California Press; 2018.
- 3Evans P. Sustaining social protection and provision: the front line in the battle for the good society. Ciênc Saúde Coletiva; no prelo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Ago 2018
Histórico
- Recebido
12 Jun 2018 - Aceito
13 Jun 2018