Evolução da infecção pelo HIV entre os povos indígenas do Brasil Central

Evolution of HIV infection in indigenous peoples in Central Brazil

Evolución de la infección por VIH entre los pueblos indígenas de Brasil Central

Samara Vilas-Bôas Graeff Renata Palópoli Pícoli Rui Arantes Rivaldo Venâncio da Cunha Sobre os autores

Resumos

A distribuição da epidemia de aids no Brasil está associada a uma ampla gama de fatores que definem maior ou menor vulnerabilidade de grupos populacionais. O estudo teve como objetivo analisar as características clínicas e laboratoriais dos casos de infecção pelo HIV/aids em indivíduos com 13 anos de idade ou mais, e sua evolução para o óbito na população indígena assistida pelo Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul. Realizou-se um estudo descritivo e retrospectivo sobre a condição clínica e evolução da doença entre 2001 e 2014, a partir de três bases de dados secundários. Foram avaliados o tempo de evolução para a aids, o tempo de evolução ao óbito, a carga viral, a contagem de linfócitos T-CD4+ e o tempo de sobrevida. Foram identificados 103 casos de infecção pelo HIV, dos quais 48,5% evoluíram para aids, sendo 60% em menos de um ano desde o diagnóstico. Foram registrados 40 óbitos, sendo 77,5% em decorrência da infecção pelo HIV. Desses que morreram, apenas 30% tiveram sobrevida maior do que um ano. Este estudo sugere que o diagnóstico da infecção pelo HIV se deu nas fases avançadas da doença, revelando-se tardio e apontando uma cobertura diagnóstica deficiente. A rápida evolução ao óbito e curto período de sobrevida também podem indicar fragilidade no acesso aos serviços de saúde de referência, assim como desarticulação e pactuações insuficientes entre Distrito, municípios e estado.

Palavras-chave:
População Indígena; Infecções por HIV; Sorodiagnóstico da AIDS; Saúde de Populações Indígenas


Distribution of the AIDS epidemic in Brazil is associated with a wide range of factors that determine different population groups’ greater or lesser vulnerability. The study’s objective was to analyze clinical and laboratory characteristics of HIV/AIDS in individuals 13 years or older and the evolution to death in the indigenous population assisted by the Special Indigenous Health District of the State of Mato Grosso do Sul, Brazil. A descriptive and retrospective study was performed on the clinical conditions and evolution of the disease from 2001 to 2014, based on three secondary databases. The study assessed time in progression to AIDS, time in progression to death, viral load, CD4+ T-lymphocyte count, and survival time. A total of 103 cases of HIV infection were identified, of which 48.5% progressed to AIDS, 60% in less than a year since diagnosis. Forty deaths were recorded, 77.5% of which due to HIV infection. Of those who died, only 30% had survived for more than a year. The study suggests that diagnosis of HIV infection occurred in advanced stages of the disease (i.e., late), and points to deficient diagnostic coverage. Rapid progression to death and short survival time are indicative of insufficient access to specialized health services, as well as disconnection and deficient collaboration between the Indigenous Health District, municipalities, and the state.

Keywords:
Indigenous Population; HIV Infections; AIDS Serodiagnosis; Health of Indigenous Peoples


La distribución de la epidemia de sida en Brasil está asociada a una amplia gama de factores que definen mayor o menor vulnerabilidad de grupos poblacionales. El objetivo del estudio fue analizar las características clínicas y de laboratorio de los casos de infección por el VIH/sida en individuos con 13 años de edad o más, y su evolución hacia el óbito en la población indígena, asistida por el Distrito Sanitario Especial Indígena de Mato Grosso do Sul. Se realizó un estudio descriptivo y retrospectivo sobre la condición clínica y la evolución de la enfermedad entre 2001 y 2014, a partir de tres bases de datos secundarios. Se evaluó el tiempo de evolución para el sida, el tiempo de evolución para el óbito, la carga viral, el cálculo de linfocitos T-CD4+ y el tiempo de supervivencia. Se identificaron 103 casos de infección por VIH, de los cuales un 48,5% evolucionaron hacia sida, siendo 60% en menos de un año desde el diagnóstico. Se registraron 40 óbitos, siendo un 77,5% derivados de la infección por VIH. De esos que murieron, solamente un 30% tuvieron una supervivencia mayor que un año. Este estudio sugiere que el diagnóstico de la infección por VIH se produjo en fases avanzadas de la enfermedad, revelándose tardío y apuntando una cobertura diagnóstica deficiente. La rápida evolución al óbito y corto período de supervivencia, también pueden indicar fragilidad en el acceso a los servicios de salud de referencia, así como la descoordinación y acuerdos insuficientes entre distrito, municipios y estado.

Palabras-clave:
Población Indígena; Infecciones por VIH; Serodiagnóstico del SIDA; Salud de Poblaciones Indígenas


Introdução

Até o final de 2019, 38 milhões de pessoas viviam com o HIV em todo o planeta, a maioria em países pobres ou em desenvolvimento, e aproximadamente 7,1 milhões não sabiam que portavam o vírus. Contudo, desde 1998 o número anual de novas infecções diminuiu cerca de 40%, passando de 2,8 milhões para 1,7 milhões em 2019, representando um declínio substancial, embora heterogêneo 11. United Nations Programme on HIV/AIDS. UNAIDS data 2020. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_aids-data-book_en.pdf (acessado em 01/Mar/2021).
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. Vale destacar que a infecção pelo HIV se refere à presença do vírus no organismo humano, e uma vez contraído não pode ser eliminado, apenas controlado através de terapia antirretroviral (TARV). Já o diagnóstico da aids acontece quando há redução importante da quantidade de linfócitos T-CD4+ e ou presença de manifestações clínicas de doenças oportunistas associadas à deficiência imunológica 22. Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e AIDS. Você sabe o que é HIV e o que é AIDS? https://unaids.org.br/2017/03/voce-sabe-o-que-e-hiv-e-o-que-e-aids/ (acessado em 10/Nov/2020).
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No Brasil, a notificação de infecção pelo HIV passou a compor a Lista Nacional de Notificação Compulsória do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) somente em junho de 2014, conforme a Portaria Ministerial nº 1.27133. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.271, de 6 de junho de 2014. Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2014; 9 jun. - antes disso somente os casos de aids e de infecção pelo HIV em gestantes eram notificados. Ainda hoje, devido ao processo gradativo de absorção dos casos de infecção pelo HIV pela rede de vigilância em saúde, as taxas apresentadas no Boletim Epidemiológico de HIV/Aids do Ministério da Saúde são referentes somente aos casos de aids, ficando os casos de infecção pelo HIV restritos aos números absolutos 44. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/AIDS 2019. Boletim Epidemiológico 2019; (número especial). http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/boletim-epidemiologico-de-hivaids-2019 (acessado em: 10/Nov/2020)
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No período de 1980 a junho de 2020, foram detectados 1.011.617 casos de aids no Brasil. A partir de 2009 foi observado um declínio na taxa de detecção da aids de 17,2%, passando de 21,5 em 2009 para 17,8/100 mil habitantes em 2019. Entretanto, o declínio não foi homogêneo em todo território nacional. Na Região Centro-oeste, por exemplo, a epidemia de aids apresentou um incremento de 2,7% na taxa de detecção nos últimos 10 anos, passando de 18,6 em 2009 para 19,1/100 mil habitantes em 2019, ficando acima da taxa nacional. O mesmo foi observado nas regiões Norte e Nordeste, que tiveram aumento de 24,4% e 11,3%, respectivamente. Entretanto, a diminuição significativa das taxas de detecção da doença observadas na Região Sul (30,3%) e na Região Sudeste (33,6%), foi responsável por manter a taxa nacional de detecção de aids em queda no período 44. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. HIV/AIDS 2019. Boletim Epidemiológico 2019; (número especial). http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/boletim-epidemiologico-de-hivaids-2019 (acessado em: 10/Nov/2020)
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A distribuição desigual da epidemia da aids no Brasil está associada aos determinantes sociais de saúde, uma ampla gama de aspectos sociodemográficos, econômicos, culturais, de acesso aos serviços de saúde, dentre outros fatores, que definem maior ou menor vulnerabilidade de grupos populacionais aos riscos de infecção e disseminação da doença 55. Grangeiro A, Escuder MML, Castilho EA. A epidemia de AIDS no Brasil e as desigualdades regionais e de oferta de serviço. Cad Saúde Pública 2010; 26:2355-67.. Entre os povos indígenas, o colonialismo, racismo, exclusão social e dificuldades de acesso a serviços de saúde foram identificados como determinantes que aumentaram a vulnerabilidade ao HIV, refletida nas elevadas taxas de detecção da infecção entre indígenas 66. Teixeira TRA, Gracie R, Malta MS, Bastos FI. Social geography of AIDS in Brazil: identifying patterns of regional inequalities. Cad Saúde Pública 2014; 30:259-71.,77. Negin J, Aspin C, Gadsden T, Reading C. HIV Among indigenous peoples: a review of literature on HIV-related behaviour since the beginning of epidemic. AIDS Behav 2015; 19:1720-34.. No Brasil, ainda não há informações suficientes para estimar a dimensão da infecção pelo HIV e aids entre os povos indígenas. Entretanto, alguns estudos apontam para altas prevalências de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e expansão de casos de infecção pelo HIV, principalmente nas regiões com alta mobilidade de pessoas, como nas áreas indígenas de fronteira e próximas aos centros urbanos 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71.,99. Benzaken AS, Sabidó M, Brito I, Bermúdez XPD, Benzaken NS, Galbán E, et al. HIV and syphilis in the context of community vulnerability among indigenous people in the Brazilian Amazon. Int J Equity Health 2017; 16:92..

Considerando a situação de vulnerabilidade vivenciada pelas populações indígenas frente à infecção pelo HIV e a aids é fundamental que os serviços de saúde ampliem as ações para diagnóstico e tratamento, e implementem atividades preventivas e serviços de atenção à saúde culturalmente adequados 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71.,1010. Russell NK, Nazar K, del Pino S, Alonso Gonzalez M, Díaz Bermúdez XP, Ravasi G. HIV, syphilis, and viral hepatitis among Latin American indigenous peoples and Afro-descendants: a systematic review. Rev Panam Salud Pública 2019; 43:e17.,1111. Ruffinen CZ, Sabidó M, Díaz-Bermúdez XP, Lacerda M, Mabey D, Peeling RW, et al. Point-of-care screening for syphilis and HIV in the borderlands: challenges in implementation in the Brazilian Amazon. BMC Health Serv Res 2015; 15:495.. O acesso ao diagnóstico e ao tratamento oportuno estão relacionados à capacidade dos serviços de saúde em identificar o perfil da epidemia da aids em seu território e responder adequadamente às necessidades da população 55. Grangeiro A, Escuder MML, Castilho EA. A epidemia de AIDS no Brasil e as desigualdades regionais e de oferta de serviço. Cad Saúde Pública 2010; 26:2355-67.,1212. Abati PAM, Segurado AC. HIV testing and clinical status upon admission to a specialized health care unit in Pará, Brazil. Rev Saúde Pública 2015; 49:16..

O aumento da cobertura diagnóstica, a oferta da terapia antirretroviral na prestação de cuidados contínuos e a supressão viral em pessoas vivendo com HIV, em nível mundial, compõem a Meta 90-90-90. Essa proposta, do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), tem como objetivo acabar com a epidemia de HIV até 2030 1313. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. 90-90-90. An ambitious treatment target to help end the AIDS epidemic. http://www.unaids.org/en/resources/documents/2014/90-90-90 (acessado em 10/Nov/2020).
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. Contudo, a persistência de iniquidades em saúde repercute em problemas relacionados ao acesso às medidas de prevenção, ao diagnóstico precoce e à manutenção do tratamento, repercutindo em elevadas taxas de prevalência de aids entre grupos indígenas 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71.,99. Benzaken AS, Sabidó M, Brito I, Bermúdez XPD, Benzaken NS, Galbán E, et al. HIV and syphilis in the context of community vulnerability among indigenous people in the Brazilian Amazon. Int J Equity Health 2017; 16:92.,1414. Organización Panamericana de la Salud. Promoción de la salud sexual y prevención del VIH-sida y de las ITS en los pueblos indígenas de las Américas. https://www.paho.org/spanish/ad/fch/ai/ssia06.pdf (acessado em 01/Jul/2019).
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O Estado do Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena do Brasil. Em 2019, o Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul (DSEI-MS), que integra o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) do Sistema Único de Saúde (SUS), contabilizou 83.241 indígenas, pertencentes a oito etnias (Kaiowá, Guarani Ñandeva, Terena, Kadiwéu, Kinikinau, Guató, Ofaié e Atikun). Essa população está distribuída em aldeias e acampamentos de 31 dos 79 municípios do estado 1515. Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena. Caracterização demográfica, étnico-cultural dos povos indígenas do Distrito Sanitário Especial Indígena Mato Grosso do Sul, 2017. https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/dezembro/08/Anexo-1659355-dsei-ms.pdf (acessado em 08/Out/2019).
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A prevalência da infecção pelo HIV entre indígenas no Mato Grosso do Sul passou de 2,0/100 mil em 2001 para 39,6/100 mil em 2014. Já a prevalência de aids passou de zero em 2006 para 26,0/100 mil em 2014. O aumento das taxas de detecção de HIV e aids no período pode estar relacionado a melhorias na capacidade de detecção e registro de casos, mas também traz questionamentos a respeito da circulação cada vez maior do vírus entre as populações indígenas do Mato Grosso do Sul nos últimos anos 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71..

Neste sentido, conhecer o perfil da doença nessas populações é um fator importante para definir estratégias de enfrentamento. O objetivo deste estudo foi analisar as características clínicas e laboratoriais dos casos de infecção pelo HIV/aids em indivíduos com 13 anos de idade ou mais, e sua evolução para o óbito nas populações indígenas assistidas pelo DSEI-MS.

Métodos

O presente estudo realizou uma análise descritiva e retrospectiva sobre a condição clínica e evolução dos casos de infecção pelo HIV e aids, em indivíduos com 13 anos ou mais assistidos pelo DSEI-MS, no período de janeiro de 2001 a dezembro de 2014. As informações a respeito dos casos de infecção pelo HIV e aids foram obtidas entre junho de 2014 e janeiro de 2015, a partir de três fontes secundárias: (1) registros da Área Técnica de Saúde Sexual (SS) e IST do DSEI-MS; (2) SINAN; (3) Sistema de Controle de Exames Laboratoriais da Rede Nacional de Contagem de Linfócitos CD4+/CD8+ e Carga Viral (SISCEL).

Os registros da Área Técnica de SS e IST do DSEI-MS se referem aos casos de infecção pelo HIV e aids, diagnosticados e ou assistidos pelas equipes multidisciplinares de saúde indígena (EMSI) durante a rotina de atendimento nas aldeias. Desses registros foram extraídas variáveis sociodemográficas como “nome”, “nome da mãe”, “sexo”, “data de nascimento” e “endereço”, além de variáveis referentes ao “status da doença”, “data de diagnóstico”, “data e causa do óbito”, e se fazia “acompanhamento nos serviços de assistência especializada (SAE)” do estado.

A consulta na base do SINAN teve por objetivo identificar casos de ocorrência de aids entre indígenas que não foram registrados pelo DSEI-MS. As duas bases de dados foram comparadas manualmente a partir das variáveis: “nome do indivíduo”, “nome da mãe” e “data de nascimento”. Desta forma, foi possível identificar os casos não notificados em uma das duas bases e diminuir o número de subnotificação. O endereço de residência também foi analisado e os casos registrados em aldeias de centros urbanos ou fora da área de abrangência do DSEI-MS foram excluídos. Ao final, foi identificada a ocorrência de 103 casos de infecção pelo HIV/aids entre as populações de indígenas assistidas pelo DSEI-MS no período de análise.

A partir da lista de casos identificados nas duas bases de informações, fez-se uma busca nominal no Siscel para obter os resultados das variáveis laboratoriais: “primeira carga viral” e “primeira contagem de linfócitos T-CD4+”. As variáveis laboratoriais dos indivíduos não encontrados no Siscel, assim como a variável “ocorrência do óbito” relacionada aos indígenas que se mudaram do território de atuação do DSEI-MS no período do estudo, foram consideradas como “sem informação”.

Para o cálculo do “tempo de evolução para a aids”, considerou-se o intervalo, em anos, entre as datas de diagnóstico da infecção pelo HIV e de notificação de aids no SINAN. Para o “tempo de evolução para o óbito”, considerou-se o período, em anos, entre as datas de diagnóstico e do óbito. Para categorização dos óbitos, aqueles com a infecção pelo HIV ou aids mencionadas como uma das causas básicas da morte na Declaração de Óbito (Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão - CID-10: B20 a B24), foram considerados como “associadas ao HIV”.

Para análise de sobrevivência foi utilizado o estimador de Kaplan-Meier e calculado o tempo médio de sobrevida em meses. Inicialmente foram calculadas duas curvas, uma para estimar a sobrevida dos indivíduos que morreram por causas associadas ao HIV (31 pessoas), e outra para avaliar a sobrevida de todos os indivíduos diagnosticados com HIV (103). Para esta última, porém, foram excluídos 15 indivíduos que se mudaram das aldeias em algum momento do período do estudo, não sendo possível obter informações sobre a ocorrência de óbito, totalizando para análise, 88 das 103 pessoas. Os casos que permaneceram vivos foram censurados, e o tempo de censura correspondeu ao período entre a data do diagnóstico e a data final do estudo, 31 de dezembro de 2014.

Ainda para o segundo grupo (88 indivíduos) foram construídas outras duas curvas de sobrevida, tendo como fator de comparação as variáveis “sexo” e os diferentes níveis de “contagem de linfócitos T-CD4+”. Utilizou-se os testes de log-rank, Breslow e Tarone-Ware para estimar a distribuição de igualdade nas curvas de sobrevida entre sexos e contagens de linfócitos, com nível de 95% de confiança .

As curvas de Kaplan-Meier foram construídas no software IBM SPSS Statistics 20 (https://www.ibm.com/). Foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson com nível de 95% de confiança para verificar as diferenças na distribuição de frequência das variáveis do estudo.

O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (CEP/UFMS, sob o parecer nº 438.344/2013) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP, parecer nº 707.439/2014).

Resultados

Neste estudo foram identificados 103 (100%) casos de infecção pelo HIV, 61/103 (59,2%) em mulheres e 42/103 (40,8%) em homens. Do total de casos, 50/103 (48,5%) evoluíram para aids, sendo a maioria do sexo feminino (30/50 - 60%). Quanto ao “tempo de evolução entre o diagnóstico de infecção pelo HIV” e o “desenvolvimento da aids”, 5/50 (10%) pessoas foram diagnosticadas com aids já no momento do diagnóstico da infecção pelo HIV, quatro homens e uma mulher. Metade (25/50 - 50%) dos indivíduos desenvolveu aids em menos de um ano. Somente 6/50 (12%) tiveram a evolução em mais de 5 anos, todos do sexo feminino (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição das variáveis clínicas e laboratoriais por sexo, na população indígena com infecção pelo HIV assistida pelo Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul (DSEI-MS), Brasil, 2001 a 2014.

A “primeira carga viral” foi detectável em 69/103 (67%) pacientes e indetectável em 8/103 (7,8%). Para 26/103 (25,2%), o registro de realização do exame não existia. No que diz respeito à avaliação da deficiência imunológica por meio da “primeira contagem de linfócitos T-CD4+”, 41/103 (39,8%) pacientes tiveram a contagem < 350 células/mm3 e outros 20/103 (19,4%) possuíam contagem ≥ 350 e < 500 células/mm3. Não havia essa informação para 27/103 (26,2%) casos (Tabela 1).

Foram registrados 40/103 (38,8%) “óbitos” no período estudado, desses 22/40 (55%) ocorreram em homens e 18/40 (45%) em mulheres. Ao comparar a porcentagem dentre cada sexo, percebeu-se que mais da metade dos homens morreram (22/42, 52,4%). Do total de óbitos, 31/40 (77,5%) foram por “causas associadas ao HIV”, 19/31 (61,3%) em homens.

Em relação ao “tempo de evolução ao óbito”, 25/40 (62,5%) faleceram em menos de um ano do diagnóstico de infecção pelo HIV, dos quais 11/40 (27,5%) morreram no dia do diagnóstico. Somente 15/40 (37,5%) pacientes viveram por um ano ou mais (Tabela 1). Em dezembro de 2014, período final do estudo, 48/103 (46,6%) pessoas permaneciam vivas e assistidas pelo DSEI-MS. Destas, 41/48 (85,4%) mantinham algum tipo de “acompanhamento nos SAE”, a maioria mulheres, 31/41 (75,6%) (Tabela 1).

O tempo de “evolução para aids”, a “ocorrência” e a “causa do óbito” segundo “níveis de linfócitos T-CD4+” observados na primeira contagem são apresentados na Tabela 2. Dos 25 (100%) pacientes com valores de exame < 350 células/mm3, 14/25 (56%) evoluíram para aids em menos de um ano. Já dos 6 (100%) casos com resultado de exame ≥ 500 células/mm3, 4/6 (66,7%) demoraram cinco anos ou mais para desenvolverem a síndrome. Para 12/50 (24%) casos não foram encontradas informações no SISCEL.

Tabela 2
Relação entre o primeiro resultado da contagem de linfócitos T-CD4+ e a evolução da aids na população indígena assistida pelo Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul, Brasil, 2001 a 2014.

Sobre à “ocorrência do óbito”, 16/40 (40%) tiveram a primeira contagem de linfócitos T-CD4+ < 350 células/mm3, e 20/40 (50%) não constavam no sistema de informação laboratorial. Dos 31 (100%) casos associados ao HIV, 13/31 (41,9%) apresentaram linfócitos < 350 células/mm3 e 15/31 (48,4%) não tinham informação.

Conforme o estimador de Kaplan-Meier, o tempo médio de sobrevida das 31 pessoas que morreram por causas associadas ao HIV foi de 12,9 meses (um ano), já para o grupo de 88 indivíduos foi de 102,6 meses (8 anos e 5 meses). Do primeiro grupo, ninguém ultrapassou 70,4 meses (5 anos e 9 meses) de vida após o diagnóstico (Figura 1a), e do segundo, cerca de 55% permaneciam vivas ao final do tempo de seguimento de 168 meses (14 anos) (Figura 1b).

Figura 1
Curva de Kaplan-Meier com a estimativa da sobrevida para todos os pacientes que foram a óbito e para todos os pacientes diagnosticados com HIV. Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul, Brasil, 2001 a 2014.

Diferenças importantes puderam ser observadas entre os sexos e entre os níveis de contagem de T-CD4+. As mulheres tiveram um tempo maior de sobrevida em relação aos homens. Aos 20 meses após o diagnóstico observou-se que cerca de 82% das mulheres estavam vivas, entre os homens, no entanto, somente 47% (p < 0,005) (Figura 2a). O tempo médio de sobrevida foi de 126,2 meses (10 anos e 5 meses) para as mulheres e 43,7 meses (3 anos e 6 meses) para os homens.

O tempo de sobrevida também foi significativamente menor para os indivíduos que não fizeram exame de contagem de T-CD4+ (sem informação) em relação àqueles que realizaram o exame. A probabilidade de vida aos 20 meses para quem não fez o exame foi de 36%, de 74% para quem tinha contagem ≥ 350 e < 500 células/mm3 e de 100% para quem tinha valor ≥ 500 células/mm3 (p < 0,005) (Figura 2b).

Figura 2
Curva de Kaplan-Meier com a estimativa da sobrevida para os pacientes diagnosticados com HIV segundo sexo e os diferentes níveis de contagem de linfócitos T-CD4+. Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul, Brasil, 2001 a 2014.

Discussão

Globalmente, a infecção pelo HIV vem sendo controlada por meio do diagnóstico precoce e acesso ao tratamento antirretroviral que permitem identificar portadores do HIV, controlar a infecção, retardar a manifestação da aids, prevenir a propagação do vírus e manter a expectativa de vida para as pessoas vivendo com o HIV nos padrões de pessoas não infectadas 1616. Johnson LF, Mossong J, Dorrington RE, Schomaker M, Hoffmann CJ, Keiser O, et al. Life expectancies of South African adults starting antiretroviral treatment: collaborative analysis of cohort studies. PLoS Med 2013; 10:e1001418.,1717. United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Aids update 2019. Communities at the centre. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2019-global-AIDS-update_en.pdf (acessado em 05/Ago/2019).
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. O presente estudo sugere dificuldades no enfrentamento da infecção pelo HIV e a aids nas populações indígenas do Mato Grosso do Sul, onde o controle da infecção ainda é um desafio. O prognóstico negativo observado na análise de sobrevida dos indígenas infectados pelo HIV indica que os diagnósticos ocorreram já em fases avançadas da doença e que não houve acesso ao tratamento antirretroviral em tempo oportuno.

Em um estudo que avaliou a sobrevida de pacientes com aids nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, a sobrevida acumulada para pessoas da raça/cor da pele indígena foi de 75% no período de 108 meses (9 anos) de seguimento 1818. Melo MC, Mesquita FC, Barros MBA, La-Rotta EIG, Donalisio MR. Sobrevida de pacientes com aids e associação com escolaridade e raça/cor da pele no Sul e Sudeste do Brasil: estudo de coorte, 1998-1999. Epidemiol Serv Saúde 2019; 28:e2018047.. Contudo, não foi possível associar esse resultado à possíveis diferenças na qualidade e organização entre os serviços de saúde ofertados em ambas as regiões, ou se o tempo de seguimento poderia interferir na sobrevida.

Desde o início da epidemia da aids, ainda na década de 1990, inúmeros estudos já demonstravam que a contagem de linfócitos T-CD4+ constituía um importante marcador biológico das condições imunológicas dos pacientes, podendo definir sua sobrevida 1919. Muñoz A, Schrager LK, Bacellar H, Speizer I, Vermund SH, Detels R, et al. Trends in the incidence of outcomes defining acquired immunodeficiency syndrome (AIDS) in the Multicenter AIDS Cohort Study: 1985-1991. Am J Epidemiol 1993; 137:423-38.,2020. Jacobson LP, Kirby AJ, Polk S, Phair JP, Besley DR, Saah AJ, et al. Changes in survival after acquired immunodeficiency syndrome (AIDS): 1984-1991. Am J Epidemiol 1993; 138:952-96.,2121. Osmond D, Charlebois E, Lang W, Shiboski S, Moss A. Changes in AIDS survival time in two San Francisco cohorts of homosexual men, 1983 to 1993. JAMA 1994; 271:1083-7.,2222. Kitahata MM, Gange SJ, Abraham AG, Merriman B, Saag MS, Justice AC, et al. Effect of early versus deferred antiretroviral therapy for HIV on survival. N Engl J Med 2009; 360:1815-26.. No Brasil, estudo dos determinantes de sobrevida em pessoas vivendo com HIV entre 2006 e 2015 indicou que o uso de TARV precocemente - ou seja, quando a contagem de T-CD4+ é ≥ 500 células/mm3 - foi associado a uma redução de 94% no risco de morte nos primeiros seis meses, comparado àqueles que iniciaram o tratamento tardiamente com T-CD4+ < 200 células/mm32323. Mangal TD, Meireles MV, Pascom ARP, Coelho RA, Benzaken AS, Hallett TB. Determinants of survival of people living with HIV/aids on antiretroviral therapy in Brazil 2006-2015. BMC Infect Dis 2019; 19:206..

Os resultados encontrados no presente estudo referentes à carga viral e a primeira contagem de linfócitos T-CD4+ corroboram com a hipótese de diagnóstico tardio nas aldeias assistidas pelo DSEI-MS, e ajudam a entender a rápida manifestação da doença nos indivíduos infectados, o curto tempo de sobrevida dos pacientes e a grande porcentagem de indivíduos com aids que foram a óbito por causas associadas ao HIV.

Os oito casos de indígenas que apresentaram carga viral indetectável no primeiro exame realizado após o diagnóstico é um achado que merece ser melhor investigado, pois não foi possível identificar se essas pessoas seriam potenciais “controladores de elite”, ou seja, aquelas que possuem carga viral indetectável para o HIV mesmo sem tratamento 2424. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Manual técnico para o diagnóstico da infecção pelo HIV. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_diagnostico_infeccao_hiv.pdf (acessado em 10/Nov/2020).
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, ou se houve problemas na realização do exame, ou ainda, erros no lançamento dos resultados no SISCEL.

A rápida evolução do diagnóstico de HIV para aids entre indígenas também está relacionada a outros fatores como condições de vida e situações de vulnerabilidade 77. Negin J, Aspin C, Gadsden T, Reading C. HIV Among indigenous peoples: a review of literature on HIV-related behaviour since the beginning of epidemic. AIDS Behav 2015; 19:1720-34.. Os resultados deste estudo sugerem que mesmo com a atuação do SASI-SUS no Estado de Mato Grosso do Sul, as ações de prevenção e diagnóstico ainda são incipientes, sobretudo entre os homens, que apresentaram um tempo médio de sobrevida de um terço em relação às mulheres.

A implantação dos testes rápidos para diagnóstico da infecção por HIV nas populações indígenas do Mato Grosso do Sul se deu gradualmente a partir de 2012, com oferta direcionada inicialmente às mulheres, por meio de protocolos de ações programáticas da atenção primária, como na assistência ao pré-natal. O maior acesso das mulheres aos serviços de saúde acabou refletindo tanto no maior número de diagnósticos de HIV e aids quanto no maior número de acompanhamentos pós-diagnóstico, quando comparado ao sexo masculino.

A testagem rápida para HIV é uma importante ferramenta para o aumento da cobertura diagnóstica e conhecimento da prevalência de infecção pelo HIV em áreas indígenas pela simplicidade de realização, rapidez no resultado e aceitação por parte da população. Na área de tríplice fronteira da Amazônia brasileira, por exemplo, a implementação do serviço de testagem rápida para HIV para as populações indígenas foi considerada uma estratégia positiva para a ampliação da cobertura diagnóstica 99. Benzaken AS, Sabidó M, Brito I, Bermúdez XPD, Benzaken NS, Galbán E, et al. HIV and syphilis in the context of community vulnerability among indigenous people in the Brazilian Amazon. Int J Equity Health 2017; 16:92..

A atuação em saúde com povos indígenas exige dos profissionais conhecimentos específicos sobre a cultura e aspectos sobre a sexualidade inerente a cada grupo indígena, necessários para desenvolver ações de atenção à saúde em contextos interculturais e potencializar a efetividade de medidas de prevenção da infecção pelo HIV 1111. Ruffinen CZ, Sabidó M, Díaz-Bermúdez XP, Lacerda M, Mabey D, Peeling RW, et al. Point-of-care screening for syphilis and HIV in the borderlands: challenges in implementation in the Brazilian Amazon. BMC Health Serv Res 2015; 15:495.,2525. Organización Panamericana de la Salud. Promoción de la salud sexual y prevención del VIH-sida y de las ITS en los pueblos indígenas de las Américas, 2003. http://www.cdi.gob.mx/participacion/dlupe/prevencion_ITS-VIH-SIDA.pdf (acessado em 16/Set/2019).
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A elevada porcentagem de indígenas sem resultados de carga viral e contagem de linfócitos T-CD4+ observada neste estudo, indica falhas na organização dos serviços de saúde que podem estar relacionadas às dificuldades de acesso aos SAE para realização de exames complementares, uma vez que tais serviços estão localizados em poucos municípios do estado, distantes das aldeias, sendo necessário ainda a regulação intermunicipal de vagas. Além das barreiras socioculturais, organizacionais e geográficas, as limitações logísticas de transporte de pacientes das aldeias até os municípios de referência também contribui para aumentar a dificuldade de acesso dos indígenas à atenção especializada 2626. Gomes SC, Esperidião MA. Acesso dos usuários indígenas aos serviços de saúde de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00132215..

Os possíveis entraves no referenciamento de indígenas para o SAE sugerem desafios na articulação entre o SASI-SUS e os gestores municipais e estadual, tendo como consequência dificuldades no processo de pactuação do quantitativo de consultas e exames complementares para os municípios que atendem estas populações. Estudos entre os povos indígenas Bororo e Paresi do Estado de Mato Grosso também evidenciaram problemas quanto às articulações do SASI-SUS com os demais níveis de atenção à saúde, sob a responsabilidade da gestão municipal e estadual, com implicações negativas para a resolutividade da atenção primária à saúde nas aldeias 2727. Vargas KD, Misoczky MC, Weiss MCV, Costa WGA. A (des)articulação entre os níveis de atenção à saúde dos Bororo no Polo-base Rondonópolis do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá, MT. Physis (Rio J.) 2010; 20:1399-418.,2828. Cintra EVCS, Weiss MCV, Misoczky MC, Bordin R. Fluxo dos Paresi entre os níveis de atenção à saúde no Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá, Mato Grosso. Saúde Debate 2012; 36:133-42..

Este estudo demonstrou através de seus resultados uma significativa desvantagem dos povos indígenas em relação aos avanços globais no que diz respeito à prevenção, diagnóstico e tratamento da aids, mesmo havendo na última década, aumento no acesso ao teste diagnóstico de infecção pelo HIV e ao tratamento para a aids. O número de pessoas vivendo com HIV globalmente em 2018 recebendo tratamento aumentou três vezes em relação a 2010. Estes avanços globais, no entanto, escondem enormes disparidades nacionais e regionais. Na América Latina, por exemplo, a redução significativa da transmissão do HIV desde 2010 em países como El Salvador (-48%), Nicarágua (-29%), Colômbia (-22%), contrapõe-se com países como Chile (+34%) Bolívia (+22%) e Brasil (+21%) que apresentaram aumento na transmissão do vírus 1717. United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Aids update 2019. Communities at the centre. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2019-global-AIDS-update_en.pdf (acessado em 05/Ago/2019).
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Graeff et al. 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71. analisaram as características epidemiológicas das infecções de HIV e aids nas populações indígenas do Mato Grosso do Sul e observaram que não houve notificação de aids antes de 2007. Os autores destacaram ainda que a infecção pelo HIV e a aids aumentaram no período analisado. Em 2012 a taxa de detecção da doença chegou a 16,6/100 mil habitantes. A maior concentração de casos ocorreu na Região Sul do estado (70%), onde se observou elevadas taxas de mortalidade e letalidade por aids, principalmente entre os Kaiowá. Os autores concluíram que a distribuição desigual da doença, verificada por meio do comportamento diferenciado das taxas de HIV e aids entre etnias e Polos Base do Mato Grosso do Sul, indica a necessidade de estruturação dos serviços de saúde de modo diferenciado, de acordo com as especificidades regionais e étnicas 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71..

Embora no período do estudo houvesse registro do quantitativo de pessoas vivendo com HIV em acompanhamento no SAE, não foi possível identificar quais e quantas pessoas faziam de fato o uso da TARV. O acompanhamento dos serviços especializados e a adesão ao tratamento antirretroviral pelo indígena também são questões complexas que necessitam de compreensão pelo profissional de saúde, não só pela dimensão simbólica da infecção pelo HIV, mas também pelos possíveis desdobramentos associados à busca pelo tratamento.

Estudo realizado entre os povos Timbira do Maranhão e Tocantins, sobre a prevenção da aids, reafirma a importância de ampliar a compreensão sobre a articulação dos sistemas médicos indígenas e não indígenas para efetivação de políticas de atenção à saúde diferenciadas que possam impactar na mortalidade 2929. Avila T. Cultura, sexualidade e saúde indígena: etnografia da prevenção das DST/Aids nos povos Timbira do Maranhão e do Tocantins. In: Teixeira CC, Garnelo L, organizadores. Saúde indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014. p. 241-61..

A principal limitação deste estudo esteve associada à qualidade das informações disponíveis nas fontes de dados utilizados, o que implicou em inúmeras variáveis sem informação e falta de robustez em alguns resultados encontrados. No SINAN, por exemplo, a ausência de preenchimento do campo raça/cor pode ter implicado na não identificação de casos de aids em indígenas, uma vez que o banco fornecido pela Secretaria de Estado de Saúde foi previamente filtrado e disponibilizado exclusivamente para essa categoria de raça/cor. Desta forma, não foi possível verificar a ocorrência de casos notificados no SINAN entre indígenas que foram notificados sem a variável raça/cor preenchida, mas que talvez tivessem o endereço de residência registrado em alguma aldeia. A utilização de uma segunda fonte de dados, própria da área técnica do DSEI-MS, foi a forma encontrada para rastrear o maior número de casos possível.

A falta de informações em relação à realização do exame de primeira carga viral e contagem de T-CD4+ (em torno de 25% dos casos notificados com HIV) é um limitador para entender a dinâmica da doença em sua totalidade e, provavelmente, está associada à não realização desses exames. Revela, portanto, dificuldade dos serviços de saúde em acompanhar adequadamente os pacientes diagnosticados com HIV. Outra limitação é que o estudo não permitiu identificar associações entre variáveis independentes e o desfecho (HIV e aids), uma vez que foi desenhado como um estudo descritivo sobre a evolução do HIV e aids entre indígenas do Mato Grosso do Sul.

Todavia, os resultados apresentados são esclarecedores sobre as características da infecção pelo HIV e aids entre os indígenas. Mostra de forma clara que as deficiências imunológicas observadas pela primeira contagem de linfócitos T-CD4+ têm implicações diretas sobre o prognóstico da infecção pelo HIV. Ainda, os achados evidenciaram não somente o comportamento da doença, mas refletem também a incapacidade dos serviços em desenvolver ações de prevenção, de prover diagnóstico e tratamento adequado e em tempo oportuno.

A maior vulnerabilidade dos povos indígenas em relação à infecção pelo HIV está associada às disparidades sociais, econômicas, ao processo histórico de opressão cultural, conflitos interétnicos e falta de acesso aos serviços de saúde 77. Negin J, Aspin C, Gadsden T, Reading C. HIV Among indigenous peoples: a review of literature on HIV-related behaviour since the beginning of epidemic. AIDS Behav 2015; 19:1720-34.. O aumento das taxas de prevalência e detecção da infecção pelo HIV e a aids entre indígenas do Mato Grosso do Sul observado nos últimos anos evidencia esta situação de vulnerabilidade e exige uma resposta adequada dos serviços de saúde para enfrentar o problema 88. Graeff SV-B, Pícolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Epidemiological aspects of HIV infection and AIDS among indigenous populations. Rev Saúde Pública 2019; 53:71..

Os resultados deste estudo também mostraram a necessidade de ampliação da cobertura diagnóstica da infecção pelo HIV e garantia de acesso e adesão ao tratamento antirretroviral, associadas à implementação de medidas de prevenção que estejam de acordo com as concepções, práticas e comportamentos dos indígenas. Isso requer uma estruturação e organização dos serviços que envolvem capacitação profissional, organização logística e articulação com os centros de referência.

Agradecimentos

Ao Distrito Sanitário Especial Indígena Mato Grosso do Sul, ao Conselho Distrital de Saúde Indígena de Mato Grosso do Sul e a Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Revisado
    28 Maio 2021
  • Aceito
    07 Jun 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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