O ensaio sobre o conceito de determinação social dos processos em saúde-doença problematiza questões, várias e complexas, empírico-teóricas 11. Minayo MCS. Determinação social, não! Por quê? Cad Saúde Pública 2021; 37:e00010721.. A autora propõe a revisão do conceito que tem na gênese e percurso da Saúde Coletiva a sua marca. E o faz com base na teoria social contemporânea, especificamente a Sociologia, que convoca para esta problematização. O ensaio é muito fiel à trajetória intelectual da autora, ao diálogo epistemológico e teórico em torno da interdisciplinaridade da saúde. É, pois, nesta perspectiva que ela apresenta um leque de questões que auxiliam compreender o campo da Saúde Coletiva e alguns de seus impasses atuais.
Problematizando o conceito, a autora evoca o protagonismo da Epidemiologia, os conceitos de biológico, social e objetividade, e as desigualdades e iniquidades sociais que atravessaram o debate na gênese do campo. Revela o então consistente esforço interdisciplinar que a Saúde Coletiva e a Medicina Social latino-americanas desenvolveram com o intuito de problematizar o objeto saúde, esforço de (re)conceituação epistêmica, teórica e sociopolítica, em consonância às condições objetivas da época, e que expressaram o contexto histórico-social e em saúde tanto no âmbito do conhecimento quanto no da ação prática, social e política. Esforço intelectual crítico e interdisciplinar, que portou arrojo e inovação, tendo desbravado fronteiras científicas, políticas e institucionais. Concordando com a autora, um exercício em muito abandonado posteriormente, numa acomodação à repetição, à reificação. O produtivismo acadêmico, vastamente problematizado no campo, é exemplo de como a repetição transmutou-se em critério de mérito por meio das quantidades - de artigos, pesquisas, defesas, lives etc. No ritmo do produtivismo acadêmico, impossível não se repetir, comprometendo assim o esforço interdisciplinar original. A reificação transformou-se em mérito.
O trabalho interdisciplinar na produção do conhecimento requer apego e dedicação por ser extremamente difícil e desgastante diante de matrizes epistemológicas distintas: as ciências humanas e sociais, carregando, por tradição, a historicidade, e as ciências naturais carregando a sua constituição, “onde o homem só aparece como ausência” 22. Japiassú H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora; 1978. (p. 12). A biologia, ciência da organização material dos objetos biológicos, obedeceu à esta mesma lógica científica moderna, não tendo reservado lugar para o homem sócio-histórico, nem tampouco para a vida 22. Japiassú H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora; 1978.,33. Luz MT. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Editora Campus;1988.. A questão ambiental no século XX reposicionou o tema.
Na Saúde Coletiva o desafio interdisciplinar enfrenta, ainda, as distinções entre ciências teóricas e conhecimentos práticos 22. Japiassú H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora; 1978.. A organização científico-institucional do campo por meio das suas entidades representativas, programas de pós-graduação, estruturas de financiamento, parque editorial etc., e, sobretudo, pela implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), reproduziu e amplificou essa distinção, distanciando, desta forma, teoria e prática. Ganhou força o conhecimento prático - que se tornou rapidamente técnico -, com consequências importantes na despolitização do campo 44. Cohn A. A reforma sanitária brasileira: a vitória sobre o modelo neoliberal. Social Medicine 2008; 3:82-94.. Neste cenário, o determinismo causal, atemporal e a-histórico de que nos fala Minayo, encontrou na razão prática o seu lastro, promovendo o recuo do ímpeto interdisciplinar original, arrojado, inovador, instigante e conflituoso. Nos dias de hoje, percebe-se uma acomodação interdisciplinar restrita; sobretudo nos encontros e parcerias das categorias científicas das diferentes matrizes teórico-epistemológicas, uma complementando ou agregando-se à outra - prática fundamental e necessária ao exercício interdisciplinar -, porém ausente de crítica, “o confronto da coisa com seu próprio conceito” 55. Adorno TW, Horkheimer M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1985. (p. 21), o confronto interdisciplinar com o seu próprio objeto: a saúde. Terminamos, assim, circunscritos à reificação da qual tanto procuramos nos afastar nos primórdios do movimento sanitário.
Sobre o sujeito de conhecimento e de ação prático-política, a autora esclarece de que sujeito e lugar, no campo científico, fala o positivismo, e quanto isto molda o campo da saúde em seus embates interdisciplinares. As matrizes teóricas do historicismo e interpretativas das Ciências Humanas e Sociais sempre problematizaram o sujeito onisciente, observador neutro, portador da razão, fazendo-nos recordar irremediavelmente, ontológica e epistemologicamente, da sua natureza socioantropológica, histórico-social, relacional. Matriz ainda hoje questionada ao imputar ao conhecimento assim situado a ausência da objetividade científica, da razão instrumental, do necessário distanciamento do real, e vulnerável, portanto, à possibilidade de produzir evidências e verdades objetivas. Um sujeito de conhecimento “problema”, frágil, instável, considerada a lógica da positividade do “determinismo causal e atemporal”, recuperando os termos da autora. Toda a literatura mundial dos estudos culturais e decoloniais que atravessa parte do pensamento social brasileiro e do pensamento social em saúde latino-americanos, problematiza há décadas, empírica e teoricamente, ontológica e epistemologicamente, esses sujeitos. As fartas evidências da tensão político-cultural Ocidente e Oriente, a situação particularmente relevante do Médio Oriente atual, o protagonismo e reivindicações dos povos e etnias de África e América Latina, a questão migratória contemporânea, as questões de gênero etc. desvelam o empírico e as múltiplas verdades dessas realidades, que parecem realizar-se, entretanto, à revelia da ciência do sujeito onisciente portador do saber determinístico, da razão única, universal, e que reifica história e ciência.
O sujeito de conhecimento e de ação prático-política vem sendo também problematizado quanto ao atributo da liberdade e autonomia. No clássico Sociedade de Risco, de 1986, Beck 66. Beck U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós; 2006. diz que no contexto da modernidade reflexiva os processos de individualização das condições objetivas de vida se dão pela desvinculação e reintegração social. A desvinculação sob as formas de liberação e da perda da estabilidade. A reintegração pela individualização e um outro tipo de controle. Processo que ele e Beck-Gersheim denominarão de “liberdade precária” 77. Beck U, Beck-Gernsheim E. Individualization. Institutionalized individualism and its social and political consequences. London: SAGE Publications; 2002.. Viver contemporaneamente é viver sob o imperativo do pensamento reflexivo, do cálculo, do planejamento autobiográfico, do ajuste, da negociação, da definição de risco e da revogação de tudo na vida, um constante começar de novo, do princípio. A escolha como imperativo social contemporâneo. E o processo de individualização, neste contexto, como a forma da (re)integração social do indivíduo, e que se realiza pelo mercado. Individualização social, mediada pela liberdade e pelo mercado, seria a forma social contemporânea de (re)integração, que se diferencia da forma tradicional moderna mais coletivista - a da estandardização do trabalho, das classes sociais, da família tradicional, das funções e papéis de gênero, da formação, uma (re)integração estandardizada na forma do indivíduo individualizado no exercício de sua “liberdade precária”, via mercado. Trabalhos de Cohn 44. Cohn A. A reforma sanitária brasileira: a vitória sobre o modelo neoliberal. Social Medicine 2008; 3:82-94. e Fleury 88. Fleury S. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994., sob outras perspectivas teóricas, já relataram este fenômeno, o da inclusão social pelo consumo na saúde no Brasil e América Latina.
Por fim, ainda sobre sujeitos/as num mundo altamente globalizado, outra questão complexa e paradigmática se apresenta. As sociedades contemporâneas presenciam a dissolução das formas tradicionais modernas e lançam os indivíduos e as sociedades a um contexto de insegurança, imprevisibilidade e contingência. Essas profundas transformações sociais atingem os sujeitos e suas condições objetivas de vida como apontado por Minayo, o que quer dizer que atingem não apenas a sua vida rotineira, sua situação de saúde-doença, suas expectativas e demandas assistenciais, sua subjetividade etc., como também o próprio estatuto de sujeito, esse constructo histórico-social da razão ocidental moderna. Há, portanto, uma crise sobre quem e o que é esse sujeito que somos nós, agora produto e submersos na contingência, na incalculabilidade, na imprevisibilidade, na sociedade de risco, na alienação do mercado. Os impasses de como agir, decidir ou para onde ir, em cenário de imprevisibilidades, incertezas, riscos e contingências. O caráter plural dos indivíduos, agora libertos das amarras tradicionais modernas, com seus desejos, interesses, recursos e identidades, redesenha um novo sujeito social. Como situar-se então, nos planos ontológico-epistemológico e teórico-empírico, tal qual um sujeito contingente e plural? E num contexto em que as verdades científicas parecem cada vez mais “plurais, históricas e socialmente situadas, provisórias” 99. Corcuff P. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: EDUSC; 2001. (p. 186).
A pandemia da COVID-19 trouxe-nos todas essas questões. Para além dos impasses tipicamente tradicionais modernos - negacionismo vs. ciência - por exemplo, trouxe também conflitos de segunda modernidade, de reflexividade da modernidade que se tornou sociedade de risco autoproduzido, na qual as decisões precisam ser tomadas em contexto de crescente pluralidade, individualização social e contingência, consoantes ao tempo histórico presente.
- 1Minayo MCS. Determinação social, não! Por quê? Cad Saúde Pública 2021; 37:e00010721.
- 2Japiassú H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora; 1978.
- 3Luz MT. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Editora Campus;1988.
- 4Cohn A. A reforma sanitária brasileira: a vitória sobre o modelo neoliberal. Social Medicine 2008; 3:82-94.
- 5Adorno TW, Horkheimer M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1985.
- 6Beck U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós; 2006.
- 7Beck U, Beck-Gernsheim E. Individualization. Institutionalized individualism and its social and political consequences. London: SAGE Publications; 2002.
- 8Fleury S. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994.
- 9Corcuff P. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: EDUSC; 2001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
10 Dez 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
20 Set 2021 - Aceito
24 Set 2021