Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?

Aborto en Brasil: ¿qué dicen los datos oficiales?

Bruno Baptista Cardoso Fernanda Morena dos Santos Barbeiro Vieira Valeria Saraceni Sobre os autores

Resumos

Segundo a Organização Mundial da Saúde cerca de 55 milhões de abortos ocorreram no mundo, entre 2010 e 2014, e 45% destes foram inseguros. No Brasil, dados sobre aborto e suas complicações são incompletos. Dados assistenciais estão somente disponíveis para o setor público e dados de mortalidade dependem de investigação do óbito. O objetivo do estudo foi descrever o cenário do aborto no país, utilizando dados públicos disponíveis para acesso nos diversos Sistemas de Informação - SIM (mortalidade), SINASC (nascidos vivos) e SIH (internação hospitalar). No período entre 2008 e 2015, ocorreram cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais. De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM. Houve discreta redução dos óbitos por aborto ao longo do período, com variações regionais. Esse número poderia ter um incremento de cerca de 29% por ano se os óbitos com menção de aborto e declarados com outra causa básica fossem considerados. Entre os óbitos declarados como aborto, 1% foi por razões médicas e legais e 56,5% como aborto não especificado. A proporção de óbitos por aborto identificados no SIH, em relação ao total de óbitos por aborto identificados no SIM, variou de 47,4% em 2008 para 72,2% em 2015. Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro.

Palavras-chave:
Sistemas de Informação; Aborto; Morte Materna; Saúde da Mulher; Direitos Sexuais e Reprodutivos


Entre 2010 y 2014, según la Organización Mundial de la Salud, se produjeron en el mundo cerca de 55 millones de abortos, además un 45% de los mismos fueron inseguros. En Brasil, los datos sobre el aborto y sus complicaciones son incompletos. Los datos asistenciales se encuentran solamente disponibles para el sector público y los datos de mortalidad dependen de la investigación sobre el fallecimiento. El objetivo del estudio fue describir el escenario del aborto en el país, utilizando datos públicos disponibles para su acceso en los diversos Sistemas de Información - SIM (mortalidad), SINASC (nacidos vivos) y SIH (internamiento hospitalario). Durante el período entre 2008 y 2015, se produjeron cerca de 200.000 internamientos/año por intervenciones relacionadas con el aborto, siendo cerca de 1.600 por razones médicas y legales. De 2006 a 2015, se encontraron 770 óbitos maternos con el aborto como causa básica en el SIM. Se produjo una discreta reducción de los fallecimientos por aborto a lo largo del período, con variaciones regionales. Este número podría sufrir un incremento de cerca de un 29% por año, si se consideraran los fallecimientos donde se menciona el aborto y se declaran con otra causa básica. Entre los óbitos declarados como aborto, un 1% fue por razones médicas y legales y un 56,5% como aborto no especificado. La proporción de óbitos por aborto identificados en el SIH, en relación con el total de óbitos por aborto identificados en el SIM, varió de 47,4% en 2008 a un 72,2% en 2015. A pesar de que los datos oficiales de salud no permitan una estimación del número de abortos en el país, fue posible trazar un perfil de mujeres con mayor riesgo de fallecimiento por aborto: mujeres afrodescendientes e indígenas, con baja escolaridad, con menos de 14 años y más de 40, viviendo en las regiones Norte, Nordeste y Centro-oeste, y sin pareja.

Palabras-clave:
Sistemas de Información; Aborto; Muerte Materna; Salud de la Mujer; Derechos Sexuales y Reproductivos


Introdução

Segundo um estudo com base em estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 55 milhões de abortos ocorreram entre 2010 e 2014 no mundo, sendo 45% destes considerados abortos inseguros 11. Ganatra B, Tunçalp Ö, Johnston HB, Johnson BR, Gülmezoglu A, Temmerman M. From concept to measurement: operationalizing WHO's definition of unsafe abortion. Bull World Health Organ 2014; 92:155.. África, Ásia e América Latina concentram 97% dos abortos inseguros. O estudo mostrou ainda que leis restritivas aumentam a ocorrência desses 11. Ganatra B, Tunçalp Ö, Johnston HB, Johnson BR, Gülmezoglu A, Temmerman M. From concept to measurement: operationalizing WHO's definition of unsafe abortion. Bull World Health Organ 2014; 92:155.. A ilegalidade, contudo, não impede a prática, estando relacionada à desigualdade social e permanecendo como um problema de ordem global 22. Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série B. Textos Básicos de Saúde)..

A OMS define aborto inseguro como um procedimento para o término da gestação, realizado por pessoas sem a habilidade necessária ou em um ambiente sem padronização para a realização de procedimentos médicos, ou a conjunção dos dois fatores 11. Ganatra B, Tunçalp Ö, Johnston HB, Johnson BR, Gülmezoglu A, Temmerman M. From concept to measurement: operationalizing WHO's definition of unsafe abortion. Bull World Health Organ 2014; 92:155.. Apesar dos avanços científicos capazes de proporcionar um abortamento seguro para a mulher, abortos inseguros continuam a ocorrer, causando aumento dos custos ao sistema de saúde, complicações e mortes maternas 33. Say L, Chou D, Gemmill A, Tunçalp Ö. Global causes of maternal death: a WHO systematic analysis. Lancet Glob Health 2014; 2: e323-33..

No Brasil, o aborto é um problema de saúde pública, tanto pela magnitude como pela persistência 44. Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:653-60.. Vários estudos, ao longo dos anos, em diferentes regiões e com metodologias distintas, empenharam-se em estimar o número de abortos ocorridos anualmente, sejam espontâneos ou provocados. Esses estudos foram baseados em entrevista, coleta de dados pelo método de urna, pesquisa com base nos registros de procedimentos e internações, e estimaram percentuais muito distintos de prevalência de abortamentos no país 44. Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:653-60.,55. Heilborn ML, Aquino EML, Bozon M, Knauth DR, organizadores. O aprendizado da sexualidade: um estudo sobre reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2006.,66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde 2013: indicadores de saúde e mercado de trabalho. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.,77. Alan Guttmacher Institute. Aborto clandestino: uma realidade latino-americana. New York: Alan Guttmacher Institute; 1994.,88. Corrêa S, Freitas A. Atualizando os dados sobre a interrupção voluntária da gravidez no Brasil. Revista Estudos Feministas 1997; 5:389-95..

Mesmo com várias pesquisas nessa área, diferenças metodológicas, dados não padronizados nos sistemas de informações de saúde, carência de dados oriundos do sistema de saúde suplementar, entre outros fatores, contribuem para que ainda exista controvérsia na estimativa do número de abortos no Brasil.

O aborto ainda configura uma importante causa de óbito materno, embora com tendência de queda, com redução do risco de morrer de 83,3% entre 1990 e 2012 99. Departamento de Análise de Situação em Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2013: uma análise da situação de saúde e das doenças transmissíveis relacionadas à pobreza. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.,1010. Laurenti R, Mello Jorge MHP, Gotlieb SLD. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Rev Bras Epidemiol 2004; 7:449-60.. As causas de mortalidade materna são obtidas do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), no qual os dados provenientes das Declarações de Óbito (DO) são processados. A avaliação da magnitude da mortalidade materna, por meio dos dados disponíveis no SIM, enfrenta problemas de subdiagnóstico. Grande parte desses óbitos não é declarada como tal 1111. Departamento de Análise de Situação em Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito materno. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos)., visto a dificuldade da identificação dos mesmos. Para a classificação como óbito materno, o óbito deve ser de mulher em idade fértil, ou seja, mulheres entre 10 e 49 anos, informado como ocorrido no ciclo gravídico-puerperal no campo 37 do modelo em uso da DO e, ainda, que a causa básica seja uma das classificadas como causas maternas 1212. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2017: uma análise da situação de saúde e os desafios para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.. A dificuldade na correta identificação e classificação dos óbitos maternos, com subsequente subnotificação, tornou necessário o uso de fatores de correção para a melhor estimativa dos óbitos ocorridos 1212. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2017: uma análise da situação de saúde e os desafios para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.. O Ministério da Saúde apresentou, em 2017, uma atualização do fator de correção padronizado para óbitos maternos 1313. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2015/2016: uma análise da situação de saúde e da epidemia pelo vírus Zika e por outras doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

Entre os óbitos maternos por aborto a dificuldade de classificação é ainda maior. Desde a implantação do SIM, pesquisas evidenciam a subnotificação das mortes maternas por aborto 1010. Laurenti R, Mello Jorge MHP, Gotlieb SLD. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Rev Bras Epidemiol 2004; 7:449-60.,1414. Ministério da Saúde. Portaria nº 653, de 28 de maio de 2003. Diário Oficial da União 2003; 30 mai.. No caso dos abortos induzidos, a ilegalidade da prática contribui ainda mais para a subnotificação 22. Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série B. Textos Básicos de Saúde).,1515. Souza KV, Almeida MRCB, Soares VMN. Perfil da mortalidade materna por aborto no Paraná: 2003-2005. Esc Anna Nery 2008; 12:741-9.,1616. Valongueiro S. Mortalidade (materna) por aborto: fontes, métodos e instrumentos de estimação. In: Anais do 12º Encontro Nacional de Estudos Populacionais. http://www.abep.org.br/~abeporgb/publicacoes/index.php/anais/issue/view/32/showToc (acessado em 26/Set/2018).
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. Mesmo com a grande dificuldade na identificação do óbito materno por aborto, não foram propostos fatores de correção padronizados específicos para esta causa de óbito.

Com o objetivo de identificar óbitos maternos não declarados na DO, a Portaria nº 653 de 28 de maio de 2003 1414. Ministério da Saúde. Portaria nº 653, de 28 de maio de 2003. Diário Oficial da União 2003; 30 mai. estabeleceu a obrigatoriedade da investigação de óbitos de mulheres em idade fértil. A investigação permite ainda qualificar as informações das causas dos óbitos maternos que serão incorporadas ao SIM, além de apontar oportunidades de intervenção para aprimorar a assistência. As informações provenientes da investigação dos óbitos são registradas em módulo específico do SIM, porém não dispensam as correções necessárias da base de dados do Sistema, conforme dispõe o Guia de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno1111. Departamento de Análise de Situação em Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito materno. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). do Ministério da Saúde.

Outra fonte de dados sobre a ocorrência de aborto no país são as internações hospitalares, disponíveis no Sistema de Informações Hospitalares (SIH). O Sistema registra as internações hospitalares no sistema público brasileiro, coletando-as com a finalidade administrativa de contabilizar procedimentos realizados em internações e controlar os custos para repasse às unidades de saúde executoras pelas secretarias municipais de saúde (Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informações Hospitalares do SUS. http://datasus.saude.gov.br/sistemas-e-aplicativos/hospitalares/sihsus, acessado em 12/Dez/2018). O SIH disponibiliza também dados que permitem a tabulação de informações sobre internações por procedimentos ou diagnósticos ligados ao aborto. Em contrapartida, a assistência ao aborto sem necessidade de internação, dados consistentes sobre a assistência ao aborto em nível ambulatorial e dados sobre procedimentos no setor de saúde suplementar não estão disponíveis para análise (Procedimentos hospitalares do SUS. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sih/Proced_hosp_loc_int_1992_2007.pdf, acessado em 01/Fev/2018).

Este trabalho se propõe a descrever a situação do aborto no país e regiões, no período de 2006 a 2015, com base nos dados oficiais dos sistemas de informações em saúde.

Metodologia

Estudo descritivo de série temporal, de base populacional, com o objetivo de descrever o cenário do aborto no país, utilizando dados públicos disponíveis para consulta e para download nos diversos sistemas de informação em saúde do Brasil. Para as informações de óbitos foram utilizados os dados do SIM entre 2006 e 2015. Para os nascimentos foram usados os dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), também de 2006 a 2015. As bases de dados do SIM e SINASC foram obtidas por meio de download da página de Internet do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) disponível em: http://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude/servicos2/transferencia-de-arquivos.

Os dados de internações hospitalares do SIH foram obtidos por meio da ferramenta Tabnet também da página de Internet do DATASUS (http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0202&id=11633 e http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0203&id=6926). O período avaliado foi de 2008 a 2015, uma vez que somente a partir de 2008 a ferramenta Tabnet permite a tabulação pelo ano do atendimento. Para os anos anteriores, a tabulação disponível é pelo ano do processamento, o que poderia trazer distorções devido à possibilidade de processamento de internações de anos anteriores.

Para a identificação e análise dos óbitos por aborto foi considerada a causa básica do óbito, conforme estabelecido na Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão (CID-10) 1717. Organização Mundial da Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª revisão. São Paulo: Edusp; 2012.. Foi usada a classificação sugerida pelo Guia de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno1111. Departamento de Análise de Situação em Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito materno. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). para o cálculo da Razão de Mortalidade Materna (RMM) específica por aborto, utilizando-se as seguintes categorias da CID-10: O03 (aborto espontâneo), O04 (aborto por razões médicas e legais), O05 (outros tipos de aborto), O06 (aborto não especificado) e O07 (falha de tentativa de aborto). O cálculo da RMM específica por aborto foi baseado no local de residência da mulher. Não foram utilizados fatores de correção por não haver fator padronizado específico proposto para óbitos por aborto. O denominador da razão foi o número de nascidos vivos obtido do SINASC.

A análise dos dados das internações hospitalares por aborto obtidos do SIH foi realizada segundo o diagnóstico de internação e segundo o procedimento realizado, e também foi baseada no município de residência da mulher. A análise por diagnóstico incluiu os grupos “aborto espontâneo”, “aborto por razões médicas” e “outras gravidezes que terminam em aborto”. Os procedimentos da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS incluídos na análise foram “curetagem pós-abortamento/puerperal” (0411020013) e “esvaziamento de útero pós-aborto por aspiração manual intrauterina” (AMIU) (0409060070). A análise comparativa do número de internações por aborto entre as diferentes unidades da federação utilizou a relação entre o número de internações por aborto no SIH e o número de internações por parto no SIH, com o objetivo de reduzir a influência das variações de fertilidade na população e a utilização de serviços de saúde suplementar. Para a análise das internações por procedimentos relacionados ao parto foram considerados todos os procedimentos classificados no Subgrupo 10 (parto e nascimento) do Grupo 3 (procedimentos clínicos), exceto “atendimento ao recém-nascido no momento do nascimento” (031001002-0). Foram considerados ainda os procedimentos classificados no Subgrupo 11 (cirurgia obstétrica) do Grupo 4 (procedimentos cirúrgicos), Forma de organização 01 (parto).

Os dados de mortalidade por aborto e de internações por diagnóstico ou procedimentos relacionados ao aborto foram avaliados segundo as seguintes variáveis (quando disponíveis): local de residência da mulher, características sociodemográficas (idade, escolaridade, situação conjugal, raça/cor), classificação do aborto (legal/espontâneo/outros tipos/não especificado), ano de ocorrência e custos das internações por aborto. A análise da variável situação conjugal foi considerada de 2011 a 2015 devido à mudança dos formulários de DO e Declaração de Nascido Vivo com a inclusão do campo união estável.

Não houve submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa por se tratar de pesquisa com dados públicos do Ministério da Saúde. Os resultados foram expressos de forma agregada, sem possibilidade de identificação, de acordo com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

A análise do SIM mostrou que, entre 2006 e 2015, foram registrados no Brasil 770 óbitos com causa básica aborto. Apesar da variação ao longo dos anos devido à pequena magnitude dos números absolutos, observou-se uma tendência de redução dos óbitos por aborto no Brasil com diferenças regionais. As regiões Norte, Sudeste e Centro-oeste alternaram-se com as maiores RMM específicas por aborto ao longo do período e a Região Sul manteve a menor RMM específica por aborto em todo o período. A Região Centro-oeste é a única região brasileira que apresenta clara tendência de aumento da mortalidade por aborto a partir dos dados registrados no SIM. As RMM específicas por aborto no Brasil e por macrorregião são apresentadas na Figura 1.

Figura 1
Razão de mortalidade materna específica por aborto. Brasil e macrorregiões, 2006 a 2015.

A proporção dos óbitos por aborto entre os óbitos maternos registrados no SIM apresentou redução de 2006 a 2015. Os óbitos por aborto no Brasil eram 5,7% dos óbitos maternos em 2006 e passaram a 4,1% em 2015, tendo sido de apenas 3,2% em 2014. A Região Sudeste apresentou a maior redução da proporção e a Centro-oeste registrou aumento importante, passando de 3,9% em 2006 para 6,1% em 2015.

O aborto não especificado (categoria O06 da CID-10) se manteve como a causa básica mais frequente entre os óbitos por aborto no período avaliado, com média de 56,5% dos casos. Entre os 770 óbitos com causa básica declarada como aborto, apenas 7 (0,9%) óbitos foram devidos a aborto por razões médicas e legais (O04), 115 (14,9%) foram declarados como abortos espontâneos (O03), 117 (15,2%) como outros tipos de aborto (O05) e 96 (12,5%) como falha de tentativa de aborto (O07).

Entre 2006 e 2015, os óbitos por aborto foram mais frequentes na faixa etária de 20-29 anos no Brasil. Apenas no ano de 2007 a faixa de 30-39 anos registrou um número maior de óbitos. Todas as regiões também apresentaram o maior volume de óbitos na faixa de 20-29 anos no conjunto dos anos analisados. A RMM específica por aborto por idade foi maior nas faixas de maior idade. Em 8 dos 10 anos estudados a RMM foi maior entre as mulheres de mais de 40 anos, e em 2010 e 2014 entre as adolescentes de 10-14 anos. Nas regiões Nordeste e Sudeste, que concentram o maior número de óbitos por aborto registrados no SIM, foi possível observar a maior RMM por aborto nas faixas dos extremos de idade. Nas demais regiões, apesar da pequena proporção de registros sem informação (0,004% dos nascimentos e nenhum óbito), o reduzido número de óbitos por aborto confere muita variação do indicador, dificultando a análise.

A distribuição do total de óbitos por aborto entre 2006 e 2015, segundo a cor da pele, manteve distribuição relativamente estável, com aproximadamente metade dos óbitos no grupo de mulheres de cor parda. A RMM específica por aborto segundo a cor da pele mostra que no Brasil, pelos dados registrados no SIM e no SINASC, o grupo de mulheres de cor preta apresentou os maiores valores de 2006 a 2012. Em 2013 e 2014, as indígenas foram o grupo com a maior RMM. Em 2015, com apenas 1 óbito por aborto e com 0,36% dos nascimentos do país, as mulheres de cor amarela apresentaram a maior RMM do Brasil. Na média dos 10 anos, o grupo de mulheres de cor preta manteve a maior RMM, porém, houve queda importante da RMM deste grupo nos últimos cinco anos (Figura 2). Apenas a Região Sudeste mantém maior RMM no grupo de mulheres de cor preta. Essa variável também apresenta pequena proporção de dados ignorados (cerca de 5%) para óbitos por aborto e para nascimentos no conjunto dos anos.

Figura 2
Razão de mortalidade materna (RMM) específica por aborto por raça/cor. Brasil, 2006 a 2015.

As proporções de óbitos por aborto segundo a situação conjugal se mantiveram estáveis no país de 2011 a 2015. A análise da média dos anos considerando as categorias “vivendo em união” (casada e união estável) e “não vivendo em união” (solteira, separada, viúva) mostra que as proporções, excluídos os registros sem informação (média de 8,2%), têm se mantido em aproximadamente 30% e 70%, respectivamente. A maior proporção de óbitos por aborto em mulheres sem vínculo conjugal é comum a todas as regiões brasileiras, variando a magnitude. Essa proporção é de 60,6% na Região Norte, 63,5% na Nordeste, 73,8% na Sudeste, 90,5% na Região Sul e 66,8% na Região Centro-oeste.

Em relação à escolaridade, observou-se uma relativa melhora da qualidade dos dados dos óbitos por aborto, com redução de aproximadamente 49% do percentual de dados ignorados, porém, ainda mantendo 16,7% de ignorados em 2015. As categorias de escolaridade mais baixa (“nenhuma escolaridade” e “de 1-3 anos de estudos”) apresentaram aumento tanto percentual quanto do número absoluto de óbitos. As demais categorias registraram redução do número de óbitos. A análise comparativa da RMM específica por aborto segundo os grupos de escolaridade é prejudicada pelo pequeno número de óbitos de cada categoria e pelo percentual de informação ignorada para esta variável.

A análise do percentual de óbitos de mulheres em idade fértil investigados mostra diferenças entre as regiões brasileiras. Em 2015, esse percentual variou de 92,5% na Região Centro-oeste a 86,7% na Região Norte. Apesar do grande número de óbitos investigados, o percentual de óbitos de mulheres em idade fértil, excluídos os óbitos maternos, sem qualquer informação sobre o momento do óbito em relação ao ciclo gravídico puerperal, variou de 15,4% na Região Sul a cerca de 36% na Região Norte no ano de 2015. Esse percentual variou no Brasil de 54% para 29,2% entre 2006 e 2015.

A causa do óbito considerada nas análises de mortalidade é aquela selecionada como Causa Básica do Óbito. Há, porém, outros diagnósticos citados nos atestados de óbitos, não selecionados como causa básica, mas que se associaram à causa do óbito. A análise de causa múltipla mostra que, entre 2006 e 2015, houve, além dos 770 óbitos já citados, outros 220 óbitos com menção de aborto, porém com outra causa básica. Desses, 58,2% apresentaram causa básica classificada no Capítulo XV da CID-10, ou seja, eram óbitos maternos declarados por outras causas, porém com menção da ocorrência de aborto. As causas básicas do Capítulo XV mais frequentes nos 220 óbitos com menção de aborto são as classificadas na categoria O99 da CID-10 (Outras doenças da mãe, classificadas em outra parte, mas que complicam a gravidez, o parto e o puerpério), seguidas de O85 (Infecção puerperal), O23 (Infecção do trato geniturinário na gravidez) e O96 (“Morte, por qualquer causa obstétrica, que ocorre mais de 42 dias, mas menos de 1 ano, após o parto”).

Há ainda, entre os 220 óbitos com menção de aborto, óbitos com causa básica classificada em 13 outros capítulos da CID-10. Em média, nos anos analisados, ocorreram, além daqueles classificados com causa básica nas categorias da CID-10 específicas de aborto, mais 28,8% de óbitos com menção de aborto. A proporção da menção de aborto foi diferente em cada região brasileira, com bastante variação entre os anos. O percentual anual médio foi de 41,5% na Região Norte, 34% na Nordeste, 26,9% na Sudeste, 51,6% na Região Sul e 25,7% na Região Centro-oeste. A Figura 3 mostra o total de óbitos com causa básica aborto e o total de óbitos com outras causas básicas e com menção de aborto.

Figura 3
Óbitos com causa básica e com menção de aborto. Brasil, 2006 a 2015.

O SIH registrou média de aproximadamente 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto entre 2008 e 2015. Essas internações apresentaram um valor total de aproximadamente R$ 40.000.000,00 ao ano, divididos entre serviços profissionais (média de 35%) e serviços hospitalares (média de 65%). Esses percentuais variaram pouco ao longo do tempo. O procedimento informado foi “Curetagem pós-abortamento/puerperal” em aproximadamente 95% dos casos. O “esvaziamento de útero pós-aborto por aspiração manual intrauterina” (AMIU) correspondeu a apenas 5% dos procedimentos na média dos anos analisados. Houve diminuição progressiva do número de internações no período. A redução foi de 9,5% no Brasil e ocorreu em todas as regiões brasileiras de forma desigual. A maior redução percentual ocorreu na Região Nordeste (12,1%), seguida da Centro-oeste (11,4%), Sudeste (10,7%), Região Norte (4,5%) e Região Sul (0,9%).

O SIH também registrou, no período estudado, uma redução das internações por procedimentos relacionados ao parto. A redução foi de 5,9% no Brasil e também ocorreu em todas as regiões de forma desigual. A Região Nordeste também apresentou a maior redução (12,2%), seguida da Região Norte (7,6%), Centro-oeste (4,9%), Sudeste (0,8%) e Região Sul (0,2%). A relação entre o número de internações por aborto e o número de internações por parto registrou redução discreta no país (3,8%), passando de 106 internações por abortos para cada 1.000 internações por parto em 2008 para 102 internações por abortos para cada 1.000 internações por parto em 2015. A Região Nordeste, apesar de apresentar a maior redução em números absolutos e percentuais nas internações por aborto, ainda apresentou em 2015 a maior relação entre internações por aborto e parto (104,4/1.000). Em 2015, essa relação foi de 104,2/1.000 na Região Sudeste, 103,1/1.000 na Norte, 96,5/1.000 na Sul e de 93,6/1.000 na Região Centro-oeste (Tabela 1).

Tabela 1
Número absoluto de internações e razão entre internações por aborto e parto. Brasil, 2006 a 2015.

A análise dos dados segundo o diagnóstico de internação, incluindo os grupos “aborto espontâneo”, “aborto por razões médicas” e “outras gravidezes que terminam em aborto”, entre 2008 e 2015, mostra que foram registradas no SIH uma média de aproximadamente 212 mil internações/ano. O valor total médio foi de cerca de R$ 47.000.000,00 ao ano, divididos entre serviços profissionais (média de 34%) e serviços hospitalares (média de 66%) sem variações importantes no período.

Houve também, como na análise das internações por procedimento, uma queda do total de internações entre 2008 e 2015 de 8%, porém sem redução equivalente do valor total informado. A redução do número de internações ocorreu em todas as regiões brasileiras exceto na Região Sul, onde houve aumento bastante discreto.

A faixa etária de 20-29 anos foi a mais frequente entre as mulheres internadas com diagnóstico de aborto no Brasil por todo o período avaliado, porém apresentou redução de 49,8% em 2008 para 44,5% em 2015. Houve aumento da proporção do grupo de 30-39 anos, passando de 25,9% em 2008 a 31,8% em 2015. O padrão é comum a todas as regiões. Não há internações informadas sem registro de idade.

O grande percentual de registro sem informação (média de 38,2%) inviabiliza a análise das internações com diagnóstico de aborto segundo a variável raça/cor. Os dados de internação segundo diagnóstico do SIH disponíveis na ferramenta Tabnet não incluem as variáveis escolaridade e situação conjugal.

Não é possível identificar, com base no procedimento realizado, se o aborto foi espontâneo ou induzido e não há categoria na CID-10 específica para aborto provocado ou ilegal. Esses devem ser classificados na categoria O05 (outros tipos de aborto) ou O07 (falha de tentativa de aborto). O aborto por razões médicas e legais, por sua vez, tem código específico na CID-10. A análise das internações SUS com diagnóstico no grupo “aborto por razões médicas” é uma das possíveis formas de avaliar o acesso ao aborto legal no Brasil. O total dessas internações no país apresentou queda inicial entre 2008 e 2009 e estabilidade no período de 2009 a 2015. A média de internações nesse período foi de aproximadamente 1.600 internações/ano. A mesma estabilidade do total de internações foi verificada na Região Sudeste. Na Região Nordeste, houve um importante aumento e nas demais regiões o número de internações diminuiu no período, especialmente na Região Sul. A média do número de internações por diagnóstico nos outros dois grupos foi de 109 mil internações/ano no grupo “aborto espontâneo” e de 100 mil internações/ano no grupo “outras gravidezes que terminam em aborto”. Houve uma inversão da proporção de internações entre os grupos “aborto espontâneo” e “outras gravidezes que terminam em aborto”. O “aborto espontâneo” deixou de ser a categoria mais frequente, correspondendo a 47% das internações em 2015.

O registro no SIH dos óbitos decorrentes das internações relacionados ao aborto apresentou bastante inconsistência. Nos anos de 2008, 2009 e 2010 no Estado de Pernambuco, nos anos de 2014 e 2015 no Estado de Goiás e em 2014 no Distrito Federal, o número de óbitos registrado é flagrantemente destoante dos demais estados e demais anos para os mesmos estados e ainda do número de internações informadas. Os dados relativos a esses locais, nesses períodos, não foram considerados. No período de 2008 a 2015, o SIH registrou uma média de 45 óbitos por ano, consequentes de internações com diagnóstico de aborto. Os dados apresentam relativa estabilidade ao longo do período e não é possível afirmar tendência de aumento ou queda para as regiões. Como a análise do SIM mostra que no período houve redução do número total dos óbitos por aborto, a relação entre o número de óbitos por aborto registrados no SIH e o número de óbitos por aborto do SIM aumenta de 47,4% em 2008 para 72,2% em 2015 (Figura 4).

Figura 4
Total e proporção de óbito por aborto no SIH e no SIM. Brasil, 2008 a 2015.

Discussão

O Brasil, em 2015, investigou 91,5% dos óbitos de mulheres em idade fértil. Apesar do grande percentual de investigação existem problemas evidentes. A proporção de investigação é diferente quando tabulada baseando-se no módulo de investigação do SIM ou valendo-se da variável específica na base de dados, o que sugere que a informação de investigação pode não estar incorporada integralmente à base de dados. Os percentuais de ausência de informação sobre o momento do óbito em relação ao ciclo gravídico-puerperal (29,2% para o Brasil em 2015) reforça essa ideia. É possível que a falta de correção da causa básica qualificada pela investigação comprometa a identificação de óbitos maternos, contribuindo para a subnotificação. Os mesmos determinantes que condicionam a subnotificação de óbitos maternos em geral se aplicam aos óbitos por aborto registrados no SIM, especialmente aqueles relacionados ao aborto induzido. Outros fatores poderiam se somar, como fatores legais, religiosos, éticos, familiares etc. Esses fatores poderiam interferir na determinação e identificação da causa do óbito por aborto.

Foram identificados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM de 2006 a 2015 que, se somados aos 220 óbitos que têm o aborto como uma das causas mencionadas, representariam um acréscimo de aproximadamente 29% no total de óbitos associados ao aborto no período de 2006 a 2015 no Brasil. Entre os 220 óbitos com causa associada ao aborto, há alguns com causa básica frequentemente relacionada ao aborto, como infecção puerperal. Em alguns desses casos, a incorporação do resultado da investigação talvez pudesse identificar o aborto como causa. Há outros em que as regras da CID-10 determinam que devam receber codificação específica, como os óbitos maternos tardios (mais de 42 dias de puerpério), que sempre devem aparecer com causa básica na categoria O96 da CID-10 (“morte, por qualquer causa obstétrica, que ocorre mais de 42 dias, mas menos de 1 ano, após o parto”) mesmo tendo o aborto como causa básica. Entre os óbitos com menção de aborto com causas básicas fora do Capítulo XV da CID-10 há alguns com causas básicas bem especificadas, como neoplasias e causas externas, em que o aborto pode ter sido uma consequência de outras condições. Há, porém, óbitos com menção de aborto e causas básicas pouco especificadas, como sepse e peritonite, que poderiam ser consequências de aborto. Um estudo realizado em Minas Gerais, de 2000 a 2011, sobre mortalidade materna relacionada ao aborto à luz das causas múltiplas, afirmou que o aborto foi identificado como causa básica em cerca de 11% dos óbitos e mais 4% tinham causa associada ao aborto. Nos óbitos cuja causa associada estava relacionada ao aborto, as causas básicas foram classificadas como causas maternas em 56% dos óbitos, e 44% foram classificadas como causa não maternas 1818. Martins EF, Almeida PFB, Paixão CO, Bicalho PG, Errico LSP. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00133115.. Este estudo evidenciou resultados semelhantes.

O SIH registrou aproximadamente 200 mil internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto entre 2008 e 2015 e a “curetagem pós-abortamento/puerperal” foi o procedimento descrito em aproximadamente 95% dos casos, já o “esvaziamento de útero pós-aborto por aspiração manual intrauterina” (AMIU) correspondeu a apenas 5%. O SIH registra os procedimentos para os quais foi necessária uma internação hospitalar. Procedimentos realizados sem internação hospitalar não são registrados. A diferença na necessidade de internação nos dois procedimentos poderia justificar parte da diferença na proporção de internação entre os dois procedimentos.

O número de internações por aborto identificado neste estudo é bastante inferior às estimativas do número de abortos ocorridos no Brasil. Pesquisa desenvolvida no Brasil, Chile, México, Peru, Colômbia e República Dominicana, com base em registros de curetagens realizadas nos serviços públicos e em entrevistas com profissionais de saúde, estimou, para 1991, a ocorrência no Brasil de 1.443.350 abortos 77. Alan Guttmacher Institute. Aborto clandestino: uma realidade latino-americana. New York: Alan Guttmacher Institute; 1994.. Estimativas mais recentes apontaram para a ocorrência de 687.347 a 865.160 abortos induzidos no Brasil em 2013 1919. Monteiro MFG, Adesse L, Drezett J. Atualização das estimativas da magnitude do aborto induzido, taxas por mil mulheres e razões por 100 nascimentos vivos do aborto induzido, por faixa etária e grandes regiões. Brasil, 1995 a 2013. Reprod Clim 2015; 30:11-8.. O número de internações por aborto identificado é influenciado pela segmentação da informação para o setor público e pela qualidade da informação do diagnóstico do aborto já mencionada. Refere-se, ainda, à proporção de abortos, induzidos ou espontâneos, que necessitaram de internação hospitalar. O número de internações por aborto é apenas uma das fontes de dados para a estimativa do total de abortos ocorridos no Brasil.

A tendência de redução do número de internações por aborto, de 9,5% no caso da análise por procedimentos, é também identificada por outros estudos. Um estudo utilizando dados do SIH, entre 1995 e 2013, estimou o número de abortos induzidos no país, concluindo que as internações de mulheres em idade fértil por complicações do aborto diminuíram 27% e a estimativa do número anual de abortos induzidos recuou 26% 1919. Monteiro MFG, Adesse L, Drezett J. Atualização das estimativas da magnitude do aborto induzido, taxas por mil mulheres e razões por 100 nascimentos vivos do aborto induzido, por faixa etária e grandes regiões. Brasil, 1995 a 2013. Reprod Clim 2015; 30:11-8..

O aumento da proporção de óbitos registrados no SIH em relação aos óbitos por aborto do SIM de 47,4% em 2008 para 72,2% em 2015 poderia ter duas justificativas. A primeira seria o aumento da proporção de óbitos nas internações no sistema público, que é registrado pelo SIH, em comparação ao sistema de saúde suplementar. A segunda seria o melhor registro dos óbitos nas internações no SIH apesar das fragilidades dos dados já apontadas, o que faz com que essa análise precise ser considerada com cautela.

O perfil das mulheres que morreram por aborto identificado neste trabalho é coincidente com outros estudos. Um estudo realizado em Minas Gerais 1818. Martins EF, Almeida PFB, Paixão CO, Bicalho PG, Errico LSP. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00133115. apresentou as características das mulheres que foram a óbito relacionado ao aborto como mulheres de 20-34 anos, solteiras (68%) e negras (70,5%), em sua maioria com menos de 7 anos de estudos, ressaltando ainda que em torno de 40% dos dados referentes às variáveis escolaridade e ao momento do óbito em relação à gravidez ou puerpério estavam em branco. O óbito por aborto caracteriza uma situação de iniquidade em saúde devido ao maior número de óbitos nos grupos de maior vulnerabilidade (baixa escolaridade e raça/cor negra) 1818. Martins EF, Almeida PFB, Paixão CO, Bicalho PG, Errico LSP. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00133115..

Uma limitação do presente estudo foi a de não conseguir captar dados da ocorrência de abortos sem necessidade de internação e daqueles que resultaram em internação no serviço privado. Por outro lado, mostrou que mulheres mais vulneráveis estão mais propensas a morrer após um aborto, mesmo observando apenas aquelas que procuram o serviço público, sabidamente mais sujeitas a um aborto inseguro 11. Ganatra B, Tunçalp Ö, Johnston HB, Johnson BR, Gülmezoglu A, Temmerman M. From concept to measurement: operationalizing WHO's definition of unsafe abortion. Bull World Health Organ 2014; 92:155..

Conclusão

Não há, nos sistemas de informação de saúde brasileiros, qualquer dado sobre aborto inseguro.

As bases de dados oficiais de saúde não permitem ter uma estimativa do número de abortos que ocorrem no Brasil. Os dados disponíveis se restringem aos óbitos por aborto e às internações por complicações de aborto no serviço público de saúde.

A atenção ao adequado preenchimento da DO é fator fundamental para a obtenção de maior precisão nas informações de mortalidade. A qualidade da informação da causa de morte e a subnotificação de óbitos maternos e por aborto, além da completude e correção de outras variáveis do SIM, poderiam também ser aprimoradas, com a incorporação sistemática das informações da investigação de óbitos à base de dados do SIM.

Os pontos apresentados antes, de forma indireta, poderiam ter repercussão na melhor identificação dos óbitos por aborto. A identificação dos óbitos com menção de aborto na DO, porém com causas básicas classificadas em outras categorias da CID-10, sugere a necessidade de inclusão da análise de causas múltiplas para o melhor dimensionamento da mortalidade envolvendo o aborto. A melhoria da qualidade dos dados do SIH, principalmente no que diz respeito à regularidade dos registros, diagnósticos e óbitos, além do acesso às informações de atendimentos do setor de saúde suplementar de forma sistematizada e regular são ações que contribuiriam para um melhor conhecimento sobre o aborto no Brasil.

Apesar da subnotificação dos óbitos, os dados oficiais disponíveis sobre nascimentos e óbitos permitem traçar um perfil das mulheres com maior risco de morrer por aborto no Brasil com base no cálculo das RMM específicas. Essas são as mulheres de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com mais de 40 anos ou menos de 14, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste e vivendo sem união conjugal. Esse perfil pode ser usado como um marcador de risco nas internações pós-aborto, de modo a aumentar a vigilância clínica desses casos, resultando em uma evolução mais favorável. Esses grupos necessitam principalmente de acesso e qualificação das ações de planejamento reprodutivo e atenção pré-natal, a fim de reduzir o risco da ocorrência de aborto quer seja espontâneo ou provocado.

Agradecimentos

Global Health Strategies financiou, porém sem influência nos métodos e resultados da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2018
  • Revisado
    14 Jan 2019
  • Aceito
    04 Fev 2019
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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