Um olhar amplo sobre a saúde mental pública

A broad look at public mental health

Una mirada amplia a la salud mental pública

Daiana Paula Milani Baroni Mário César Rezende Andrade Sobre os autores
2018

As políticas de saúde mental no Brasil passam por um momento importante, marcado pela necessidade de consolidação dos avanços alcançados em termos de serviços comunitários e do estabelecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que integra a assistência de saúde mental a toda a rede de saúde e a demais recursos disponíveis em cada território. Entretanto e ao mesmo tempo, essas políticas têm enfrentado perdas e retrocessos nos últimos anos, que podem ameaçar a consolidação de tais avanços e impedir a superação das fragilidades ainda existentes 11. Almeida JMC. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00129519.,22. Cavalcanti MT. Perspectivas para a política de saúde mental no Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00184619.,33. Onocko-Campos RT. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocessos e desafios. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00156119..

Nesse contexto, torna-se essencial abordar a saúde mental como um campo amplo e integrado à saúde pública, do qual ela mesma depende, de forma interconectada. Tal visão é oferecida pelo Oxford Textbook of Public Mental Health, um verdadeiro compêndio que reúne a experiência de renomados pesquisadores internacionais da área da saúde pública e da saúde mental em um rico trabalho de ampliação da relação entre estes dois temas, propondo uma discussão sobre novas perspectivas para que se concebam e desenvolvam projetos e ações nestes campos de atuação. Dividida em quatro seções, distribuídas em mais de 600 páginas, a obra contempla temas amplos, como: os princípios da saúde pública, sua aplicação no campo da saúde mental, a interseção desse campo com diversas áreas, a saúde mental de grupos especiais e minoritários, além de uma ampla possibilidade de intervenções. Ao longo de todas as temáticas, há uma grande ênfase no papel da prevenção em saúde mental e da promoção do bem-estar, no nível tanto da sociedade quanto dos indivíduos.

Já de início, o livro reforça a importância de se rever o dualismo que ainda vigora nas ciências e que se reflete em uma forma de se conceber saúde, separando a experiência do corpo da experiência da mente. Consequentemente, as práticas de cuidado acabam se concentrando no corpo e deixando a mente de fora das discussões e esforços políticos em prol da saúde e saúde mental. Do mesmo modo, é destacada outra problemática que ocorre no processo de concepção de cuidado e de criação de políticas, que, ao priorizar ações em torno da doença mental, deixa de investir em ações que tenham como centro medidas preventivas e, sobretudo, a promoção da saúde mental. Ressalta-se, também, nessa mesma linha argumentativa, o papel fundamental dos determinantes sociais, ambientais, culturais, dentre outros, na produção de saúde e no agravamento de doenças, convidando o leitor a ter um olhar atento ao sujeito em seu contexto, sem restringi-lo à sua experiência física e biológica. Desse modo, convida o leitor a estar atento ao fato de que os aspectos biomédicos tendem a ser afetados pelos determinantes sociais, culturais e ambientais, o que implica considerar tais determinantes efetivamente, em termos de planejamento de ações de prevenção, promoção e cuidado em saúde mental. Trata-se, portanto, da defesa de uma saúde mental coletiva, em uma perspectiva tanto macro quanto micropolítica.

Dentre as variadas reflexões trazidas ao longo dos capítulos em relação a novas perspectivas em saúde mental pública, cabe destacar o questionamento no que se refere à tendência em se focar no processo de adoecimento e na doença enquanto ameaça populacional, em termos de políticas públicas, ou mesmo no doente, enquanto organismo individual, ao invés de se focar em saúde como possibilidade de promoção coletiva a ser investida. Um olhar que aponte para novas práticas nessa direção deve ter em vista a abordagem das capacidades em saúde de dada comunidade e de seus indivíduos, e não nas incapacidades e limitações individuais de forma restrita. Nessa direção, em que se prioriza o coletivo, no que concerne ao processo de adoecimento/cuidado e, principalmente, à produção de saúde, entrelaçamentos entre políticas públicas e saúde mental vão sendo apresentados sob uma ótica de equidade, justiça social e direitos humanos, o que nos agrega importantes reflexões e inspirações a serem posteriormente contextualizadas em nosso território nacional, como avanço e em consonância com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Reforma Psiquiátrica. Para tanto, uma “abordagem das capacidades” (capabilities approach) poderia reatualizar as formas de cuidado, por meio da proposta de nutrir, proteger, prover e expandir as capacidades individuais de sujeitos em condições desfavoráveis de saúde no âmbito mental, em um esforço de habilitá-los a perseguir, conceber e revisar seus planos de vida, mantendo o foco na busca por integridade e por dignidade humana. Além disso, é ressaltada a consideração da inserção dos sujeitos em um sistema econômico de desigualdades sociais e desigualdades em saúde mental, fazendo uso de instrumentos para sustentabilidade em saúde mental, educação em saúde, assim como para o desenvolvimento de pesquisa em saúde pública.

Ao longo dos capítulos, temas específicos vão sendo desenvolvidos aproximando práticas, produção de saberes e planejamento de políticas públicas no intuito de construir e fortalecer princípios em saúde mental pública. Nesse sentido, o tema da saúde mental em uma perspectiva pública vai sendo aprofundado a partir da sua articulação com demais temas, tais como: saúde ocupacional e do trabalhador, contexto escolar e relações interpessoais, questões de gênero, interseccionalidade (gênero, raça e classe social), diferenças de acesso, desigualdades históricas e sociais, dificuldades intelectuais, doenças congênitas e sexualmente transmissíveis, abuso de álcool e drogas, estilo de vida, mídia social e telessaúde na saúde mental, dentre outros.

Portanto, trata-se de uma obra relevante para o contexto contemporâneo e nacional, ao expandir a visão sobre a assistência em saúde mental, por meio de uma saúde mental global e da sua sedimentação no campo da saúde pública, o que demanda o uso de evidências científicas e de uma abordagem mais integrativa 44. Collins P, Patel V, Joestl S, March D, Insel TR, Daar AS. Grand challenges in global mental health. Nature 2011; 475:27-30.,55. Wahlbeck K. Public mental health: the time is ripe for translation of evidence into practice. World Psychiatry 2015; 14:36-42..

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  • 1
    Almeida JMC. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00129519.
  • 2
    Cavalcanti MT. Perspectivas para a política de saúde mental no Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00184619.
  • 3
    Onocko-Campos RT. Saúde mental no Brasil: avanços, retrocessos e desafios. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00156119.
  • 4
    Collins P, Patel V, Joestl S, March D, Insel TR, Daar AS. Grand challenges in global mental health. Nature 2011; 475:27-30.
  • 5
    Wahlbeck K. Public mental health: the time is ripe for translation of evidence into practice. World Psychiatry 2015; 14:36-42.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2020
  • Aceito
    15 Jan 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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