Lemos o ensaio publicado no fascículo de outubro de 2021 de CSP, intitulado COVID-19 como Sindemia: Modelo Teórico e Fundamentos para a Abordagem Abrangente em Saúde¹1. Bispo Júnior JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00119021.. No artigo, os autores analisaram a interdependência existente entre doenças infecciosas e parasitárias (DIP), doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e saúde mental, sendo a COVID-19 um resultado dessa interação. Contudo, acreditamos que a insustentabilidade dos sistemas alimentares atuais é um importante fator que deve ser integrado ao modelo teórico que entende a COVID-19 como uma sindemia e não somente como uma pandemia.

De maneira geral, os sistemas alimentares podem ser definidos como todos os elementos e atividades envolvidos na produção, processamento, distribuição, preparo e consumo dos alimentos ²2. High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. Food losses and waste in the context of sustainable food systems. A report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition of the Committee on World Food Security. Roma: High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition; 2014.. É importante destacar que os sistemas alimentares atuais são insustentáveis, uma vez que são majoritariamente baseados na monocultura, na criação intensiva de animais e no uso de agrotóxicos, que causam impactos negativos no meio ambiente e contribuem para as mudanças climáticas. Outros pontos relevantes são o elevado grau de processamento dos alimentos, as cadeias longas de comercialização e o consumo alimentar não sustentável, caracterizado pela elevada ingestão de carne bovina e de alimentos ultraprocessados e pelo baixo consumo de frutas, legumes e verduras ³3. Martinelli SS, Cavalli SB. Alimentação saudável e sustentável: uma revisão narrativa sobre desafios e perspectivas. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4251-61..

Devido a esses atributos, acreditamos que os sistemas alimentares devem fazer parte do modelo teórico que entende a COVID-19 como uma sindemia. A COVID-19 é uma doença zoonótica, possivelmente originada pela comercialização e consumo de animais selvagens ⁴4. Mishra SK, Tripathi T. One year update on the COVID-19 pandemic: where are we now? Acta Trop 2021; 214:105778.. Essas doenças ocorrem devido ao contato de animais infectados com humanos e, posteriormente, de humanos com humanos. Os fatores que facilitam essa interação são o desmatamento, condições insalubres e criação inadequada de animais ⁵5. Aiyar A, Pingali P. Pandemics and food systems - towards a proactive food safety approach to disease prevention & management. Food Secur 2020; 12:749-56., característicos de sistemas alimentares insustentáveis.

A má nutrição em todas as suas formas, representada pela desnutrição, deficiência de micronutrientes e excesso de peso, é um dos principais fatores associados ao desenvolvimento de DCNT ⁶6. Branca F, Lartey A, Oenema S, Aguayo V, Stordalen GA, Richardson R, et al. Transforming the food system to fight non-communicable diseases. BMJ 2019; 364:l296.. A insustentabilidade dos sistemas alimentares atuais é relacionada à má nutrição pois pode levar a um baixo consumo de alimentos in natura de origem vegetal e a uma elevada ingestão de alimentos ultraprocessados, ricos em açúcares, gorduras saturadas e sal, associados a excesso de peso e deficiência de nutrientes ⁷7. Food and Agriculture Organization of the United Nations; World Health Organization. Sustainable healthy diets - guiding principles. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019.^,88. Fardet A, Rock E. Ultra-processed foods and food system sustainability: what are the links? Sustainability 2020; 12:6280.. O elevado consumo de carne também está indiretamente associado à desnutrição, pois, para sua produção, são utilizadas grandes quantidades de terra, reduzindo, assim, a área voltada para uma agricultura mais eficiente e sustentável ⁹9. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission report. Lancet 2019; 393:791-846.. Além disso, o elevado desperdício de alimentos e recursos naturais que ocorrem na cadeia produtiva de alimentos, associado a fatores socioeconômicos desfavoráveis, pode comprometer a segurança alimentar e nutricional e a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável ¹⁰10. Food and Agriculture Organization of the United Nations. Food loss and waste and the right to adequate food: making the connection. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2018..

Ainda, a alimentação está associada direta e indiretamente aos transtornos mentais. Estudos iniciais têm apontado que uma dieta rica em frutas, legumes, verduras e gorduras insaturadas está associada a uma melhor saúde mental ¹¹11. Firth J, Gangwisch JE, Borisini A, Wootton RE, Mayer EA. Food and mood: how do diet and nutrition affect mental wellbeing? BMJ 2020; 369:m2382.. Em contrapartida, sistemas alimentares insustentáveis estão associados às mudanças climáticas em curso que, por sua vez, impactam negativamente a saúde mental, podendo causar estresse, ansiedade, depressão, aumento das taxas de suicídio e uso de substâncias, afetando sobretudo populações menos favorecidas socioeconomicamente ¹²12. Cianconi P, Betrò S, Janiri L. The impact of climate change on mental health: a systematic descriptive review. Front Psychiatry 2020; 11:74..

Assim, concluímos que sistemas alimentares insustentáveis estão indissociavelmente relacionados com DIP (com destaque para as doenças zoonóticas), DCNT e transtornos mentais e, portanto, devem fazer parte do modelo teórico que entende a COVID-19 como uma sindemia. Além disso, a integração dos sistemas alimentares nesse modelo teórico pode contribuir para a compreensão de pandemias vindouras e para uma abordagem ampliada da saúde.

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