Vidas em jogo: reflexões sobre o impacto das Olimpíadas e Paralimpíadas para a saúde pública mundial

Vidas en juego: reflexiones sobre el impacto de las Olimpiadas y Juegos Paralímpicos para la salud pública mundial

Breno Augusto Bormann de Souza Filho Érika Fernandes Tritany Cláudio José Struchiner Sobre os autores

Próximo de completar dois anos de enfrentamento à principal emergência de saúde pública do século XXI, a pandemia de COVID-19, são evidentes os esforços e pressões, em todo o mundo, para a retomada das atividades. Na busca pelo dito “novo normal”, cada vez mais são desenvolvidos planos de convivência com o vírus nas mais diversas dimensões sociais.

Entretanto, apesar dos esforços, o que se visualiza são incompreensões relacionadas aos riscos sobre o potencial de propagação do vírus e mutações frequentes nas populações, associadas à falta de orientação da população em relação ao ainda baixo alcance de vacinação mundial e limitações próprias às vacinas atualmente em curso. Além disso, pouco se tem falado sobre o processo de reabilitação e cuidados em saúde com pessoas que desenvolvam sintomas prolongados relacionados à COVID-19 longa ou síndrome pós-COVID-19, o que pode representar um cenário preocupante para o médio e longo prazo, e grande necessidade de reorganização dos serviços de atenção à saúde 11. Davis HE, Assaf GS, McCorkell L, Wei H, Low RJ, Re'em Y, et al. Characterizing long COVID in an international cohort: 7 months of symptoms and their impact. EClinicalMedicine 2021; 3:101019..

Dentre os eventos que receberam apoio governamental e de grande parte da população mundial estão os grandes eventos esportivos. Sua realização vem sendo justificada pelas organizações e governos, baseando-se não apenas na questão profissional e econômica - relacionada aos atletas, funcionários e outros envolvidos - mas também sob a ótica da necessidade de melhoria da saúde mental da população. Dessa forma, o retorno dessas atividades não essenciais é visualizado como algo necessário ao entretenimento da população, em detrimento dos riscos que podem proporcionar não apenas para os envolvidos diretamente com a realização do evento, mas também a toda a população mundial, que ainda enfrenta o SARS-CoV-2 com elevadas taxas de propagação e circulação.

Como exemplo não distante, podemos citar a realização da Copa América de futebol no Brasil (campeonato realizado entre 13 de junho a 10 de julho de 2021), evento esportivo realizado quando os números de infectados por COVID-19 batiam recordes no país, chegando a atingir valores acima de 100 mil novos casos em 24 horas e média de 1.500 mortos por COVID-19 - cenário marcado por expressiva subnotificação, o que sugere situação epidemiológica ainda mais grave. Tal evento repercutiu no aumento de novos casos e a entrada de variante inédita no país, identificada como cepa B.1.612, oriunda da Colômbia.

Entretanto, apesar do exemplo negativo experienciado recentemente no Brasil, e também sob a justificativa de melhoria da saúde mental e econômica da população, o governo japonês decidiu realizar, em julho de 2021, os Jogos Olímpicos e Paralímpicos - Tóquio 2020, em Tóquio, Japão. Tal decisão gerou grande controvérsia e diferentes posicionamentos entre governantes, pesquisadores e população, em relação à postura adotada pelo país e pelas demais nações apoiadoras do evento, dentre elas o Brasil, sob o comando do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Outrossim, em pesquisa realizada ainda em julho de 2021 (período pré-Olimpíadas), observou-se que 78% dos entrevistados japoneses não concordavam com a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos no país e 65% dos entrevistados acreditavam que a realização dos jogos acarretaria desunião populacional em meio à pandemia de COVID-19 22. Boyon N, Lloyd N. Tokyo Olympics draw muted Interest. IPSOS 2021; 13 jul. https://www.ipsos.com/en-us/news-polls/tokyo-olympics-draw-muted-interest.
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No entanto, levantamos o questionamento sobre o que levaria a população japonesa, em sua maioria, a não apoiar a realização dos dois principais eventos esportivos e que mais movimentam a economia de qualquer país sede? Uma das possíveis respostas à questão, inclusive, foi apontada no estudo realizado, relacionando-se ao medo da propagação do vírus, podendo-se também adicionar o risco aumentado do surgimento de novas variantes no país.

Ao observar os dados referentes ao número de casos novos de infectados pelo SARS-CoV-2, antes e após a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 33. Ministry of Health, Labour and Welfare. Visualizing the data: information on COVID-19 infections. https://covid19.mhlw.go.jp/extensions/public/en/index.html (acessado em 08/Set/2021).
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, evidencia-se um sinal de alerta frente à influência que os jogos possam ter gerado na disseminação do vírus no país, atualmente, a ponto do país decretar, novamente, estado de emergência e alerta máximo para a pandemia de COVID-19, o que ocasionou o fechamento de diversos setores e atividades no país (Figura 1).

Figura 1
Número de casos novos de infectados pelo SARS-CoV-2 diariamente no Japão.

Antes da realização das Olimpíadas, em 30 de junho de 2021, o Japão apresentava semanas seguidas de queda significativa no número de casos de COVID-19 44. Ministry of Health, Labour and Welfare. Situation report. https://www.mhlw.go.jp/stf/covid-19/kokunainohasseijoukyou_00006.html (acessado em 08/Set/2021).
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, isso devido principalmente a políticas públicas de segurança e saúde da população, dentre elas, a contínua recomendação, quando possível, do isolamento social por parte da população; interrupção de aulas presenciais nas escolas; não abertura total dos estabelecimentos comerciais; bem como barreiras relacionadas às fronteiras em todas as regiões do país. Embora os Jogos Olímpicos tenham iniciado apenas no dia 23 de julho de 2021, a movimentação aérea e de chegada ao país de aproximadamente mais de 11 mil atletas, sem contar as demais profissões incluídas às delegações (comissões técnicas, profissionais de saúde, auxiliares gerais, entre outros) demonstra que o início do evento pode ser considerado, efetivamente, antes desta data; o que alterou por completo o grau de circulação de pessoas e pode ter comprometido parte das políticas públicas nacionais que apontavam para o sucesso na contenção da expansão da pandemia no país.

A chegada dos atletas semanas antes das competições justifica-se principalmente pela necessidade de realização de período de aclimatação prévio, particularmente relacionado ao fuso horário, e treinos específicos para ambientação no local de prova. Embora compreendamos tal necessidade para melhor desempenho esportivo, advogamos que a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos representaram um contrassenso aos esforços da Organização Mundial da Saúde (OMS), de pesquisadores e profissionais da saúde de todo o mundo no combate à pandemia de COVID-19, denotando-se um perigo não apenas para a população japonesa, mas à saúde pública mundial.

Nesse sentido, apresentamos como principal hipótese causal, relacionada ao crescente aumento na curva de infectados no Japão observada entre os meses de junho, julho e agosto de 2021, a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio 2020 e alertamos sobre os riscos de manutenção de eventos similares que possam vir a ocorrer, tendo qualquer país como sede.

Alertamos também para os riscos que a realização destes eventos pode proporcionar ao surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2, repercutindo na diminuição de efetividade das vacinas atualmente desenvolvidas 55. Krause PR, Fleming TR, Longini IM, Peto R, Briand S, Heymann DL, et al. SARS-CoV-2 variants and vaccines. N Engl J Med 2021; 385:179-86.. Somado a isto, a realização de eventos desta magnitude pode promover equivocada compreensão na população, sobre a possibilidade do controle da pandemia - o que ainda não é uma realidade homogênea entre os países. Além disso, pode-se disseminar uma compreensão equivocada, por parte das populações, governos e instituições, de que protocolos de segurança, ainda que rigorosos, são 100% efetivos contra o SARS-CoV-2 e que, por si só, garantem a segurança ao evento (interna e externa) - fato ainda não atingido e sempre alertado pelos cientistas no mundo 66. Böger B, Fachi MM, Vilhena RO, Cobre AF, Tonin FS, Pontarolo R. Systematic review with meta-analysis of the accuracy of diagnostic tests for COVID-19. Am J Infect Control 2021; 49:21-9.,77. Struchiner CJ, Pereira T, Oliveira K, Lira SHA, Goedert GT, Genari J, et al. Quantificando o impacto da reabertura escolar durante a pandemia de covid-19. https://comorbuss.org/Publications-and-Reports (acessado em 22/Ago/2021).
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Durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, apesar da introdução de um protocolo rígido 88. International Olympic Committee; International Paralympic Committee. The Playbook - athletes and officials. https://olympics.com/ioc/news/third-version-of-tokyo-2020-playbooks-published (acessado em 22/Ago/2021).
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- que exigia a realização de testes RT-PCR antes e após a chegada, no Japão, dos atletas e profissionais envolvidos nas comissões técnicas; higienização de ambientes, mascaramento e período de quarentena de 14 dias após a chegada no país - o Comitê Olímpico Internacional (COI) registrou 547 casos de pessoas infectadas pelo vírus que estavam diretamente ligadas aos jogos de Tóquio, das quais 28 eram atletas, 147 profissionais envolvidos diretamente com os jogos, 32 profissionais da mídia, 15 funcionários do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos, 296 funcionários terceirizados para serviços específicos e 29 voluntários 99. The Tokyo Organising Committee of the Olympic and Paralympic Games. COVID-19 positive case list. https://olympics.com/tokyo-2020/en/notices/covid-19-positive-case-list (acessado em 07/Set/2021).
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A passagem das Olimpíadas pelo Japão, durante os meses de julho e início de agosto, evidenciou o potencial de desserviço social que a realização de eventos dessa magnitude poderia ocasionar, no momento atual. Mas, infelizmente, apesar dos dados preocupantes registrados, as Paralimpíadas foram mantidas e, por ser o segundo maior evento esportivo do mundo, este apresentou quantitativos de delegações similares às olímpicas favorecendo e prolongando o risco à saúde dos evolvidos diretamente (especialmente para os paratletas, dos quais muitos fazem parte do grupo de risco para casos graves da COVID-19), bem como indiretamente, no que tange a questões de saúde global, evidenciadas sobretudo pelo risco da emergência de novas variantes do vírus e seu alto potencial de propagação, dado o retorno dos atletas e profissionais a seus países de origem.

Embora os Jogos Paralímpicos tenham iniciado apenas em 24 de agosto de 2021, em 19 de agosto de 2021, o Comitê Organizador dos Jogos Paralímpicos de Tóquio-2020 confirmou o primeiro caso de COVID-19 na Vila Paralímpica. O registro no alojamento se somava a mais de 70 casos já relacionados com a competição, envolvendo organizadores e funcionários infectados, e se destacava por ser o primeiro a ocorrer na Vila Olímpica, o que apontava, mais uma vez, para a possibilidade de falhas e fragilidades dos protocolos de contenção, e para o risco de propagação do vírus.

Além deste caso, um dia após (20 de agosto de 2021), o Comitê informou o primeiro caso de COVID-19 em um paratleta (sem a indicação do nome e nacionalidade), sendo divulgado apenas que o resultado positivo foi observado durante o período obrigatório de quarentena de 14 dias, antes da chegada à Vila Paralímpica e que nove pessoas haviam sido contactantes e estavam sendo monitoradas pela organização do evento. Apesar de, aparentemente, o fato da infecção ter sido detectada durante o período de isolamento possa instigar reflexões relacionadas a menores preocupações e maior potencial de contingência, é importante ressaltar que os alojamentos de atletas eram compartilhados pelas delegações de um mesmo país, e trabalhadores que transitavam pelos espaços. Nesse sentido, bastaria um caso para que toda uma delegação pudesse contrair o vírus, além do risco aumentado para disseminação da doença no país e/ou entre delegações.

Segundo o Comitê Organizador dos Jogos Paralímpicos, durante os jogos, no total, 306 pessoas foram infectadas desde o dia 12 de agosto, quando as delegações dos países começaram a chegar em solo japonês, sendo um dos infectados hospitalizado. Destes, 13 eram atletas, 53 profissionais envolvidos diretamente com os jogos, 17 profissionais da mídia, 14 funcionários do Comitê Organizador dos Jogos Paralímpicos, 198 funcionários terceirizados para serviços específicos e 11 voluntários 99. The Tokyo Organising Committee of the Olympic and Paralympic Games. COVID-19 positive case list. https://olympics.com/tokyo-2020/en/notices/covid-19-positive-case-list (acessado em 07/Set/2021).
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O crescente número de infectados no Japão, observado no período antes, durante e após as Olimpíadas e Paralimpíadas, evidenciou fragilidades nos protocolos de segurança que, por mais rigorosos que se apresentem, ainda não promovem 100% de segurança contra a disseminação do SARS-CoV-2. Outrossim, o Japão anunciou que além da alta disseminação da variante Delta no país, a variante Mu (B.1.621) do SARS-CoV-2 - encontrada pela primeira vez na Colômbia - havia sido identificada. Segundo o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão, os primeiros dois casos da nova cepa do vírus da COVID-19 foram registrados em junho e julho deste ano no país. Vale ressaltar que a OMS passou a classificar a Mu como uma variante de interesse (VOI) do coronavírus. Segundo a OMS, ela carrega uma “variedade de alterações” e já havia sido identificada em pelo menos 39 países. Entre suas alterações em relação ao vírus original, estudos sugerem que ela possa ser mais resistente às vacinas, mas pesquisas ainda são necessárias para confirmar seu potencial, segundo a OMS.

Assim, ressaltamos a importância de evitar a realização de eventos esportivos em momento tão singular como o vivenciado mundialmente. Sabemos que os prejuízos para o esporte podem ser inúmeros e irreparáveis, porém, os malefícios da doença sobre a saúde individual de profissionais e atletas (os quais podem inclusive nunca mais conseguir voltar a ser atletas após a COVID-19), e à saúde coletiva, devem ser levados em consideração, optando por medidas baseadas na prevenção e controle da pandemia.

Os dados supracitados alertam para a necessidade de manutenção e fortalecimento de planos de contingência contra o SARS-CoV-2 em todo o mundo enquanto durar a declaração de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decretada pela OMS em 30 de janeiro de 2020. Além disso, não se pode deixar que narrativas baseadas na melhoria de saúde mental tornem-se justificativa para incompreensões relacionadas ao processo de não maleficência humanitária e tomadas de decisões que, ao contrário de dirimir, poderão acarretar o aumento dos prejuízos a longo prazo relacionados não apenas à saúde mental, mas em todas as dimensões da saúde (quais sejam, física, psicológica, social e espiritual) da população mundial.

Dessa forma, torna-se imprescindível que organizações esportivas (internacionais e nacionais), governos e sociedade unam forças para se posicionar contra a realização de eventos desta magnitude ao redor do mundo, com base em decisões pactuadas coletivamente, evitando pressões à participação dos países. Entretanto, apesar das reiteradas recomendações sobre os riscos da realização de eventos esportivos no mundo, somada à propagação e potencial de contágio relacionado à variante Delta, no Brasil, eventos esportivos similares seguem com sua programação confirmada.

Outro exemplo, incoerente com a situação sanitária do Brasil, sobretudo no que tange à disseminação da variante Delta, as Paralimpíadas Universitárias 2021 seguem com programação confirmada e realização presencial de 16 a 19 de setembro de 2021, em São Paulo. Momento este em que pesquisadores alertam sobre os riscos de contágio e disseminação da variante para todas as regiões do Brasil, com foco, entretanto, principalmente na Região Sudeste, o que pode trazer grandes consequências para todo o país na propagação desta variante a estados que ainda não a detectaram.

Devido ao desgaste e fadiga pandêmica 1010. World Health Organization. Pandemic fatigue: reinvigorating the public to prevent COVID-19. https://apps.who.int/iris/handle/10665/335820 (acessado em 25/Ago/2021).
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que todas as sociedades vivenciam, a pandemia de COVID-19 ainda afetará por meses, ou até mesmo anos, a saúde mental de toda a população, mas não podemos deixar que instituições e governos se utilizem deste termo como justificativa para exposição da população ao risco de infecção pelo SARS-CoV-2. Além disso, alertamos sobre a importância de compreender que o argumento do desgaste psicológico experienciado mundialmente na pandemia de COVID-19, não pode, neste momento singular de nossa história, superar o argumento de saúde e segurança pública mundial. Legitimar aberturas abruptas e realizações de eventos dessa magnitude na conjuntura atual, provavelmente fará com que o mundo experiencie a pandemia de COVID-19 por mais tempo, o que poderá aprofundar ainda mais os problemas econômicos, iniquidades em saúde e vulnerabilidades em todos os níveis e dimensões de nossas vidas.

O espírito olímpico e paralímpico se caracteriza como uma filosofia que exalta as qualidades do corpo, espírito e mente através do esporte, associado a valores educacionais de bom exemplo e respeito aos princípios éticos universais. Entretanto, em meio à pandemia de COVID-19, o que estamos vivenciando com a realização de eventos dessa magnitude é um contrassenso aos próprios princípios norteadores dos jogos. As vidas de todos nós estão em jogo e em risco. É necessário trilhar o caminho da razão e da ciência para efetivamente alcançar bons resultados nessa batalha diária contra a COVID-19. Evitar eventos esportivos neste momento é uma necessidade humanitária e de respeito ao direito máximo: a vida.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Revisado
    08 Set 2021
  • Aceito
    10 Set 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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