(In)Segurança alimentar no contexto da pandemia por SARS-CoV-2

(In)Seguridad alimentaria en el contexto de la pandemia por SARS-CoV-2

Tatiana Coura Oliveira Monise Viana Abranches Raquel Martins Lana Sobre os autores

O avanço do novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, sobre os países tem gerado a interrupção das atividades cotidianas da população, devido à necessidade de isolamento social para frear o avanço da doença, que em menos de 4 meses já expandiu para 190 países, incluindo o Brasil 11. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) pandemic. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019 (acessado em 19/Mar/2020).
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. Os principais sinais e sintomas provocados pelo vírus incluem febre, tosse e dificuldade para respirar 22. Ministério da Saúde. Coronavírus: sobre a doença. http://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#transmissao (acessado em 19/Mar/2020).
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. Sintomas gastrointestinais, como diarreia, vômitos e dor abdominal também foram relatados para a COVID-19, assim como nas infecções por outros coronavírus 33. Assiri A, Al-Tawfiq JA, Al-Rabeeah AA, Al-Rabiah FA, Al-Hajjar S, Al-Barrak A, et al. Epidemiological, demographic, and clinical characteristics of 47 cases of Middle East respiratory syndrome coronavirus disease from Saudi Arabia: a descriptive study. Lancet Infect Dis 2013; 13:752-61.. A transmissão da doença costuma ocorrer pelo ar ou pelo contato direto das pessoas e se dá por meio de gotículas de saliva, espirro, tosse e secreções que podem contaminar mãos e superfícies 22. Ministério da Saúde. Coronavírus: sobre a doença. http://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#transmissao (acessado em 19/Mar/2020).
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Como tentativa de frear a propagação do vírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as principais autarquias de saúde no Brasil divulgaram como cuidados: higienizar as mãos, cobrir a boca com o antebraço ou lenço descartável ao tossir e espirrar, evitar aglomerações e manter-se em isolamento domiciliar, por até 14 dias, em caso de sintomas da doença 44. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) advice for the public. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advice-for-public (acessado em 19/Mar/2020).
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. Também é incentivada a manutenção das pessoas em ambientes bem ventilados 55. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Coronavírus (COVID-19): confira informações e saiba como se prevenir. http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/consumidor/5344-coronavirus-confira-informacoes-e-saiba-como-se-prevenir (acessado em 19/Mar/2020).
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e que as empresas e instituições públicas considerem a realização de trabalho remoto (home office), reuniões virtuais e cancelamento de viagens.

No Brasil, os esforços neste estágio inicial da epidemia estão voltados para o enfrentamento do SARS-CoV-2, especialmente no sentido de evitar sua propagação 66. Lana RM, Coelho FC, Gomes MFC, Cruz OG, Bastos LS, Villela DAM, et al. Emergência do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e o papel de uma vigilância nacional em saúde oportuna e efetiva. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00019620. e, ao mesmo tempo, possibilitar o atendimento em saúde dos casos graves. Entretanto, outra face que se apresenta é a da segurança alimentar. Itália, Espanha e Portugal, já em quarentena, desenvolveram iniciativas para evitar aglomerações que impactaram a cadeia de alimentos. Nesses países, muitos estabelecimentos comerciais de refeições estão fechados e os supermercados passaram a implantar regras para acesso e aquisição de produtos, a fim de evitar o desabastecimento.

Segurança: do controle higiênico-sanitário ao consumo de alimentos

Apesar de estarmos vivenciando os efeitos preliminares da pandemia, a discussão sobre o quadro brasileiro de segurança alimentar e suas interfaces, tendo em vista o que já ocorreu nos países europeus, é de extrema urgência. Inúmeras incertezas perpassam o setor de alimentos, sendo escassas as orientações sobre o tema, seja em nível de produção, distribuição, comercialização ou preparo domiciliar.

O Ministério da Saúde assumiu o protagonismo na divulgação inicial dos cuidados junto à população, embasando-se especialmente nas diretrizes da OMS. Paralelamente, estados e municípios tentam amortecer os desdobramentos da doença emitindo decretos complementares à esfera federal, considerando suas particularidades no que tange a aspectos geográficos, econômicos, sociais, de saúde, dentre outros. Basicamente, a dispersão de aglomerações e o incentivo ao isolamento social, tendo em vista a elevada transmissibilidade do SARS-CoV-2 77. Weston S, Frieman MB. COVID-19: knowns, unknowns, and questions. mSphere 2020; 5:e00203-20., estruturam as ações das Unidades Federativas.

No nível institucional, os estabelecimentos que produzem refeições e que atendem às pessoas sadias, como trabalhadores nas empresas e estudantes (creches, escolas e universidades) tiveram seus serviços reduzidos ou paralisados. Em contrapartida, aqueles que atendem os hospitais e instituições de longa permanência para idosos são desafiados a produzir em maior escala, no primeiro caso, e com mais atenção quanto às questões higiênico-sanitárias pela vulnerabilidade do público, em ambos os casos. O Conselho Federal de Nutricionistas emitiu recomendações sobre as boas práticas para a atuação do nutricionista e do técnico em nutrição e dietética 88. Conselho Federal de Nutricionistas. Recomendações do CFN: boas práticas para atuação do nutricionista e do técnico em nutrição e dietética durante a pandemia de coronavírus. https://www.cfn.org.br/wp-content/uploads/2020/03/nota_coronavirus_3-1.pdf (acessado em 22/Mar/2020).
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, como tentativa de preencher lacunas deixadas pela carência de capilaridade da Vigilância Sanitária no quesito alimentação coletiva em todo país.

Com o intuito de adotar ações que reduzem o risco de paralisação do serviço de abastecimento de alimentos, a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária, Pesca e Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro instituiu, por meio da Portaria PRESI/CEASA-RJ nº 17, no dia 16 de março, o Programa Extraordinário de Prevenção à Contaminação. Essa ação estabelece a necessidade de adesão ao programa e notificação de todas as empresas que direta ou indiretamente prestam serviços às Centrais de Abastecimento, especialmente as entidades que produzem e fornecem gêneros alimentícios e as que comercializam, prestam serviços e utilizam a central. Dentre as medidas estabelecidas destacamos: evitar contato pessoal entre os colaboradores, dando preferência ao uso de tecnologias para a comunicação; realizar as refeições na própria estação de trabalho; restringir aos colaboradores a presença na sede e notificar os casos suspeitos 99. Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária, Pesca e Abastecimento. Portaria PRESI/CEASA-RJ nº 17, de 16 de março de 2020. Estabelece os procedimentos básicos de prevenção de contágio, também em razão do coronavírus (covid19), mediante a continuidade dos serviços essenciais com a instituição do homeoffice. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 2020; 18 mar..

O Distrito Federal, no âmbito dos serviços de alimentação, instituiu no dia 14 de março o espaçamento de dois metros entre as mesas 1010. Distrito Federal. Decreto nº 40.520, de 14 de março de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus, e dá outras providências. Diário Oficial do Distrito Federal 2020; 14 mar., já o Rio de Janeiro, por meio do Decreto nº 46.973, de 16 de março, restringiu a capacidade de lotação dos estabelecimentos para 30%, sendo mantida a normalidade dos serviços de entrega e de retirada das refeições no próprio local 1111. Rio de Janeiro. Decreto nº 46.973, de 16 de março de 2020. Reconhece a situação de emergência na saúde pública do Estado do Rio de Janeiro em razão do contágio e adota medidas de enfrentamento da propagação decorrente do novo coronavírus (COVID-19); e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 2020; 17 mar.. Constata-se que na medida em que o número de casos de COVID-19 aumenta, novas estratégias são implantadas, mas a velocidade destas mudanças não é compatível com o avanço da doença. São Paulo, a exemplo disso, publicou, num intervalo de dez dias, seis decretos 1212. Decretos do Governo de SP com medidas de prevenção e combate ao novo coronavírus. SP Notícias 2020; 26 mar. https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/decretos-do-governo-de-sp-com-medidas-de-prevencao-e-combate-ao-novo-coronavirus/.
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, além de reconhecer estado de calamidade pública, adotando medidas temporárias e emergenciais de prevenção de contágio pelo vírus.

As normativas publicadas até o dia 23 de março catalisaram o fechamento de muitos estabelecimentos de refeições coletivas e a migração de outros tantos para os serviços de take out/away e delivery. Essa adaptação dos serviços teve como foco principal a sobrevivência desse setor da economia no momento de crise. As empresas buscam manter os custos fixos, como salários de funcionários e aluguéis, bem como otimizar os custos variáveis. Essa adaptação, no entanto, pode ser insuficiente para conter a previsão de corte de 3 milhões de vagas de emprego no setor pelos próximos 40 dias, segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes 1313. Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Bares e restaurantes estimam cortar três milhões de vagas em 40 dias. https://mg.abrasel.com.br/noticias/noticias/bares-e-restaurantes-estimam-cortar-tres-milhoes-de-vagas-em-40-dias/ (acessado em 21/Mar/2020).
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. A mesma está sensível ao problema e tem intermediado negociações com o governo, com empresas do ramo de entrega de refeições, cujo pedido é feito pela Internet 1414. Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Abrasel fecha acordo com iFood: prazo de pagamento para bares e restaurantes será reduzido. https://abrasel.com.br/noticias/noticias/abrasel-fecha-acordo-com-ifood-prazo-de-pagamento-para-bares-e-restaurantes-sera-reduzido/ (acessado em 21/Mar/2020).
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, além de publicar orientações aos empresários em relação aos cuidados de higiene no delivery1515. Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Cuidados de higiene no delivery para bares e restaurantes na crise do novo coronavírus. https://drive.google.com/file/d/1u3vSZDLAqDJeVTLROp5WM5WcTED1tpKV/view (acessado em 21/Mar/2020).
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. Se por um lado a entrega em domicílio é uma solução viável para minimizar a crise do setor nos grandes centros urbanos, por outro, considerando as diferenças socioeconômicas e territoriais brasileiras, sabe-se que essa tecnologia não está acessível a toda população. É importante ressaltar que a precarização do trabalho, que vem se cristalizando nos últimos anos, e que inclui as atividades realizadas por meio das plataformas virtuais, aumenta a vulnerabilidade dos entregadores e os coloca na linha de frente de exposição ao SARS-CoV-2.

Quem não tem acesso à estratégia de delivery e, também, em função das medidas de isolamento social, prepara suas refeições em casa. Para tanto, essas pessoas precisam adquirir gêneros alimentícios, itens de cuidados pessoais e de limpeza, mas a ida ao supermercado torna-se um fator de risco quando este não está preparado para atender a demanda emergente. Atenta a esse movimento, a Associação Brasileira de Supermercados lançou uma cartilha 1616. Associação Brasileira de Supermercados. Boas práticas para prevenção de Coronavírus (COVID-19) nos supermercados. http://static.abras.com.br/pdf/cartilha_covid.pdf (acessado em 21/Mar/2020).
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divulgando estratégias para minimizar o risco de contágio, na qual destaca a necessidade de higienização de botões para a emissão do tíquete de estacionamento; carrinhos e cestas de compra; pontos de grande contato como maçanetas, corrimãos; terminais de pagamento; caixas eletrônicos e elevadores. Ainda, reforça que devem ficar disponíveis ao público suportes com álcool em gel na entrada da loja e de sabonete e papel toalha nos banheiros. Grandes marcas do segmento supermercadista também se valem de orientações quanto ao acesso às lojas, limitando o número de clientes no interior do estabelecimento e separando horários para os idosos.

A despeito da (des)organização das informações, as mesmas não chegam aos funcionários dos supermercados e aos consumidores como deveriam. Imagens veiculadas nas mídias sociais mostram situações de caos nesses espaços: trabalhadores sem equipamento de proteção individual, seja por dificuldade dos empresários sistematizarem a rotina imposta pela pandemia, ou por completo desconhecimento dos cuidados necessários; aglomeração de pessoas e aquisição de produtos em excesso. Essas situações podem colapsar toda a estrutura de contenção do vírus, promovendo o desabastecimento precoce do segmento.

Outra questão, ligada ao acesso e preparo de refeições, é a possibilidade de contaminação mediante o contato com superfícies inanimadas. Pesquisas revelam que plástico, metal, vidro e papel podem ser veículos de contaminação por coronavírus 1717. van Doremalen N, Bushmaker T, Morris D, Holbrook M, Gamble A, Williamson B, et al. Aerosol and surface stability of HCoV-19 (SARS-CoV-2) compared to SARS-CoV-1. medRxiv 2020; 9 mar. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.09.20033217v2.,1818. Kampf G, Todt D, Pfaender S, Steinmann E. Persistence of coronaviruses on inanimate surfaces and their inactivation with biocidal agents. J Hosp Infect 2020; 104:246-51.. Dessa forma, embalagens de alimentos devem ser higienizadas com água e sabão, ou aplicar álcool 70% ou solução de hipoclorito de sódio 0,1% 1818. Kampf G, Todt D, Pfaender S, Steinmann E. Persistence of coronaviruses on inanimate surfaces and their inactivation with biocidal agents. J Hosp Infect 2020; 104:246-51., conforme disponibilidade no domicílio. Em relação aos alimentos, o uso das boas práticas de higiene já consagradas é necessário, isto porque considerando-se a distribuição dos surtos de doenças de origem alimentar, observa-se que o maior percentual acontece nas residências 1919. Ministério da Saúde. Surtos de doenças transmitidas por alimentos no Brasil. https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/janeiro/17/Apresentacao-Surtos-DTA-2018.pdf (acessado em 19/Mar/2020).
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. Os alimentos devem passar pelo processo de cocção adequada (atingindo 70ºC em todas as suas partes), e aqueles consumidos crus devem ser previamente lavados e sanitizados 88. Conselho Federal de Nutricionistas. Recomendações do CFN: boas práticas para atuação do nutricionista e do técnico em nutrição e dietética durante a pandemia de coronavírus. https://www.cfn.org.br/wp-content/uploads/2020/03/nota_coronavirus_3-1.pdf (acessado em 22/Mar/2020).
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com solução de hipoclorito de sódio 0,1% 1818. Kampf G, Todt D, Pfaender S, Steinmann E. Persistence of coronaviruses on inanimate surfaces and their inactivation with biocidal agents. J Hosp Infect 2020; 104:246-51. e, posteriormente, enxaguados com água potável. Ressalta-se que a manipulação de objetos, como o celular, no momento da refeição, pode trazer riscos de contaminação durante a ingestão dos alimentos 2020. Cunha CBC, Moraes FR, Monteiro VS, Feitosa FGMA, Silva ITC. Microbiological evaluation of the cell phones of the professionals of a Surgical Center in a beneficent Hospital. J Epidemiol Infect Control 2016; 6:120-4.. Um aspecto importante ainda não mencionado nas orientações até então publicadas, diz respeito à reutilização de sacolas de supermercados para transportar alimentos prontos para o consumo. Essa prática deve ser evitada, uma vez que são veículos de contaminação 2121. Repp KK, Keene WE. A point-source norovirus outbreak caused by exposure to fomites. J Infect Dis 2012; 205:1639-41..

Dada a carência de informações sobre os cuidados durante a higienização, profissionais de algumas universidades públicas estão gerando informes que são divulgados em mídias sociais para o esclarecimento da população. Um dos materiais se refere a orientações sobre o uso de substâncias sanitizantes para a prevenção da COVID-19, com base em um recente trabalho sobre coronavírus 2222. Escola de Nutrição, Universidade Federal de Ouro Preto. Como limpar mãos, ambientes e utensílios para prevenção do coronavírus (COVID-19). https://enut.ufop.br/news/cartilha-de-orientação-sobre-o-coronavírus (acessado em 27/Mar/2020).
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. Um outro material publicado trata de uma cartilha sobre os cuidados nutricionais para o enfrentamento do SARS-CoV-2 2323. Morais AHA, Maia JKS, Damasceno KSFSC, Seabra LMJ, Passos TS. Orientações Nutricionais para o enfrentamento do COVID-19. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. https://www.asbran.org.br/storage/arquivos/CARTILHA_COVID_19%20final.pdf (acessado em 27/Mar/2020).
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. Embasada no Guia Alimentar para a População Brasileira, seus leitores encontram, em uma linguagem simples, orientações que vão desde cuidados de higiene pessoal, dos alimentos e do ambiente de preparo das refeições à preferência por alimentos in natura aos processados e ultraprocessados. O documento também destaca a importância da avaliação crítica das informações, mitos e publicidade veiculados pelas mídias sociais, que por vezes trazem soluções “milagrosas”, sem respaldo científico.

A Associação da Indústria de Alimentos dos Estados Unidos 2424. The Food Industry Association. Coronavirus resources. https://www.fmi.org/food-safety/coronavirus (acessado em 21/Mar/2020).
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publicou dois documentos que trazem recomendações aos proprietários de empresas, servindo de suporte para a orientação de seus funcionários sobre higiene ambiental e pessoal. Destaque é dado à necessidade de capacitação dos colaboradores sobre limpeza e desinfecção adequada das superfícies, uso de equipamentos de proteção individual e dos produtos de higienização, bem como os riscos envolvidos na utilização destes. Ainda, ressalta a necessidade de treinamento quanto aos sintomas da COVID-19 e orientação em caso de contaminação.

A atenção dada pela indústria à doença acontece porque, em situações de crise, a demanda por produtos estocáveis tende a aumentar, o que exige grande planejamento logístico. A população, como forma de se proteger de uma possível escassez, passa a adquirir mais alimentos processados e ultraprocessados, uma vez que estes têm menor perecibilidade, são práticos, de fácil acesso e, por vezes, com menor preço quando comparados aos alimentos frescos. Todavia, o acesso à alimentação equilibrada é imprescindível para o enfrentamento da doença. A segurança alimentar deve ser considerada para além do aspecto higiênico-sanitário.

A tendência de recessão econômica global atinge a todos, mas agrava ainda mais a saúde de grupos populacionais em vulnerabilidade socioeconômica, principalmente aqueles que residem em áreas de risco e que compõem a massa de desempregados ou de subempregados no Brasil. Dois grandes eixos precisam ser considerados para essa população:

(i) Viver em áreas de risco como aglomerados subnormais, regiões com baixa cobertura de água e esgoto, dentre outros fatores, dificulta a adoção das medidas de higiene individual e coletiva instituídas para o controle da COVID-19. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revela que apenas 38,2% dos municípios contavam, em 2017, com uma Política Municipal de Saneamento Básico. A comparação das regiões brasileiras revela disparidades: somente 18,6% dos municípios do Nordeste relataram ter uma política de saneamento, em detrimento de 63,7% dos municípios do Sul 2525. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Perfil dos municípios brasileiros. Saneamento básico: aspectos gerais da gestão da política de saneamento básico: 2017. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2018.. Como resultado, no Brasil, a média de atendimento total com rede de abastecimento de água foi de 83,6%, em 2018, já o atendimento total com rede de esgotos foi de 53,2% 2626. Secretaria Nacional de Saneamento, Ministério do Desenvolvimento Regional. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos. http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ae/2018/Diagnostico_AE2018.pdf (acessado em 23/Mar/2020).
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;

(ii) As medidas de isolamento domiciliar já estão repercutindo na renda de trabalhadores informais e, em curtíssimo prazo, impactará os assalariados pelo risco de demissão e/ou redução da jornada de trabalho, com consequente diminuição dos seus rendimentos. A fragilização dos vínculos empregatícios já estava em percurso por causa do contexto da crise econômica atual, mas está sendo exacerbada pela pandemia. Nesse sentido, o número de pessoas invisíveis às políticas sociais, especialmente a população em situação de rua, tende a aumentar, no entanto, as ações que já não concretizam o direito à saúde 2727. Paiva IKS, Lira CDG, Justino JMR, Miranda MGO, Saraiva AKM. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:2595-606. precisarão ser repensadas como forma de proteção a toda sociedade contra o novo coronavírus.

A desarticulação e o enfraquecimento de instâncias importantes para o diálogo sobre segurança alimentar e nutricional, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, recentemente extinto, demonstra o quão desafiador é o caminho que estamos a percorrer. A condição de insegurança alimentar já instalada será possivelmente acelerada pelo SARS-CoV-2. Nesse sentido, é necessário reavaliar as medidas que concedem mais de 70% do crédito para o financiamento da produção rural à agricultura patronal, direcionada à produção de commodities, e voltar o olhar para a agricultura familiar, que é mais bem distribuída geograficamente (possibilita o abastecimento local), produz alimentos diversificados, ocupa mais de 80% dos trabalhadores rurais e faz uso de práticas produtivas mais sustentáveis 2828. Olalde AR. Agricultura familiar e desenvolvimento sustentável. http://www.ceplac.gov.br/radar/Artigos/artigo3.htm (acessado 21/Mar/2020).
http://www.ceplac.gov.br/radar/Artigos/a...
. Redes alimentares alternativas 2929. Darolt MR, Lamine C, Brandenburg A, Alencar MCF, Abreu LS. Redes alimentares alternativas e novas relações produção-consumo na França e no Brasil. Ambiente & Sociedade 2016; 19:1-22. podem otimizar o acesso a alimentos frescos e saudáveis em tempos de pandemia. Nos documentos consultados não foi mencionada a possibilidade de ajustes de ambientes abertos quanto à comercialização de alimentos, o que sobrecarrega os supermercados e fragiliza ainda mais o sistema agroalimentar.

Até o momento, o que se percebe é uma desarticulação entre as esferas de poder em relação à tomada de decisões. Fundações, conselhos, universidades públicas e associações têm produzido materiais educativos, sendo desconhecido o alcance dos mesmos. O cenário é complexo, dinâmico e exigirá do poder público, da iniciativa privada e da população ações alinhadas para o enfrentamento da COVID-19 sem desconsiderar a insegurança alimentar nas suas várias dimensões. É imprescindível que as medidas de mitigação contra a propagação do SARS-CoV-2 sejam repensadas nos próximos dias. Destacamos que este documento fez um apanhado de informações até o dia 23 de março de 2020.

Agradecimentos

R. M. Lana é bolsista PDJ Inova Fiocruz.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2020
  • Revisado
    23 Mar 2020
  • Aceito
    25 Mar 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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