A pulsação do silêncio: Juvenal e a encruzilhada psiquiátrico-penal

The pulse of silence: Juvenal and the psychiatric-penal crossroads

El pulso del silencio: Juvenal y la encrucijada psiquiátrico-penal

Adriana Rosa Cruz Santos Sobre o autor
2018

Entre Febrônio Índio do Brasil 11. Fry P. Direito positivo versus direito clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho. In: Figueira S, organizador. Cultura da psicanálise. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1985. p. 116-41., a primeira pessoa a ser enviada a um manicômio judiciário no país, em 1921, e Juvenal Raimundo de Araújo 22. Brito L . Arquivo de um sequestro jurídico-psiquiátrico: o caso Juvenal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018., identificado no primeiro censo populacional dos indivíduos internados nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico brasileiros (HCTPs) e nas alas de tratamento psiquiátrico (ATPs) como o brasileiro que permaneceu mais tempo em reclusão em manicômio judiciário, em 2011, parece que pouca coisa mudou. É o que revela o instigante livro de Luciana Brito, fruto de sua pesquisa de doutorado sobre Juvenal, o cearense que ficou internado por quase cinquenta anos, sem sequer ter sido julgado. Na verdade, a trajetória psiquiátrico-penal de Juvenal revela as engrenagens biopolíticas de produção das vidas invisíveis, precarizadas, invivíveis.

Ainda que possa causar surpresa aos incautos, a situação não é rara: 42% dos encarcerados do Sistema Penitenciário Brasileiro são presos provisórios 33. Tedesco S. A função ético-política das medidas de segurança no Brasil contemporâneo. In: Venturini E, Oliveira RT, Mattos V, organizadores. Louco infrator e o estigma da periculosidade. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; 2016. p. 258-87., ou seja, sem comprovação de responsabilidade penal. Além disso, pelo menos um quarto daqueles que se encontram privados de liberdade nos manicômios judiciários já deveria ter sido desinternados, além de não haver fundamentação jurídica para a manutenção de outro um terço, em decorrência do atraso na elaboração dos laudos psiquiátricos e de cessação de periculosidade 22. Brito L . Arquivo de um sequestro jurídico-psiquiátrico: o caso Juvenal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018..

Em um pequeno artigo, Deleuze destacou a intensificação da expropriação capitalista, advertindo que não nos reconheceríamos tanto mais como o “homem confinado” da sociedade disciplinar, mas como o “homem endividado” da emergente sociedade de controle e que a produção veloz e contínua de miséria acabaria por produzir viventes “pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento44. Deleuze G. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Editora 34; 1992. (p. 224). Contudo, esta não parece ser exatamente a situação que temos enfrentado. Certamente, muitos pobres demais são mortos antes de serem capturados pela engrenagem carcerária. Ainda assim, tem havido um aumento bastante significativo da população privada de liberdade pelo Estado e, pelo menos, nos Estados Unidos 55. Alexander M. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo; 2017. e no Brasil, observa-se a crescente racialização desta população. O encarceramento em massa tem retirado de circulação os/as pobres demais para a dívida, mas suficientemente pretos/as para serem presos/as. A criminalização da pobreza no Brasil, parte integrante da agenda neoliberal, associada ao racismo estrutural brasileiro, constroem a seletividade do sistema penal 66. Batista VM. Depois do grande encarceramento. In: Abramovay PV, Batista VM, organizadores. Depois do grande encarceramento, seminário. Rio de Janeiro: Revan; 2010. p. 29-36.. Em junho de 2016, o Brasil já tinha a terceira maior população carcerária mundial (atrás apenas da China e dos Estados Unidos), sendo mais da metade constituída de jovens entre 18 e 29 anos e 64% de negros 77. Verdélio A. Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo. Agência Brasil 2017; 8 dez. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas.
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Não é coincidência que Febrônio e Juvenal sejam negros. A seletividade racial do sistema penitenciário também se expressa no circuito psiquiátrico e, consequentemente, no dobramento psiquiátrico-penal. Mas se Febrônio tinha cometido graves crimes, Juvenal, por sua vez, foi internado por tentar acertar o irmão com uma roçadeira, sem que se saiba, pelos registros oficiais, as consequências reais de tal gesto. Sem julgamento oficial, Juvenal permaneceu privado de liberdade por mais de 20 anos, quando finalmente o processo penal foi extinto por prescrição do ato violento, mas, ainda assim, permaneceu por mais outros 20 anos, até que finalmente saísse do manicômio judiciário, octogenário e numa cadeira de rodas. A trajetória kafkiana de um homem que passou a vida inteira preso sem ter sido formalmente julgado pelo seu ato, parece remeter a um acidente de percurso ou à negligência pontual de um sistema com problemas.

Entretanto, o que Luciana Brito em seu Arquivo de um Sequestro Jurídico-Psiquiátrico: O Caso Juvenal nos convida a ver, inspirada em Foucault, é que Juvenal não é um caso isolado, mas expressão da biopolítica que mata muitos (de fato ou de direito) em nome da defesa da vida de alguns. Duplamente fora da norma - de saúde e de sociabilidade - o louco criminoso é apagado da vida e desaparecido no interior do manicômio e da ordem jurídico-psiquiátrica. Não se sabe ao certo a idade de Juvenal, confunde-se seu nome e sua cidade de origem. Em alguns momentos de sua trajetória institucional Juvenal apresentou o sobrenome Araújo, em outros, Silva. Como afirma a autora, mais que lapso de registro ou erro administrativo, Juvenal se tornou um Silva por estatística, pois “...os Silvas devem ser maioria na multidão de anônimos22. Brito L . Arquivo de um sequestro jurídico-psiquiátrico: o caso Juvenal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. (p. 65).

Assim, contrapondo-se ao abandono e ao silenciamento ativamente produzidos pela engrenagem psiquiátrico-penal, a pesquisa se propõe a tornar visível um conjunto de práticas nada fortuito que os silêncios, as ausências e os vestígios permitem vislumbrar. Pois se “Juvenal foi abandonado à lei, e é na aplicação da lei que se faz a necessidade do banimento e do abandono em nome da ordem da segurança22. Brito L . Arquivo de um sequestro jurídico-psiquiátrico: o caso Juvenal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. (p. 22), é apenas percorrendo o arquivo como estrangeira que é possível extrair do silêncio um sussurro ou um grito.

Tornar visível o que foi apagado, restituir um corpo e uma história ao que foi objetivado e aplainado pelo jargão psiquiátrico-penal, ouvir nas entrelinhas do tempo imóvel do manicômio e do processo, onde os anos parecem se repetir sem que nada se mova, a respiração de uma arquitetura sutil e poderosa que constrói os corpos dos loucos criminosos, a despeito de sua materialidade e de sua voz, esta foi a aposta ético-política da autora.

Rompe-se, portanto, com a exigência ética do “anonimato” ou do “sigilo” como guardiães de uma privacidade e de uma posse de si que inexistem para os espectros que vagueiam pelos corredores manicomiais, os “dementes” - expressão foucaultiana que se refere ao “...que corresponde exatamente ao funcionamento da instituição asilar” (Foucault, 2006, apud Brito 22. Brito L . Arquivo de um sequestro jurídico-psiquiátrico: o caso Juvenal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018., p. 94). Ser ético com “espectros” produzidos pela engrenagem jurídico-psiquiátrica é justamente retirá-los da invisibilidade do anonimato, é restituir-lhes um nome próprio, as lacunas de sua história, as vicissitudes que os fizeram chocar-se com o poder, é recusar o destino de ser um Silva qualquer.

Dessa forma, desmontando a engrenagem que articula saberes técnico-científicos - como a psiquiatria e a assistência social -, dispositivos sociais de controle e regulação - como as famílias e a ordem jurídica - , é possível visualizar a rede que sustenta o banimento e o abandono de alguns, como contrapartida supostamente necessária à segurança e ao bem-estar das “pessoas de bem”.

Nesse pequeno intervalo, em que a diferença se converte em anormalidade e risco, engendram-se as práticas de controle, regulação e produção de uma vida asséptica. Higienicamente, como sonharam os alienistas da Liga Brasileira de Higiene Mental, num longínquo e próximo século passado 88. Costa JF. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Xenon; 1989., vamos tratando de aniquilar toda ameaça, toda mácula, todo desvio e desacerto. Nestes tempos em que abundam micro (e macro)fascismos, em que matar é uma contingência administrativo-governamental, contar pelo avesso a trajetória desse preto, cearense, camponês, pobre, analfabeto e tão absolutamente (mas nem tanto, diriam alguns) humano como todos nós, dispara uma inquietação que permite ouvir um sussurro distante, de um careca indispensável 99. Foucault M. "O que são as luzes?". In: Motta MB, organizador. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000. p. 335-51. (Coleção Ditos e Escritos, 2)., a nos acordar no meio da noite: o que estamos, mesmo, fazendo de nós mesmos?

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    Fry P. Direito positivo versus direito clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho. In: Figueira S, organizador. Cultura da psicanálise. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1985. p. 116-41.
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    Brito L . Arquivo de um sequestro jurídico-psiquiátrico: o caso Juvenal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.
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    Tedesco S. A função ético-política das medidas de segurança no Brasil contemporâneo. In: Venturini E, Oliveira RT, Mattos V, organizadores. Louco infrator e o estigma da periculosidade. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; 2016. p. 258-87.
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    Deleuze G. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Editora 34; 1992.
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    Alexander M. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo; 2017.
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    Batista VM. Depois do grande encarceramento. In: Abramovay PV, Batista VM, organizadores. Depois do grande encarceramento, seminário. Rio de Janeiro: Revan; 2010. p. 29-36.
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    Verdélio A. Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo. Agência Brasil 2017; 8 dez. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas
    » http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas
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    Costa JF. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Xenon; 1989.
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    Foucault M. "O que são as luzes?". In: Motta MB, organizador. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000. p. 335-51. (Coleção Ditos e Escritos, 2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2019
  • Aceito
    31 Jan 2019
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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