As dificuldades para a concretização da regionalização da atenção à saúde no Brasil é fato reconhecido e objeto de estudos esparsos e com perspectivas distintas. Apesar dessas dificuldades, permanece o consenso sobre a importância da regionalização, que pressupõe, entre outras coisas, a cooperação entre os entes federados, a integração de redes, a dotação de infraestrutura regional, a regulação etc. para a garantia dos preceitos constitucionais da universalidade e da integralidade da atenção. Apesar de desde os anos 2000 se sucederem as tentativas de desenvolver um arcabouço institucional que incentive e favoreça a criação de sistemas regionalizados com base em territórios autossuficientes, a regionalização tem sido de difícil efetivação. Entender esse processo e seus determinantes, e com base nisto pensar em possíveis soluções para remover os entraves que se colocam, continua sendo um desafio a ser enfrentado.
Por essas razões, o artigo elaborado por Viana & Iozzi tem um mérito intrínseco ao trazer novos olhares e corroborar outros estudos sobre uma questão ainda pendente e aberta dentro do tema mais amplo da implantação da assistência à saúde no SUS. O próprio título do artigo remete ao cerne desse problema ao destacar a questão das desigualdades, sugerindo o papel da regionalização para enfrentar esse grande desafio, em observância aos dispositivos constitucionais que declaram o caráter universal e igualitário da atenção à saúde. Para além de pretenderem identificar “impasses e dilemas da regionalização”, as autoras assumem uma postura propositiva ao fazer indicações de soluções ou ações necessárias para resolvê-los, apontando para “uma nova agenda de reformas”. Esses dois elementos em conjunto apontam para o maior mérito do ensaio.
De forma consistente, a embocadura analítica parte da ideia do potencial da escala regional no sistema de saúde brasileiro, enfatizando o papel de políticas regionais de foco territorial para combater desigualdades, destacando que estas políticas alteram as escalas de provisão de serviços e os fluxos assistenciais com efeitos prováveis sobre a desigualdade. Nessa perspectiva, eu destaco que o processo de regionalização se justifica pela própria natureza da atenção à saúde, que demanda a gestão de uma rede de serviços diversificada e distribuída em diferentes níveis de complexidade, em geral territorialmente dispersa e atuando em escalas variadas em função do grau de complexidade e da demanda. Considerando-se o contexto federativo do país, a gestão da rede de serviços coloca a necessidade de combinar a autonomia dos entes federados e a cooperação entre eles, de forma a garantir os preceitos constitucionais de universalidade e integralidade da atenção, compatibilizando a localização territorial das pessoas com a da rede assistencial sob a responsabilidade de gestores diversos 11. Menicucci T, Marques AMF. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: o caso da saúde. Dados Rev Ciênc Soc 2016; 58:823-65.. Enfim, a proposta de atenção integral à saúde pressiona por políticas regionais. Nesse sentido, a associação com a noção de governança multinível apontada pelas autoras é bastante pertinente, embora não desenvolvida no ensaio e que, no caso em questão, refere-se aos três níveis de governo da federação brasileira, os quais de forma compartilhada são responsáveis pela atenção à saúde. Pode-se dizer que, se por um lado, a gestão multinível é a que possibilita a atenção integral à saúde, por outro, dela decorre grande parte das dificuldades em tornar efetiva uma atenção regional numa escala que transcenda os limites municipais e que tensiona por uma construção institucional não fundada nas estruturas formais vigentes na federação brasileira. Como citam as autoras, as disputas que acontecem no nível local precisam ser analisadas com base na combinação entre a regulação do nível central e o grau específico de autonomia local. Mesmo que o nível central (no caso brasileiro, a União) disponha de recursos institucionais poderosos para exercer a coordenação da política de saúde, como o poder de normatizar e regular, além da maior disponibilidade de recursos financeiros, os entes subnacionais (estados e municípios) são política e administrativamente autônomos. De forma que construir regiões e políticas regionais com base em entes locais autônomos é tarefa que exige pactuações, acordos, barganhas, além de incentivos que favoreçam a cooperação. Em outros termos, considero que não há como discutir regionalização sem pensar nas características do arranjo federativo brasileiro.
Das dificuldades e ineficácia do arcabouço institucional operando até então com vistas à regionalização da saúde brasileira é que parece derivar a agenda de reforma sugerida pelas autoras, para o que denominam “um novo ciclo de regionalização do SUS” que permita superar os impasses atuais. Destacam-se nessa agenda: (a) a necessidade de um planejamento regional ampliado que reúna agentes estratégicos para o enfrentamento das desigualdades territoriais; (b) mudanças na natureza do modelo de assistência frente ao novo perfil epidemiológico da população, caracterizado pela superposição de problemas de saúde com distintos determinantes e variações regionais expressivas - demandando consolidação das redes de atenção voltadas para as condições crônicas, além de ações intersetoriais; (c) financiamento alinhado com a política de regionalização para enfrentar as deficiências de oferta, infraestrutura e recursos; (d) o fortalecimento dos estados e respectivas instâncias regionais de planejamento/negociação/deliberação (as CIRs) com vistas à construção de um arranjo efetivo de governança regional do SUS; (e) capacitação de gestores para regular e gerir contratos com OS, que possibilitem ajustar a demanda à oferta de serviços; e (f) a necessidade de construção de base política sólida para promover o que as autoras denominam de “reformismo radical” da organização e gestão do SUS.
Embora os pontos dessa agenda sejam apresentados de forma sequencial e agregativa, eu enfatizo a necessidade de discriminar o lugar e o sentido de cada um deles, destacando, principalmente, que o ponto (f) da agenda proposta se coloca como condição para qualquer reforma, sendo algo que não se constrói nos âmbitos técnicos, mas politicamente - o que parece não estar no horizonte atual. Já os itens (d) e (c) tocam em pontos nevrálgicos da construção de uma governança regional. Concordo com as autoras ao enfatizarem a cooperação federativa territorial e a promoção das capacidades estatais subnacionais para assegurar a presença dos interesses territoriais na produção cooperativa de políticas. Na pesquisa 11. Menicucci T, Marques AMF. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: o caso da saúde. Dados Rev Ciênc Soc 2016; 58:823-65. realizada em amostra de sete estados, com 65 regiões de saúde, comprovamos estatisticamente que a efetivação de relações cooperativas entre os municípios em um espaço territorial específico é afetada significativamente, tanto pela atuação do governo estadual a quem cabe o papel de coordenação, quanto por fatores estruturais, relacionados aos recursos que afetam a capacidade de prestação de serviços de saúde de âmbito regional e que são pré-condições para a cooperação entre municípios.
O aspecto mais frágil do ensaio refere-se à tentativa, a meu ver não bem-sucedida, de remeter a discussão de políticas regionais de saúde aos processos de reconfigurações territoriais na fase recente da globalização. Se a governança multinível parece um conceito adequado para a compreensão de necessidades e impasses da regionalização da saúde, não fica evidente no texto como isto se aproxima das configurações territoriais vinculadas à globalização. Na mesma linha, a conclusão final não me parece ter sido demonstrada no artigo, ou seja, que enfrentar as desigualdades da saúde impele enfrentar os desafios particulares da globalização. Em que medida as mudanças nacionais no atual período da globalização contribuem para desvelar os impasses da política regional de saúde no Brasil é algo a ser esclarecido.
- 1Menicucci T, Marques AMF. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: o caso da saúde. Dados Rev Ciênc Soc 2016; 58:823-65.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Out 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
26 Abr 2019 - Aceito
30 Abr 2019