A obra de Boaventura de Sousa Santos 11. Sousa Santos B. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina; 2020., sociólogo e bacharel em Direito, propõe uma reflexão sobre o que podemos aprender com a pandemia de coronavírus do ponto de vista socioeconômico. A obra apresenta relevada importância para diversas áreas do conhecimento, entre elas a Saúde Coletiva, na medida em que contribui para o pensamento sobre a capacidade dos países de alterarem as suas políticas de saúde para responderem efetivamente à crise contemporânea do novo coronavírus.
O livro está dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo, intitulado Vírus: Tudo o Que é Sólido se Desfaz no Ar, discute-se que o ordenamento neoliberal e o modelo capitalista têm orientado o mundo a recrudescer políticas públicas de investimento em áreas como saúde, educação e previdência social, deixando o mundo em constante estado de crise, o que se acentua com a pandemia do novo coronavírus.
Chama-se atenção para o fato de que a pandemia, no entanto, põe diante dos olhos das democracias um “novo mundo” que busca aumentar o controle sobre a vida e a morte. O tempo passa a ter outra conotação, demonstrando haver possibilidades de uma reorientação sobre os modos de ser e estar no mundo, excluído do radar das sociedades hipercapitalizadas que, diante de situações pandêmicas, acabam entrando pela “porta dos fundos” para responder às novas necessidades.
Para o autor, a pandemia não é cega e possui “alvos privilegiados”, o que induz à busca de soluções diferentes entre aqueles que possuem capitais sociais distintos. No entanto, apesar dos diferentes recursos sociais que as populações possuam, a receita do momento é genérica: manutenção do isolamento social, que implica redução de atividades econômicas e, consequentemente, menor carga de destruição da natureza.
Por fim, o capítulo também analisa, a partir da perspectiva da sociologia das ausências, a vulnerabilidade a que estão submetidas milhares de pessoas que permanecem invisíveis diante das respostas globais.
O segundo capítulo, intitulado A Trágica Transparência do Vírus, aborda que a preocupação com a pandemia, em sociedades capitalistas, tem sido do ponto de vista econômico e não social, uma vez que o capital assume a posição de ser o todo-poderoso que norteia as relações sociais e políticas.
A pandemia, para Sousa Santos, repercute no modelo de economia capitalista neoliberal orientado para privatização e lei do mercado, expondo que os países que mais privatizaram a saúde são aqueles que enfrentam mais dificuldades de contingenciamento da pandemia, como os Estados Unidos.
Nesse cenário, a pandemia assume função alegórica à medida que traz à tona possibilidades de interpretação da realidade ou de pensamentos que sustentam as relações sociais e que, até então, estavam no campo da invisibilidade, especialmente as formas articuladas de dominação dos três unicórnios sociais: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Em conjunto, eles formam uma tríade poderosa que atua sobre a lógica de organização e funcionamento das sociedades.
O cenário da pandemia torna transparente a visão binária capitalista (superiores e inferiores) que reforça as disparidades sociais, legitimando a má distribuição de riquezas, a manipulação de pensamentos, a dominação cultural, a exploração capitalista, a existência de desigualdades sociais e dos modos de vida que colocam em risco a sobrevivência da humanidade e do planeta.
Atrelado a essa perspectiva do campo político, o autor chama atenção que a pandemia revela o esvaziamento da mediação dos intelectuais no que tange à produção de suas teorias e de suas teorizações e o alcance destas em relação aos anseios e necessidades dos cidadãos em suas vidas cotidianas, visto que a maioria dos intelectuais pensa e produz sobre o mundo, mas não pensa e produz com o mundo.
O terceiro capítulo, intitulado A Sul da Quarentena, discute a experiência da quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus e aquela que grupos vulnerabilizados pela discriminação racial, sexual e pela exploração capitalista, denominados metaforicamente pelo autor como sul, já vivem em detrimento das suas condições de vida. Para o autor, toda quarentena é discriminatória; difícil para alguns e impossível para outros e, por isso, se propõe a analisá-la a partir da perspectiva de mulheres, idosos, crianças, pessoas em situação de rua, imigrantes sem documentos, trabalhadores precários e informais, moradores de periferias e deficientes.
Ao analisar a quarentena sob a ótica desses grupos, o autor propõe uma reflexão sobre as recomendações de autoisolamento e distanciamento social promovidas pela Organização Mundial da Sáude (OMS). Embora essas recomendações possam ser efetivas para a classe média, não contemplam os cidadãos submetidos a condições de discriminação, injustiça social e sofrimento, de modo que as ausências de suas liberdades individuais, de direito à cidadania, ao cuidado de si, à cidade e ao trabalho formal que lhes garantam renda para a manutenção das mínimas condições de higiene e alimentação lhes expõem diariamente ao maior risco de contaminação pelo vírus.
Na medida em que alguns grupos têm permanecido à margem de direitos básicos, o autor argumenta que eles já vivenciam historicamente quarentenas em seus cotidianos e também propõe reflexões sobre esses períodos que representam os seus modos de vida. Por fim, chama atenção para o fato de que, contrariamente ao que é evidenciado pela mídia e organismos internacionais, a quarentena não somente evidencia esses grupos, como agudiza a injustiça e o sofrimento que vivem.
No quarto capítulo, intitulado A Intensa Pedagogia do Vírus: As Primeiras Lições, o autor aponta e analisa seis lições que, no mínimo, podem ser extraídas do cenário da pandemia como aprendizagens possíveis: Lição 1: o tempo político e “mediático” condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre; Lição 2: as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga; Lição 3: enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro; Lição 4: a extrema-direita e a direita hiper-neoliberal ficam definitivamente (espera-se) descreditadas; Lição 5: o colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda; Lição 6: o regresso do Estado e da comunidade.
Por meio dessas seis lições, é feita uma abordagem sobre o “aprender com a pandemia”. Também se aborda a articulação entre a pandemia e os problemas mais antigos (como sociais e ecológicos) que a humanidade enfrenta e que se tornam acirrados e visíveis em tempos de crise, especialmente devido aos limites impostos ao Estado pelo capitalismo neoliberal advindo da política de privatização dos serviços de saúde, por exemplo.
A obra chama atenção que a busca por respostas a momentos e situações de crise se dá de formas diferentes, conforme os interesses econômicos e políticos que sustentam os modelos de sociedades neoliberais, cuja hegemonia social e política está fundamentada em concepções de extrema-direita e da direita hiper-neoliberal. Essas concepções têm passado por processos de descrédito à medida que as pessoas têm tomado consciência de seus objetivos financeiros e suas trágicas consequências globais, ao passo que o colonialismo e o patriarcado continuam exercendo poder e encontram terreno fértil para se fortalecerem em crises agudas. Em linhas gerais, as seis lições apontadas por Boaventura colocam em questão como fatores culturais, políticos, econômicos, sociais e ideológicos atuam como determinantes sociais da saúde e podem colocar populações em risco.
No quinto capítulo, intitulado O Futuro Pode Começar Hoje, discute-se a necessidade que as sociedades terão de se adaptar ao futuro, a fim de evitar que surjam novas pandemias tão ou mais letais quanto a atual. Ênfase especial é dada à reflexão sobre quais alternativas serão encontradas: se aquelas que buscam o retorno ao antigo normal ou aquelas que buscam a promoção do bem viver, a partir de mudanças nos modos de produção e consumo.
Para o autor, é necessária a rearticulação entre processos políticos e civilizatórios clivados a partir da queda do Muro de Berlim que pôs fim, a partir do norte global, às ideias de busca por alternativas à lógica capitalista e neoliberal que reduziriam as agressões à natureza e tornariam menos prováveis o surgimento de epidemias e pandemias.
Por fim, o autor salienta a necessidade de a humanidade se tornar mais humilde diante do planeta, entendendo que representa apenas 0,01% de toda a vida existente e de promover uma “virada” epistemológica, cultural e socioeconômica capaz de superar a quarentena imposta pela ordem capitalista vigente.
Em conclusão, a obra de Boaventura suscita a discussão de temas globais, emergentes e caros para as Ciências Sociais e Econômicas, assim como para a Saúde Coletiva, adquirindo grande relevância para a leitura e interpretação sobre a realidade e as implicações das pandemias nas diversas sociedades, especialmente em contextos capitalistas.
Referências
- 1Sousa Santos B. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina; 2020.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Jun 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
03 Maio 2020 - Aceito
11 Maio 2020