A Internet e o desenvolvimento de aplicativos que envolvem mais o usuário abriram um mundo totalmente novo para pesquisadores, seja na utilização da rede como meio de acesso a potenciais participantes do estudo, seja na inclusão das informações produzidas aí como fonte de dados para pesquisa em saúde 11. Biedermann N. The use of Facebook for virtual asynchronous focus groups in qualitative research. Contemp Nurse 2018; 54:26-34.. Adicionalmente, a COVID-19 acelerou a implementação das tecnologias digitais no aprimoramento das estratégias de saúde pública relacionadas à telessaúde 22. Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00088920..
Por outro lado, a compreensão do processo saúde-doença exige não apenas conhecimento de dados epidemiológicos, mas também de pesquisas sobre a percepção da doença, práticas sociais relacionadas às formas de transmissão, comportamentos de busca de saúde, oferecimento e barreiras de acesso aos serviços. Para um melhor entendimento de tais dimensões de respostas a surtos de doenças infecciosas, as pesquisas qualitativas têm um robusto histórico de contribuição 33. Vindrola-Padros C, Chisnall G, Cooper S, Dowrick A, Djellouli N, Symmons SM, et al. Carrying out rapid qualitative research during a pandemic: emerging lessons from COVID-19. Qual Health Res 2020; 30:2192-204.. No entanto, o distanciamento social impõe enormes restrições de acesso ao campo para o investigador qualitativo. Neste contexto, o livro Coleta de Dados Qualitativos: Um Guia Prático para Técnicas Textuais, Midiáticas e Virtuais ganha relevância por constituir um resumo das novas formas de utilizar plataformas digitais na coleta de dados em pesquisa qualitativa. Embora lançado em 2019, o livro oferece uma rica contribuição ao momento atual por tratar, com profundidade, da utilização de fontes de dados virtuais e de mídia na produção do conhecimento científico.
Pesquisadores iniciantes na pesquisa qualitativa em saúde frequentemente têm dúvidas sobre como transferir o conhecimento acerca da coleta de dados offline para um ambiente online44. Wilkerson JM, Iantaffi A, Grey JA, Bockting WO, Rosser BR. Recommendations for internet-based qualitative health research with hard-to-reach populations. Qual Health Res 2014; 24:561-74.. Neste livro, as autoras propõem diretrizes de melhores práticas, com base na literatura e em sua própria experiência, para ajudar estudantes e pesquisadores iniciantes a determinar se um desenho de estudo qualitativo online é apropriado para seu projeto de pesquisa e, em caso positivo, fornecer dicas práticas de como implementá-lo. O principal objetivo é propor referências de fácil compreensão para a coleta de dados qualitativos em diferentes contextos, especialmente nos meios virtuais.
O texto é dividido em três partes temáticas, cada qual tratando de um tipo de fonte de dados. As partes são divididas em quatro capítulos, com autores distintos, especialistas nos métodos que apresentam. A primeira trata da coleta de dados textuais (capítulos 2 a 5), a segunda, da coleta de dados da mídia (capítulos 6 a 9) e a terceira enfoca coleta de dados virtuais (capítulos 10 a 13). Nota-se muitas vezes sobreposição entre as partes, pois os dados textuais e de mídia são frequentemente acessados online. A ênfase é na coleta de dados, em detrimento dos modos diferentes de análise.
Inicialmente as autoras introduzem os leitores nos fundamentos da coleta de dados textuais, midiáticos e virtuais da pesquisa qualitativa. O capítulo 2 aborda os “levantamentos qualitativos”, nos quais os participantes respondem por escrito um conjunto de perguntas abertas sobre experiências e práticas de determinados grupos. As autoras apresentam sua experiência prática com levantamentos “puramente” qualitativos e com levantamentos mistos, sugerindo orientações para coletar dados por meio destes instrumentos. No capítulo 3, os autores apresentam o “preenchimento de histórias”, ferramenta tradicionalmente conhecida como método projetivo na psicologia, mas que aqui é trazida como uma estratégia criativa para conhecer visões e opiniões dos entrevistados sobre questões de gênero, sexualidade e aparência. No capítulo 4, as “vinhetas como método qualitativo e independente” são apresentadas como caminhos possíveis para compreender o processo de construção de sentidos pelos participantes da pesquisa. No capítulo 5, é proposto aos participantes da pesquisa digitar sua resposta por meio do “método do diário solicitado”. Trata-se de uma ferramenta potente para a compreensão de experiências pessoais em uma pesquisa longitudinal.
O capítulo 6 explora diferentes mídias (mídia impressa, mídia social e online) como importantes fontes de dados para pesquisa qualitativa no mundo contemporâneo, oferecendo roteiros práticos para o trabalho com esses tipos de dados. O capítulo 7 apresenta o “rádio falado” como potente fonte de dados para pesquisadores interessados nos diversos aspectos da linguagem e da interação através da fala. No capítulo 8, o autor trata dos blogues como recursos importantes de acesso a relatos em primeira pessoa sobre temas cotidianos. O capítulo 9 destaca o papel dos “fóruns de discussão” online como fonte de relatos, visões e experiências pessoais, que permitem também compreender processos de interação e formação de identidades sociais. Aqui também se problematizam questões éticas relacionadas a esta fonte de dados obtidos online.
A parte três interessa especialmente a pesquisadores que tiveram projetos interrompidos pelo distanciamento social. As autoras se concentram na coleta de dados virtuais obtidos de formas interativas, isto é, entrevistas e grupos focais online. Detalham diversos aspectos avaliados na opção por entrevistas individuais ou grupos focais, problematizando o uso de métodos síncronos ou assíncronos, além da utilização exclusiva de material textual ou da inserção de elementos da mídia visual. Destacam inúmeras vantagens dos métodos virtuais como: “superação da distância”, “facilidade e flexibilidade de agendamento”, “conveniência para pesquisadores e participantes”, “interação visual e virtual”, “possibilidade maior de anonimato”, “facilidade de captura de dados” e “confidencialidade de dados e facilidade”. Apontam os desafios relativos à confidencialidade da coleta de dados em espaços virtuais. Exploram o uso das tecnologias de chamadas por vídeos (em plataformas tipo Skype - https://www.skype.com/pt-br/) para conduzir entrevistas virtuais que integram dados visuais. Examinam as diferenças entre entrevistas orais presenciais e entrevistas escritas virtuais. No capítulo final, as autoras descrevem o universo da pesquisa com grupos focais online. Consideram vantagens desta estratégia, apresentando-a como mais inclusiva para determinados grupos sociais. Descrevem vantagens e desvantagens desta fonte de dados como meio de capturar as vozes de grupos difíceis de alcançar.
Em resumo, o texto apresenta uma coletânea inédita de métodos para levantar dados, registrar e empregar o espaço virtual como fonte de dados qualitativos. Condições impostas pela pandemia aceleraram a necessidade de compreender a natureza deste tipo de pesquisa, que nos permite comunicação e acesso a uma diversidade de pessoas, com um custo baixíssimo. O que estas ferramentas oferecem ao investigador no campo da pesquisa qualitativa? Quais perguntas de pesquisa são adequadas a este tipo de entrevista? Existem especificidades de desenho, amostragem, questões éticas? O que pode “dar errado”? Quais tipos de análise são mais adequados ao universo da pesquisa online? O livro responde de maneira clara e objetiva a questionamentos como estes, constituindo leitura necessária e agradável no contexto atual.
- 1Biedermann N. The use of Facebook for virtual asynchronous focus groups in qualitative research. Contemp Nurse 2018; 54:26-34.
- 2Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00088920.
- 3Vindrola-Padros C, Chisnall G, Cooper S, Dowrick A, Djellouli N, Symmons SM, et al. Carrying out rapid qualitative research during a pandemic: emerging lessons from COVID-19. Qual Health Res 2020; 30:2192-204.
- 4Wilkerson JM, Iantaffi A, Grey JA, Bockting WO, Rosser BR. Recommendations for internet-based qualitative health research with hard-to-reach populations. Qual Health Res 2014; 24:561-74.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Jan 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
01 Nov 2020 - Aceito
27 Nov 2020