Lições de professores sobre suas alegrias e dores no trabalho

Lecciones de profesores sobre sus alegrías y padecimientos en el trabajo

Leda Leal Ferreira Sobre o autor

Resumo:

Por que adoecem os professores? Essa é a questão que o ensaio levanta e para qual sugere pistas de respostas. Após constatar que as doenças que prevalecem entre professores brasileiros são as mesmas que prevalecem entre professores do mundo todo, conclui-se que o nó do problema está no trabalho dos professores, o invariante da questão. É, portanto, esse trabalho que precisa ser melhor e mais conhecido e que deve ser o centro das atenções. A autora defende a tese de que são os próprios professores os que têm as melhores condições de fazê-lo, exatamente porque são os que o conhecem melhor. Para ilustrar essa tese, apresenta os principais resultados de uma pesquisa de âmbito nacional na qual professores da Educação Básica, no Brasil, analisaram o seu próprio trabalho, amparados por um dispositivo metodológico, a Análise Coletiva do Trabalho (ACT), que lhes oferecia condições para se expressarem livremente e valorizava a sua palavra. A ACT se revelou um potente instrumento de análise do trabalho, pois integrava aspectos tanto da atividade como do emprego dos professores, em geral analisados separadamente, o que aumentava o seu poder explicativo. Além disso, evidenciou os lados positivos e negativos desse trabalho, oferecendo várias pistas para se compreender não só por que os professores adoecem como também o que os mantém saudáveis, duas questões diferentes, embora relacionadas entre si.

Palavras-chave:
Professores Escolares; Saúde do Trabalhador; Doenças Profissionais

Resumen:

¿Por qué se ponen enfermos los profesores? Esta es la cuestión que presenta este ensayo y para la que se sugieren algunas respuestas. Tras constatar que las enfermedades que predominan entre los profesores brasileños son las mismas que prevalecen entre profesores de todo el mundo, se concluye que el foco del problema está en el trabajo de los profesores, aspecto invariable en este estudio. Por ello, es necesario estudiarlo y conocerlo mejor, además de convertirlo en el centro de atención de esta cuestión. La autora defiende la tesis de que son los propios profesores quienes tienen las mejores condiciones para hacerlo, precisamente porque son quienes lo conocen mejor. Para ilustrar esta tesis, presenta los resultados principales de una investigación en el ámbito nacional donde profesores de Educación Básica, en Brasil, analizaron su propio trabajo, mediante una metodología denominada Análisis Colectivo de Trabajo (ACT), que les ofrecía condiciones para que se expresaran libremente y valoraran sus comentarios. La ACT se reveló un potente instrumento de análisis de trabajo, pues integraba aspectos tanto de la actividad, como del propio oficio de los profesores, generalmente analizados por separado, lo que aumentaba su poder explicativo. Además, evidenció los aspectos positivos y negativos de este trabajo, ofreciendo varias pistas para comprender no sólo por qué enferman los profesores, sino también qué les mantiene sanos, dos cuestiones diferentes, aunque relacionadas entre sí.

Palabras-clave:
Maestros; Salud Laboral; Enfermedades Profesionales

Introdução

O que aconteceria se trabalhadores fossem chamados a analisar o seu próprio trabalho? Com formação na escola francesa de ergonomia de Wisner 11. Wisner A. Por dentro do trabalho: ergonomia, método e técnica. São Paulo: FTD/Oboré; 1987., sabia que a observação detalhada e sistemática da atividade dos trabalhadores fornecia resultados valiosíssimos para se entender alguns dos problemas por eles enfrentados no trabalho. Nesse caso, como, aliás, na maioria dos tipos de análise do trabalho praticados, quem faz a análise é um especialista exterior à situação de trabalho analisada: ergonomista, médico, psicólogo, engenheiro ou sociólogo, para citar os casos mais frequentes de analistas.

Mas, e se pedíssemos aos trabalhadores que analisassem o seu próprio trabalho fora de seu local de atividade, ou seja, sem observações, apenas falando sobre ele; se os trabalhadores fossem os analistas, que resultados obteríamos?

Foi ao tentar responder a essas perguntas que comecei a desenvolver, nos idos de 1990, o que é hoje a Análise Coletiva do Trabalho (ACT). Um texto dos ergonomistas Teiger & Laville 22. Teiger C, Laville A. L'expression des travailleurs sur leurs conditions de travail. Paris: Conservatoire National des Arts et Métiers; 1989. me encorajou: eles falavam de uma experiência de formação de trabalhadores na qual utilizavam, como técnica pedagógica, a descrição deles sobre seu próprio trabalho. Eu queria expandir essa ideia, colocá-la no centro de uma nova forma de se analisar o trabalho, mas tinha muitas dúvidas sobre como fazer isto e, principalmente, receio de intimidar os trabalhadores. Como eles aceitariam uma ideia inusitada dessas, analisar o seu próprio trabalho, justo eles, aos quais nunca se pedia que refletissem sobre o que quer que fosse? Achei que precisaria criar condições, também inusitadas, para que aceitassem participar e pudessem fazê-lo com o máximo de liberdade possível.

Foi com essa preocupação que comecei a formular condições que dessem, aos participantes, liberdade para se expressar e garantias de que não seriam prejudicados pelas suas análises, pois sabia o quanto pode ser perigoso analisar o trabalho, campo em permanente disputa. Por isso, adotei desde o início o princípio hipocrático primum non nocere (“antes de tudo, não prejudicar”). Por inspiração do método da Psicodinâmica do Trabalho de Dejours 33. Dejours C. A loucura do trabalho. Ensaio de psicopatologia do trabalho. 6ª Ed. São Paulo: Editora Cortez; 2015. (na época ainda denominada Psicopatologia do Trabalho), que trabalhava com grupos de trabalhadores, decidi fazer o mesmo pois isto me parecia menos intimidador.

Estavam dadas as principais características do novo método: um grupo de trabalhadores, com o auxílio de técnicos externos, analisa o seu próprio trabalho com base na descrição do mesmo, tentando responder o mais exaustivamente possível à seguinte questão: “O que você faz no seu trabalho?”. Todos são voluntários, suas identidades são mantidas em sigilo e não há promessas de mudanças (promete-se apenas que suas análises lhes serão devolvidas na forma de uma publicação).

O papel dos técnicos que participam da ACT não é o de produzir uma análise baseando-se nos resultados obtidos com suas observações, mas o de incitar, encorajar os próprios trabalhadores a fazerem as suas próprias análises valendo-se do que eles têm a dizer sobre o trabalho deles.

Os resultados dos estudos realizados com a ACT por mais de vinte anos em várias categorias de trabalhadores 44. Ferreira LL. Análise Coletiva do Trabalho: quer ver? Escuta. Revista Ciências do Trabalho 2015; (4):125-35., de cortadores de cana a pilotos de avião, responderam a muitas de minhas questões. Chamados a analisar o seu trabalho, os trabalhadores o fazem com empenho e entusiasmo, produzindo análises ricas e densas, independentemente de seu grau de escolaridade. Em poucas horas de reunião obtemos uma quantidade de material que dificilmente conseguiríamos com outros tipos de análise do trabalho. E material de qualidade. Os participantes não se restringem a descrever o seu trabalho, mas refletem sobre o mesmo, interpretando-o e julgando-o, com razão e emoção. Além disso, é preciso destacar, não falam apenas, nem principalmente, dos aspectos ruins ou nocivos do trabalho. Falam das alegrias que esse trabalho, pelos mais diferentes motivos, provoca: das habilidades que desenvolvem, das amizades que criam, das dificuldades que superam, dos resultados que obtêm, da sua utilidade social. De tal forma que, no meu modo de ver, a ACT é, ao mesmo tempo, um método de análise do trabalho e os resultados que ele permite obter 55. Ferreira LL. Análise Coletiva do Trabalho. Rev Bras Saúde Ocup 1993; (78):7-19..

Foi por isso que, em 2004, chamada a coordenar um amplo projeto de pesquisa - Condições de Trabalho e suas Repercussões na Saúde dos Professores de Educação Básica no Brasil - não hesitei em propor, como método para as pesquisas de campo, a ACT: sabia o quanto faz falta conhecer o trabalho para se compreender a saúde e as doenças das pessoas (individualmente ou como categoria profissional). Aliás, não era essa a lição de Ramazzini 66. Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 1992. quando, há mais de 300 anos, recomendava aos médicos incluir, na sua anamnese, a pergunta “Qual é o seu trabalho” (quam artem exerceas), necessária, segundo ele, para um bom diagnóstico?”.

Neste texto, não pretendo apresentar todos os resultados do projeto, já esmiuçados nos seis livros regionais publicados 77. Tavares DS, Ferreira LL, Maciel RH. O trabalho de professores na Educação Básica pública no Piauí. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2008.,88. Ferreira LL, Iguti AM, Donatelli S, Lima CQB. O trabalho de professores na Educação Básica em São Paulo. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009.,99. Oliveira JA, Pesente JC, Ferreira LL. O trabalho de professores na Educação Básica em Mato Grosso do Sul. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009.,1010. Ferreira LL, Araújo TM, Batista JHL. O trabalho de professores na Educação Básica na Bahia. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009.,1111. Mendonça EMC, Souza DM, Ferreira LL. O trabalho de professores na Educação básica em Belém do Pará. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009.,1212. Donatelli S, Oliveira JA. O trabalho de professores na Educação Básica no Rio Grande do Sul: São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2010. e no relatório final 1313. Ferreira LL. Relações entre o trabalho e a saúde de professores da Educação Básica no Brasil. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2010., com pistas mais gerais para a interpretação dos mesmos.

O objetivo é discutir se e como esses resultados podem contribuir para responder às seguintes questões: “Por que adoecem os professores?” e “O que se pode fazer para minimizar suas doenças e promover sua saúde?”. Numa primeira parte, relataremos como a ACT foi aplicada para, em seguida, apresentar algumas das análises dos professores sobre o trabalho deles, de modo a ajudar os leitores a compreender suas falas sobre saúde. Finalmente, sugerimos algumas pistas para responder às questões anteriormente colocadas.

As etapas da Análise Coletiva do Trabalho no projeto

Nossa primeira iniciativa foi realizar uma reunião com as duas entidades sindicais nacionais de professores, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), representante dos professores da rede pública, e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE), representante dos professores da rede privada, para lhes expor o projeto e pedir a sua colaboração. Na nossa experiência, quando entidades sindicais se envolvem num projeto de pesquisa há mais chances de que os resultados sejam utilizados em benefício dos trabalhadores. Além disso, só trabalhadores voluntários podem participar de uma ACT, e os sindicatos são as entidades que têm mais condições de consegui-los.

Com o acordo de ambas, acertamos que o projeto deveria acontecer em, pelo menos, um estado de cada uma das cinco regiões do país, com o auxílio de sindicatos locais. Tendo em vista as nossas limitações, os estados escolhidos foram Piauí, São Paulo, Bahia, Pará, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Em cada um deles contatávamos com um ou mais entidades sindicais, explicávamos o objetivo do projeto e pedíamos sua colaboração para organizar as reuniões com os professores, isto é, convidá-los e oferecer local e horário para elas. No total, 17 entidades participaram 1313. Ferreira LL. Relações entre o trabalho e a saúde de professores da Educação Básica no Brasil. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2010..

Em geral, as reuniões aconteceram nas sedes de sindicatos, com uma presença que variou de 3 a 12 pessoas por encontro. Dois pesquisadores participavam de cada reunião. A eles incumbia explicar aos participantes os objetivos do projeto e as regras das reuniões: analisar o trabalho que realizavam sem questionários, nem filmagens, nem observações de campo, apenas baseando-se na sua descrição, na sua fala. Também cabia aos pesquisadores dar início ao encontro formulando perguntas sobre o trabalho e, assim, instaurando um verdadeiro diálogo coletivo entre todos, e gravar as reuniões (com o consentimento dos presentes).

Participaram das reuniões professores das redes pública e privada (com exceção do Piauí, onde só foram ouvidos professores da rede pública) que davam aulas em todos os níveis de ensino, principalmente nos ensinos Fundamental e Médio (foram poucos os professores da Educação Profissionalizante). Também ouvimos educadores do Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA) de Belém e educadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), em São Paulo. No total, no período de 2005 a 2009, cerca de 200 professores, homens e mulheres que lecionavam tanto na zona rural como na zona urbana de 25 municípios brasileiros 1313. Ferreira LL. Relações entre o trabalho e a saúde de professores da Educação Básica no Brasil. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2010., participaram do nosso projeto.

Após as reuniões, as gravações eram transcritas e, juntamente com algumas pesquisas bibliográficas e documentais, originavam um relatório preliminar. Em seguida, esse relatório era encaminhado aos sindicatos que, por sua vez, o reencaminhavam aos professores para esclarecimentos adicionais. Com as novas observações dos professores redigíamos, então, uma versão final do texto e a publicávamos na forma de um livro.

Última etapa da ACT, a divulgação de cada livro, dependeu basicamente dos sindicatos participantes e foi, em alguns casos, bem ampla. Em Salvador, por exemplo, o livro O Trabalho de Professores na Educação Básica na Bahia1010. Ferreira LL, Araújo TM, Batista JHL. O trabalho de professores na Educação Básica na Bahia. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. foi lançado (com distribuição de exemplares aos professores presentes) em 2010, numa grande cerimônia no Teatro Castro Alves, juntamente com o filme Carregadoras de Sonhos1414. Carregadoras de Sonhos [filme]. Deivisson Fiúza, diretor. Aracaju: Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica da Rede Oficial do Estado de Sergipe; 2010. 67 min., que retrata o trabalho de professoras que atuavam em escolas de Sergipe.

O trabalho dos professores tal como analisado por eles mesmos

Podemos dizer que, sem exceção, fomos muito bem recebidos nas reuniões e que elas suscitaram grande interesse por parte dos professores, que delas participaram com entusiasmo e seriedade. Vencidas e esclarecidas as curiosidades iniciais - Quem éramos nós? O que pretendíamos? Como seria a participação de cada um? - rapidamente se instalava um clima cordial, propício ao diálogo entre todos. Orientados pela pergunta “O que você faz no seu trabalho?”, a conversa fluía com a análise de um confirmando ou não a do colega precedente, provocando novas explicações e interpretações, que colocavam novos temas em discussão. A técnica de se iniciar a reunião com a apresentação de todos, seguida pela descrição detalhada de um dia de trabalho de um deles, estimulava a reflexão de cada um sobre a sua própria rotina.

Desde o início ficava claro que o trabalho do professor era muito mais do que dar aulas. Eles começavam a trabalhar muito antes das aulas (porque tinham de planejá-las e prepará-las) e terminavam muito depois (porque tinham de fazer avaliações e prestar contas do que tinham feito, para as escolas ou para os pais/responsáveis dos alunos, sob a forma de preenchimento de registros, formulários, cadernetas, e porque tinham de participar de reuniões e outras programações, muitas vezes fora do horário de trabalho). Essas atividades tomavam tempo, obrigando os professores a fazer trabalhos em casa. Era um trabalho sem limites: não terminava ao fim da jornada, mas invadia toda a vida deles.

Essa rotina era, porém, influenciada pelas condições das escolas, tão diferentes pelo país afora (reflexo das nossas diferenças geográficas e principalmente das desigualdades socioeconômicas que insistem em nos deformar): escolas rurais ou urbanas, pequenas ou grandes, públicas ou privadas, muito ricas ou muito pobres, algumas com ótimas instalações, mas a maioria com instalações precárias (salas pequenas, abafadas, barulhentas, áreas de lazer exíguas ou inexistentes); difícil acesso a algumas delas, principalmente na zona rural ou sob determinadas condições climáticas (fortes chuvas ou alagamentos, por exemplo); condições dos materiais e livros escolares que, em alguns casos, chegavam atrasados ou nem chegavam, e muitas vezes não eram apropriados às realidades dos alunos; falta ou atraso da merenda escolar, esperada sempre com ansiedade pelos alunos, sobretudo em regiões mais pobres. As classes multisseriadas, presentes, sobretudo, na zona rural, e nas quais alunos de diversas séries se concentram em uma só sala, apresentavam situações de desafio especial para os professores que tinham de se superar para atender a todos e lhes passar conteúdos próprios da sua série. A falta de alguns profissionais nas escolas, principalmente públicas, fazia com que os professores, além de cumprir suas funções específicas, tivessem de exercer as funções dos ausentes. Em todos os lugares ouvimos que eles eram, em suas próprias palavras, médicos, enfermeiros, psicólogos, padres/pastores, pacificadores, conselheiros, assistentes sociais.

As rotinas também eram influenciadas pelas relações que existiam entre professores e seus empregadores, o Estado (nas esferas municipal, estadual e federal) nas escolas públicas e os donos das escolas na rede privada. Primeiro, devido ao salário que recebiam. Sendo esse salário baixo na grande maioria dos casos, muitos professores tinham outros empregos de docente em diferentes escolas (e até em diferentes redes), além de muitos exercerem outras atividades complementares para aumentar a sua renda, que os sobrecarregavam ainda mais. Depois, pelo próprio estatuto dos professores: as condições de exercício da profissão de professores “temporários” na rede pública eram muito piores do que as dos professores concursados, assim como na rede privada as condições de estagiários ou professores que nem sequer eram registrados como professores eram piores do que a dos professores regulares. Além disso, havia a questão dos controles e exigências impostos aos professores. Muitas escolas privadas exigiam dos professores que ficassem disponíveis em suas casas e usando os seus computadores particulares para tirar dúvidas dos alunos on-line.

Mas, sem dúvida, a rotina, a atividade dos professores dependia fundamentalmente dos seus alunos e, por isto, não é de se estranhar que os alunos tenham sido o tema mais importante das reuniões de ACT. Crianças pequenas de creches públicas ou adolescentes em cursos pré-vestibular; meninos ou meninas em classes de alfabetização no ensino regular ou jovens adultos no EJA (educação de jovens e adultos); alunos carentes em escolas públicas ou insolentes em escolas privadas de elite; crianças com necessidades especiais ou dificuldades de aprendizado; alunos violentos, desmotivados ou apáticos de escolas públicas ou privadas na zona urbana ou rural; alunos interessados, carinhosos, engraçados, inteligentes, todos os tipos de alunos, enfim, cada um a seu modo, apresentavam desafios à atividade dos professores, que não só se ocupavam como também se preocupavam com eles, dentro e fora da sala de aula. Para eles e por causa deles aceitavam trabalhar demais para preparar boas aulas e atividades interessantes, inventar novas atividades, descobrir estratégias para lidar com a indisciplina e fazer malabarismos para ganhar a sua atenção. Para os alunos e por causa deles os professores aceitavam fazer coisas que ultrapassavam as suas funções, como cuidar da sua saúde, comprar-lhes material escolar e até levá-los ao médico. E se questionavam sobre o seu papel de professor. Para os alunos e por causa deles, tentavam preencher as falhas em sua formação (e responder às suas inquietações sobre as várias teorias de educação, metodologias e práticas pedagógicas impostas pelas escolas, que mudavam frequentemente, muitas sem condições de serem aplicadas) do melhor jeito que encontravam, seja se matriculando em cursos de pós-graduação, seja estudando sozinhos em suas casas, com o material que conseguiam encontrar.

Por outro lado, também eram os alunos a grande fonte de alegria e satisfação dos professores, que ficavam exultantes quando viam seu progresso, sentindo que seu trabalho tinha sido útil e o seu esforço valido a pena; mas eram também eles fonte de tristeza e preocupações, por suas carências (econômicas e psicológicas), por sua indisciplina, sua falta de respeito, por sua violência física ou psicológica ou por suas dificuldades em seguir os estudos. O depoimento a seguir, de uma professora da Bahia, fala por si só: “Organizaram uma reunião e convidaram uma palestrante (...). Ela disse que a escola pública tem que existir para formar cidadãos de bem, mas que os vitoriosos são formados pela escola particular. Ela disse: ‘Nós colocamos nossos filhos em escolas particulares porque nós queremos que eles sejam vencedores. Vencedores é o quê? É ser médico, advogado, engenheiro’ (...). Isso foi uma coisa que me chocou tanto que você não imagina. A gente sabe que é difícil sair um menino de escola pública que vai ser médico. Mas eu trabalho para isso. Mesmo sabendo que é difícil, eu ainda tenho esperança que isso aconteça. Falei: ‘quer dizer que o pobre, a única coisa que ele ainda tem direito nessa vida, que é a educação, essa também não vai ser nada de qualidade, porque vocês estão decidindo isso!’1010. Ferreira LL, Araújo TM, Batista JHL. O trabalho de professores na Educação Básica na Bahia. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 65).

As várias faces da saúde nas análises dos professores

É praticamente inevitável que, ao responder à questão “O que você faz no seu trabalho?”, não se fale também “do que o trabalho faz com você”, isto é, dos efeitos do trabalho, entre eles na saúde. Também entre os professores as referências à saúde foram várias, refletindo as múltiplas acepções do termo saúde.

Uma primeira referia-se à procura de assistência médica/psicológica em caso de doenças. Muitos professores confessaram que iam trabalhar doentes por não terem tempo de ir ao médico, por não poderem faltar ao trabalho devido ao compromisso com os alunos ou ao medo de ficarem mal vistos nas escolas, onde a assiduidade era um critério de desempenho. Alguns professores com duplo vínculo, quando estavam doentes, só faltavam nas escolas públicas; nas particulares, iam trabalhar doentes. A questão das faltas, aliás, foi interpretada por alguns como um mecanismo de autopreservação: “...os professores que estão faltando é que não estão aguentando. É uma forma de não partir para agressão verbal ou mesmo agressão física com os alunos, porque eles estão sendo agredidos88. Ferreira LL, Iguti AM, Donatelli S, Lima CQB. O trabalho de professores na Educação Básica em São Paulo. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 81), disse uma professora paulista.

Também mencionaram: a dificuldade que muitos professores tinham de ver seus problemas de saúde reconhecidos pelos médicos como decorrentes do trabalho; as dificuldades enfrentadas por professores em processo de reabilitação profissional dentro das escolas (tirados das salas de aula e sem um sistema de substituição apropriado, acabavam por sobrecarregar os professores que os substituíam, o que criava um clima de hostilidade entre colegas).

Outra abordagem do tema saúde a associava diretamente à possibilidade de ter um emprego e se manifestava pelo medo do desemprego: “...acho que 90% dos problemas de saúde vêm em função do estresse, gerado pela pressão, medo de perder o emprego1212. Donatelli S, Oliveira JA. O trabalho de professores na Educação Básica no Rio Grande do Sul: São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2010. (p. 62), disse uma professora do Rio Grande do Sul. Esse medo seria o responsável pela aceitação de várias práticas perniciosas em relação à saúde, como trabalhar exageradamente, se sujeitar sem reclamar a condições impostas pelos empregadores, mesmo quando descabidas. Considerando que, além daqueles da rede privada, são inúmeros os professores “temporários” da rede pública que não têm estabilidade no emprego, o medo do desemprego se revelou uma fonte importante de problemas para a saúde.

Finalmente, falou-se de doenças, principalmente de alterações de voz, distúrbios osteomusculares e distúrbios psicológicos. Elas eram citadas, em geral, espontaneamente, como consequência inevitável do trabalho que exerciam e que estava sendo analisado. Assim, quando descreviam a necessidade de aumentar o volume de voz para serem ouvidos pelos alunos - seja porque a sala ficava num local barulhento, seja porque os alunos eram eles próprios barulhentos - ou quando falavam do uso de giz ou dos pincéis de lousas, ou mesmo das bruscas mudanças de temperatura comuns nas regiões onde trabalhavam, o assunto da rouquidão e de alterações de voz aparecia e era comentado, assim como se trocavam receitas caseiras para minorá-lo. Do mesmo modo, dores nos braços, nas mãos, nas pernas, nos pés e nas costas, com diferentes diagnósticos, também eram atribuídas ao que acontecia no trabalho, como a realização intensiva de alguns movimentos e/ou a necessidade de se manter em posturas incômodas por muitas horas. O cansaço foi outro tema recorrente, sempre relacionado a jornadas de trabalho extensas e intensas e um déficit acumulado de sono. Alterações de peso, decorrentes de uma alimentação consumida às pressas, devido à correria do dia a dia também foram mencionadas. Doenças infectocontagiosas decorrentes do contato com os alunos, principalmente os menores, também apareceram como problema para os professores.

Porém, foram, sem dúvida, os sintomas de mal-estar e de sofrimento mental, ou mesmo de distúrbios psicológicos (referidos pelos professores como nervosismo, estresse, ansiedade, angústia, depressão, medo, esgotamento mental, loucura) que apareceram com mais ênfase, relacionados a sentimentos de frustração, culpa, desânimo, baixa autoestima e/ou excesso de trabalho.

Foram vários os motivos apontados desse tipo de sofrimento mental, entre eles, a falta de interesse dos alunos; a falta de apoio institucional e de reconhecimento de seu esforço; e o controle abusivo das escolas sobre sua atividade docente.

A falta de interesse/compromisso/disciplina dos alunos foi um dos problemas mais citados. Para conseguir o interesse, os professores passavam a maior parte do seu tempo tentando convencê-los da importância do que lhes estavam ensinando e da necessidade de estudar. Desenvolviam para isso técnicas pessoais e as testavam, muitas vezes sem grande sucesso. Frustrados, muitos desistiam de seus esforços, seja arranjando subterfúgios para não enfrentar a situação, seja permanecendo no posto, mas sem grandes investimentos pessoais. Ambas as soluções se revelavam insatisfatórias do ponto de vista de sua autoestima.

O que deixa a gente com estresse, depressão é você querer fazer e não conseguir, você se sentir derrotada, incapaz e você é incapaz hoje, incapaz amanhã, incapaz depois de amanhã e isso dá a sensação de derrota. A minha angústia em sala de aula é a situação de derrota88. Ferreira LL, Iguti AM, Donatelli S, Lima CQB. O trabalho de professores na Educação Básica em São Paulo. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 81).

Em relação ao apoio para a realização das atividades, a situação geral apresentada foi a de sua ausência quase total. Mesmo confrontados com situações novas e para as quais não haviam sido capacitados (como a presença na sala de aula de alunos com necessidades especiais, com distúrbios de comportamento ou violentos), os professores se queixaram da falta de apoio das escolas, que deixavam em suas mãos a decisão sobre o que e como fazer. Pior ainda: os professores eram responsabilizados pelos fracassos de seus alunos. Em muitos casos, principalmente da rede privada, o sistema de controle das atividades dos professores substituía o apoio que a escola lhes negava. Todo o seu comportamento, até o modo de se vestir, entrava na avaliação que a escola fazia e que era determinante para auferir os prêmios e punições que recebia (o que, em última instância, significava o próprio salário e a manutenção do emprego).

Finalmente, foram vários os exemplos de professores desrespeitados, assediados e até agredidos, física ou moralmente, por alunos ou pais, que não contaram com a defesa nem da direção da escola nem dos colegas, nem do poder público. Ficaram sozinhos e desamparados.

A escola tem a seguinte doutrina: o aluno é o cliente, então é ele que manda. O pai chega lá e fala: ‘Ele vai fazer isso e pronto’. Professor não tem voz ativa. Então, o aluno faz o que ele quer e quando nós levamos até a Coordenação, a coordenadora diz: ‘Calma, professora’. E passa a mão na cabeça do aluno99. Oliveira JA, Pesente JC, Ferreira LL. O trabalho de professores na Educação Básica em Mato Grosso do Sul. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 57).

Com base nessas constatações, foi possível esboçar um quadro sobre as situações que mais causavam sofrimento no trabalho de professor. Não eram as dificuldades materiais em si. Professores atuando em precárias situações se mostraram criativos para enfrentá-las e, apesar de sofrer com elas, não esmoreciam nem adoeciam porque sabiam que estavam fazendo um trabalho útil. Por outro lado, professores em escolas com boas condições materiais sofriam muito com o tratamento desrespeitoso dos alunos, do tipo “meu pai te paga”; dos pais dos alunos, do tipo “sabe com quem está falando?”; e das próprias escolas, como mostrou o depoimento anterior. Também não queriam que seu trabalho fosse isento de dificuldades, só queriam poder superar estas dificuldades ou ter a esperança de conseguir superá-las.

O que os deixava mais exasperados eram as situações em que se viam constrangidos a fazer o que não achavam correto; ou quando não conseguiam fazer o que achavam correto (por falta de infraestrutura das escolas, de instrumentos pedagógicos, de tempo, de formação, falta de apoio); quando eram confrontados com situações com as quais não sabiam como lidar (violência, extrema pobreza); quando eram considerados culpados pelas mazelas da educação; quando não viam seu esforço nem seu trabalho reconhecidos; quando sentiam que seu trabalho não era valorizado, nem social e nem financeiramente; e quando se sentiam isolados para resolver seus problemas profissionais, sem o apoio de instâncias colegiadas.

Aqui cabe uma observação importante: nossa pesquisa ouviu majoritariamente professores em plena atividade docente e, teoricamente, em boas condições de saúde, o que significa que, ao se referirem a doenças ou distúrbios físicos ou mentais, eles estavam falando da experiência de outros, de colegas, de algo que tinha acontecido no seu próprio passado ou de seu medo de ficarem doentes. Aliás, em relação a esse medo, alguns professores confessaram que preferiam “nem ouvir falar de doenças, que professor está com depressão, de professor que vive encostado, de professor com atestado” como disse uma jovem professora 99. Oliveira JA, Pesente JC, Ferreira LL. O trabalho de professores na Educação Básica em Mato Grosso do Sul. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 73).

Exatamente por estarem ativos, foram também inúmeras as referências ao que já tinham feito para enfrentar os problemas que a profissão lhes colocava e se manter saudáveis e trabalhando, na maioria das vezes discorrendo sobre os “truques” que aprenderam ou inventaram ao longo da profissão. “...O professor que não tem experiência, grita e se estressa, mas, quando ele já está no mercado, sabe como funcionam as coisas. Quando está com problema de voz, ele não vai dar aula expositiva, vai fazer uma atividade diferente”, contou um professor no Pará 1111. Mendonça EMC, Souza DM, Ferreira LL. O trabalho de professores na Educação básica em Belém do Pará. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 55). Outro professor, que lecionava numa região violenta da cidade de São Paulo e teve várias experiências traumáticas na escola nos seus 15 anos de carreira (como ver um policial ser morto a tiros na frente da escola, uma professora ser morta por alunos num estacionamento e outra professora “pirar” no meio da aula), nos contou que desenvolveu várias estratégias para lidar com o que chamou de “estresse negativo, aquele que faz mal e é devido ao confronto com os alunos”: para “relaxar, se preparar para lidar com os alunos”, chegava todas as manhãs uma hora antes do início das aulas e, não raro, usava a técnica de “brincar com um avião de brinquedo”, que trazia sempre na mochila 88. Ferreira LL, Iguti AM, Donatelli S, Lima CQB. O trabalho de professores na Educação Básica em São Paulo. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 67).

Outro exemplo foi o de uma professora piauiense 77. Tavares DS, Ferreira LL, Maciel RH. O trabalho de professores na Educação Básica pública no Piauí. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2008.: sem saber o que fazer com um aluno que insistia em cuspir nos colegas atrapalhando a todos e inviabilizando suas aulas, e sem nenhuma ajuda institucional para resolver seu problema, inventou um concurso de cuspe. O aluno “cuspidor” venceu e a partir dali parou de cuspir, facilitando a vida da classe.

Em geral, as estratégias citadas eram individuais embora nos tenham sido relatados casos de enfrentamento coletivo dos problemas, como envolver os alunos em novas práticas, de modo a melhorar o seu comportamento e interesse na aula.

Mas nesses casos, já começamos a sair do campo das doenças para entrar no campo da saúde e das alegrias no trabalho do professor. Um vasto campo que inclui o respeito ao seu saber, a possibilidade de fazer o que acha correto e a possibilidade de se negar a fazer o que não acha correto. E onde há numerosas fontes de satisfação no trabalho: o contato com crianças e jovens, aspecto descrito pelos professores como “revigorante” ou “prazeroso”; o acompanhamento do progresso dos alunos, o que faz os professores se sentirem úteis e dá um sentido ao seu trabalho; o fato de serem lembrados pelos alunos, provavelmente porque, como diz um professor, “eu marquei, fiz alguma coisa de bom1111. Mendonça EMC, Souza DM, Ferreira LL. O trabalho de professores na Educação básica em Belém do Pará. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 57); o reconhecimento do seu trabalho pelo pares e hierarquia, mas, sobretudo, pelos próprios alunos, como nos contou, com orgulho, uma professora de uma escola rural: “eu tenho caixas de bilhetes de agradecimento de alunos1010. Ferreira LL, Araújo TM, Batista JHL. O trabalho de professores na Educação Básica na Bahia. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 36); e, finalmente, sentirem-se amparados e poderem compartilhar as suas dificuldades.

“...Tem uma coisa nessa profissão, é que a gente gosta dessa profissão. E uma das coisas que nos nutre é a relação humana, a relação com crianças e jovens. É uma coisa fantástica! A gente vê isso: o salário é pouco, a autonomia cada vez menor, a gente vai adoecendo, mas a gente consegue se superar1010. Ferreira LL, Araújo TM, Batista JHL. O trabalho de professores na Educação Básica na Bahia. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2009. (p. 71-2).

Na realidade, nossa pesquisa revelou que, apesar de um quadro geral carregado de todos os tipos de dificuldades, nossos professores da Educação Básica - mais de dois milhões de brasileiros 1515. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Básica 2016. Notas estatísticas. http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/notas_estatisticas/2017/notas_estatisticas_censo_escolar_da_educacao_basica_2016.pdf (acessado em 27/Fev/2018).
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- têm mostrado uma enorme garra para se superar e permanecem na luta por um melhor ensino e um melhor futuro para seus alunos, quase 50 milhões de brasileiros 1515. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Básica 2016. Notas estatísticas. http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/notas_estatisticas/2017/notas_estatisticas_censo_escolar_da_educacao_basica_2016.pdf (acessado em 27/Fev/2018).
http://download.inep.gov.br/educacao_bas...
. É um quadro extremamente animador que deve servir de base a todas as melhorias que a Educação no Brasil precisa conquistar e representa a vitalidade e saúde da categoria.

Considerações finais

A literatura científica brasileira sobre doenças/distúrbios que acometem professores é extensa, como foi constatado logo no início do projeto de pesquisa sobre o qual estamos falando 1616. Leite MP, Souza AN, coordenadoras. Condições de trabalho e suas repercussões na saúde de professores da Educação Básica no Brasil. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2007. e mostra que os professores sofrem, entre outros problemas, de distúrbios de voz, distúrbios osteomusculares e, sobretudo, de distúrbios psicológicos. O problema, porém, não é só brasileiro. Uma rápida pesquisa na literatura internacional (que é constituída de, literalmente, milhares de estudos e pesquisas de abrangência mais específica ou mais geral, empregando métodos qualitativos ou quantitativos, levadas a cabo pela academia, organismos de pesquisa, entidades sindicais ou órgãos governamentais) mostra que professores, sejam eles norte-americanos 1717. Fisher MH. Factors influencing stress, burnout, and retention of secondary teachers. Curr Issues Educ (Tempe) 2011; 14(1). https://cie.asu.edu/ojs/index.php/cieatasu/article/view/658.
https://cie.asu.edu/ojs/index.php/cieata...
, latino-americanos 1818. Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. Condiciones de trabajo y salud docente. Estudios de casos em Argentina, Chile, Ecuador, México, Peru y Uruguay. Santiago de Chile: Oficina Regional de Educación para America Latina y el Caribe, Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura; 2005., europeus 1919. Esteve JM. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração; 1999.,2020. Angelillo M, Di Maio G, Costa G, Angelillo N, Barillari U. Prevalence of occupational voice disorders in teachers. J Prev Med Hyg 2009; 50:26-32., africanos 2121. Peltzer K, Shisana O, Zuma K, Van Wyk B, Zungu-Dirwayi N. Job stress, job satisfaction and stress-related illnesses among South African educators. Stress Health 2009; 25:247-57., asiáticos 2222. Pengying Y, Fengyin L, Liping L. Neck/shoulder pain and low back pain among school teachers in China, prevalence and risk factors. BMC Public Health 2012; 12:789.,2323. Shukla A, Trivedi T. Burnout in Indian teachers. Asia Pacific Education Review 2008; 9:320-34. ou da Oceania 2424. Leão SH, Oates JM, Purdue SC, Scott D, Morton RP. Voice problems in New Zealand teachers: a national survey. J Voice 2015; 29:645-58., sofrem dos mesmos problemas.

A questão, portanto, não é saber do que adoecem os professores, mas por que eles adoecem, o que passa, necessariamente, pela análise do seu trabalho (o invariante da equação). O que, no trabalho dos professores, é responsável pelos distúrbios/doenças que acarretam e o que neste trabalho é fonte de saúde? O que se pode fazer para que o trabalho dos professores não os adoeça e seja uma fonte de saúde? (dois problemas diferentes e não evidentes).

São essas as questões mais complicadas que temos pela frente e que ainda não foram resolvidas em nenhum país, nem mesmo naqueles considerados mais desenvolvidos e cuja educação é tida atualmente como um exemplo de eficácia, como a Finlândia 2525. Hakanen JJ, Bakker AB, Schaufeli WB. Burnout and work engagement among teachers. J Sch Psychol 2006; 43:495-513. ou Singapura 2626. Wang JCK, Pyun DY, Koh KT, Kwon HH. Teacher burnout and teaching effectiveness in Singapore. Singapore: National Institute of Education; 2016. (Research Brief Series, 16-013)..

Com base nos resultados de nossa pesquisa, finalizaremos este texto sugerindo algumas pistas de respostas às mesmas:

(1) A necessidade incontornável de ouvir os professores para respondê-las. Tratar as relações entre o trabalho e a saúde dos professores sem ouvi-los sobre o seu trabalho equivale a fazer um diagnóstico apenas baseando-se em exames laboratoriais, sem conduzir uma anamnese prévia: uma solução muito mais cara e muito menos eficiente. No entanto, não basta ouvi-los. É preciso ouvi-los sem pressa, com atenção e respeito, de um modo acolhedor, aprendendo com eles sobre suas práticas, suas dificuldades e seus modos de resolvê-las. Assim procedendo, veremos que, nas suas análises, trabalho e saúde aparecem integrados e não como um conjunto de fatores estanques e sem relação entre si, como, em geral, o assunto é apresentado pelos especialistas. Têm, portanto, um poder explicativo muito maior. Esse é um ensinamento da ACT.

(2) A necessidade de se aprofundar a discussão teórica sobre as relações entre trabalho e saúde, para que saibamos exatamente do que estamos falando. De minha parte, instigada pelos resultados da ACT, tenho me debruçado sobre o conceito de trabalho, pois, na ACT, o trabalho não aparece nem como pura atividade profissional nem como simples emprego, mas como ambas as coisas. Isso me levou a desenvolver o conceito de dupla face do trabalho: atividade e emprego. Por atividade estou me referindo ao que em cada trabalho é específico e difere de outros trabalhos. Como atividade, o trabalho do professor é diferente, por exemplo, do trabalho do médico ou do operário metalúrgico: tem objetos e objetivos diferentes, utiliza instrumentos diferentes, exige ações diferentes e mobiliza diferentemente as potencialidades do corpo, da mente e das emoções do professor, do médico ou do operário metalúrgico. E como não existe atividade de trabalho fora de um quadro coletivo, o grau e tipo de relacionamentos que se estabelecem entre os diferentes atores do processo de produção mobilizam também valores morais, por meio do julgamento sobre a justiça ou não destas relações. Assim, o que estou chamando de atividade é, na verdade, um vasto campo. Os conceitos de “trabalho concreto” de Marx 2727. Marx K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1971., de “trabalho real” e “trabalho prescrito” desenvolvidos pela escola francesa de Ergonomia da Atividade 2828. Daniellou F, Laville A, Teiger C. Ficção e realidade do trabalho operário. Rev Bras Saúde Ocup 1989; (68):7-13., de “trabalho vivo” usado por Dejours 2929. Dejours C. Travail vivant. Paris: Payot; 2009. ou o de “real da atividade” desenvolvido por Clot 3030. Clot Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Editora Vozes; 2007. são conceitos pertinentes a esse campo. Já o que estou chamando de emprego tem a ver com as relações de subordinação entre empregado e empregador e a remuneração (direta e indireta) do empregado. Se, considerando a atividade, professores e médicos são diferentes, considerando seus empregos podem ser semelhantes: ambos podem ser funcionários públicos ou assalariados e, em termos de remuneração, a de um professor pode se igualar a de um operário metalúrgico. Essas duas faces do trabalho são como as duas faces de uma mesma moeda: na verdade, a atividade tem influências no emprego assim com as condições de emprego influenciam a atividade e ambos provocam efeitos nos trabalhadores, seja para o lado da saúde ou da doença. Os professores se expressaram o tempo todo sobre isso, por exemplo, quando contavam seu constrangimento ao se sujeitarem a situações de trabalho com as quais não concordavam por medo de perder seus empregos ou quando se referiam aos sentimentos conflitantes provocados pelo trabalho, e que a professora piauiense resumiu tão bem: “...se na outra encarnação, eu viesse para essa terra, eu queria ser professora de novo. Porque eu gosto do que eu faço, eu só tenho uma frustração na minha vida: é o tanto de dinheiro que eu recebo77. Tavares DS, Ferreira LL, Maciel RH. O trabalho de professores na Educação Básica pública no Piauí. São Paulo: Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho; 2008. (p. 35).

Seria importante que essa conceituação de trabalho, como atividade e emprego, fosse aprimorada e que seu valor explicativo fosse mais testado no campo das relações entre trabalho e saúde.

(3) Tomar cuidado com as generalizações abusivas: o assunto é vasto, complexo e com uma enorme diversidade de situações práticas.

(4) Não se ater a prescrições ou soluções miraculosas aos problemas de saúde que prescindam de uma análise detalhada do trabalho. Programas de qualidade de vida, de ginástica laboral, de controle do estresse são sempre paliativos e de alcance limitado principalmente quando atribuem às próprias pessoas toda responsabilidade pela sua saúde o que, além de ser objetivamente falso, produz efeitos deletérios: quem não consegue seguir as prescrições permanece, além de doente, culpado por estar doente.

(5) Levar em conta que o trabalho dos professores é absolutamente sensível ao que se passa na sociedade. Tudo o que se passa na sociedade repercute nos alunos, a razão de ser dos professores. Assim, em momentos de crise econômica e de aumento do desemprego, os alunos são os primeiros a serem afetados e isto afeta o trabalho dos professores. Nos momentos de crise política, de perda de autoridade moral dos governantes, quando a violência social aumenta, os alunos também são afetados, o que afeta o trabalho dos professores. Por isso, a saúde dos professores pode ser afetada, para o bem ou para o mal, quando se alteram parâmetros que nada têm a ver diretamente com a saúde. Melhorar ou piorar os rendimentos dos professores, favorecer ou dificultar a sua formação geral, ampliar ou diminuir suas aposentadorias, introduzir ou não melhorias nas escolas pode ter um efeito muito maior na saúde do que ações específicas das áreas médicas e afins. Do mesmo modo, todas as políticas que tendem a melhorar as condições dos alunos - cuidados alimentares, melhoria do transporte, assistência médica e psicológica efetiva - também tendem a melhorar, indiretamente, a saúde dos professores.

(6) A sugestão de ouvir os alunos. Como já dissemos, o trabalho dos professores gira em torno de seus alunos. Desse modo, seria interessante que os alunos também fossem ouvidos sobre a sua atividade, talvez num quadro semelhante ao que criamos para acolher os professores. Uma ACT de alunos seria uma boa ideia, principalmente se confrontada a uma ACT de professores.

Agradecimentos

À Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), que acolheu e sustentou o projeto de pesquisa Condições de Trabalho e suas Repercussões na Saúde de Professores de Educação Básica no Brasil (2004-2010) e à Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, que o apoiou financeiramente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2018
  • Revisado
    21 Ago 2018
  • Aceito
    06 Set 2018
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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