O que a vida quer da gente é coragem: o ensino médico durante a pandemia de COVID-19

What life wants from us is courage: medical education during the COVID-19 pandemic

Lo que la vida quiere de nosotros es coraje: educación médica durante la pandemia de COVID-19

Adalgisa Peixoto Ribeiro Graziella Lage Oliveira Sobre os autores
2020

Desde a declaração de pandemia de COVID-19, em março de 2020, várias instituições de Ensino Superior e cursos da área da saúde tiveram que se adaptar à necessidade de distanciamento social, vivenciando os impactos do afastamento dos estudantes das salas de aula e dos campos de prática.

Nesse contexto, a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) protagonizou iniciativas para conhecer os impactos da pandemia no contexto da educação médica, aprendizados e responsabilidades no planejamento de retorno e cuidado dos educandos e educadores durante este processo. Um dos desdobramentos destas iniciativas foi o livro A Escola Médica na Pandemia da COVID-1911. Afonso DH , Postal EA , Batista NA , Oliveira SS , organizadores. A escola médica na pandemia da COVID-19. Brasília: Associação Brasileira de Educação Médica; 2020., publicado em 2020 em formato e-book. O livro está organizado em 27 capítulos curtos, divididos em sete seções. O fio condutor do livro é a descrição das experiências do ensino médico durante a pandemia de COVID-19, com foco na responsabilidade social das escolas, na qualidade do ensino e na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Para fins de organização do raciocínio, pode-se agregar o conteúdo em três aspectos principais: (1) desafios para a comunidade acadêmica; (2) avanços alcançados; e (3) cuidado de docentes e discentes.

Entre os desafios para a comunidade acadêmica destacam-se a interrupção das atividades presenciais de ensino, assistenciais e internatos na fase inicial da pandemia; a adaptação dos serviços para atendimento aos pacientes com COVID-19 e a suspensão da assistência ambulatorial e cirurgias eletivas; o temor pela exposição dos estudantes ao risco de contaminação nos campos de estágio; a escassez de equipamentos de proteção individual para as equipes de saúde e estudantes; a necessidade de priorizar a vida e de se lançar nas pesquisas para dar respostas baseadas na ciência.

Além disso, o desafio de lidar com as barreiras para uma nova modalidade de ensino, com amplas dificuldades discentes e docentes para o início do Ensino Remoto Emergencial (ERE), como acesso à Internet, disponibilidade de equipamentos e treinamento dos professores. Neste momento do livro, os autores debatem com veemência a diferença entre a modalidade de Educação a Distância e o ERE. A primeira conta com recursos, conteúdo adaptado e uma equipe multiprofissional preparada para ofertar atividades pedagógicas por meio de diferentes mídias em plataformas online, enquanto o ERE objetiva ofertar acesso temporário aos conteúdos curriculares que seriam desenvolvidos presencialmente 22. Hodges C, Moore S, Lockee B, Trust T, Bond A. The difference between emergency remote teaching and online learning. EDUCAUSE Review 2020; 27 mar. https://er.educause.edu/articles/2020/3/the-difference-between-emergency-remote-teaching-and-online-learning#fn3.
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Na visão discente, representada pela Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, a adoção do ERE trouxe a precarização da educação e do trabalho. Essa visão crítica discente parece fazer coro com o corpo docente quando revela o imenso desafio de se adaptar, com investimentos próprios, uma modalidade de ensino para a qual não foram treinados, de que não possuem equipamentos adequados e em um curto espaço de tempo, gerando estresse físico e mental 33. Oliveira GL, Ribeiro AP. Relações de trabalho e a saúde do trabalhador durante e após a pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00018321.. Além disso, destacam a exacerbação das iniquidades advindas do programa O Brasil Conta Comigo, instituído pela Portaria nª 492/202044. Ministério da Saúde. Portaria nº 492, de 23 de março de 2020. Institui a Ação Estratégica "O Brasil Conta Comigo", voltada aos alunos dos cursos da área de saúde, para o enfrentamento à pandemia do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União 2020; 23 mar., que recrutou graduandos da saúde para atuar no atendimento aos pacientes com COVID-19. Com atrativos como bolsa, substituição de carga horária de internatos e bônus em processos seletivos para residências, esse programa não garantiu um ambiente de estágio e de ensino substitutivo à prática direcionada que os alunos teriam na graduação, além de provocar a perda da isonomia nos processos seletivos.

A necessidade de repensar a prática docente foi a tônica deste momento de mudanças, com a busca por formação, técnicas de educação não presencial, avaliação e suporte aos alunos. Mesmo com essa busca que, na maioria das vezes, tem sido solitária 22. Hodges C, Moore S, Lockee B, Trust T, Bond A. The difference between emergency remote teaching and online learning. EDUCAUSE Review 2020; 27 mar. https://er.educause.edu/articles/2020/3/the-difference-between-emergency-remote-teaching-and-online-learning#fn3.
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, permanece o desafio de manter as atualizações e reavaliar a prática.

Entre os avanços alcançados, destacam-se a retomada das atividades passíveis de adaptação para o ERE, a intensificação da utilização de ferramentas de ensino como as simulações (realística, de baixa e alta fidelidade), a telemedicina, a avaliação somativa com prova escrita e salto triplo e o uso do método Team-Based Learning de forma virtual, com boa aceitação por alunos e docentes. Mesmo com todas as questões apontadas sobre o ERE, sua utilização acelerou a transformação digital na medicina que caminhava lentamente e de forma bastante desigual entre as mais de 300 escolas médicas brasileiras. Certamente, com grande possibilidade de se manter, no futuro, algumas atividades mediadas pela tecnologia.

Outro avanço importante foi o reconhecimento e valorização da epidemiologia como ferramenta do trabalho médico. Por muito tempo não priorizada pelos estudantes por não ser uma disciplina clínica, a epidemiologia se mostrou peça fundamental durante a pandemia para o auxílio à tomada de decisões, identificação de prioridades em saúde e da prática da medicina baseada em evidências.

Ao mesmo tempo em que a pandemia escancarou as fragilidades sociais e políticas do país, também foi pródiga em revelar a capacidade de resposta às adversidades, particularmente das instituições de Ensino Superior. Entre elas, a reorganização das ações para atuações mais relevantes junto às comunidades; o fortalecimento de relações horizontais entre estudantes, docentes e trabalhadores da saúde; o incentivo às áreas básicas do conhecimento em saúde; a ênfase no trabalho interdisciplinar e colaborativo; o fomento de competências relacionadas à saúde coletiva (gestão em saúde, financiamento, vigilância, medicina baseada em evidências); as reflexões sobre o fazer e o ensinar medicina, sobretudo considerando a abordagem a grupos vulneráveis. As aprendizagens advindas desse contexto marcaram a necessidade de escuta, solidariedade, flexibilidade e criatividade na busca por soluções.

No que concerne ao cuidado de docentes e discentes em contexto de rupturas, o livro traz um debate importante, retomando o histórico das escolas de medicina, nas quais sentimentos de medo, insegurança, solidão, tristeza, angústia são velhos conhecidos e bastante comuns entre os discentes. No entanto, o que parece novo é a amplitude do público afetado por eles. Diante de uma ruptura entre passado e futuro, a busca por questões estruturais, atitudinais e sociais precisa conviver com a busca por estratégias de cuidado que considerem as singularidades, as diversidades de trajetórias dos diferentes sujeitos da comunidade acadêmica.

Neste aspecto, é trazido à tona a imagem do super-herói, tão evocada em relação aos profissionais de saúde neste momento de demandas extremas por cuidados. Em alguns capítulos se discute quão sedutora é esta imagem e as repercussões negativas dela para a saúde mental de estudantes de medicina e profissionais. Em forma de reflexão sobre o cuidado, surgem críticas contundentes sobre a formação médica: a de que o afeto não costuma ter lugar neste ambiente e a de que a escola médica prima por estimular o pensar cognitivo em detrimento das questões emocionais inerentes aos indivíduos, dissociando o humano de si mesmo, aspectos que precisam fazer parte do cuidado à saúde mental dos estudantes.

Sobre o cuidado com os docentes, aspecto abordado de forma muito tímida na obra, os autores destacam ações de treinamento para as novas tecnologias e o oferecimento de oficinas dirigidas aos professores (desenho, meditação, literatura e música). É bom lembrar que esse cuidado não garante condições de trabalho e redução de riscos da nova forma de trabalhar, além de não minimizar problemas que têm afetado os docentes, como as distâncias geracionais no manejo das tecnologias e os desafios de gênero no trabalho docente realizado no ambiente doméstico 55. Souza KR, Santos GB, Rodrigues MAS, Felix EG, Gomes L, Rocha GL, et al. Trabalho remoto, saúde docente e greve virtual em cenário de pandemia. Trab Educ Saúde 2021; 19:e00309141..

O livro foi escrito quando as escolas médicas brasileiras pensavam em formas de oferecer atividades remotas. O início do ERE não foi homogêneo nas escolas médicas e muitas preocupações ainda persistem, como excesso de atividades em tela, sobrecarga dos alunos, ausência de espaços verdes para descanso, inclusão de todos e treinamento dos docentes. Assim como muitas desigualdades sociais ficaram evidentes durante a pandemia, as vulnerabilidades de estudantes e docentes se tornaram visíveis, o que pode ter aproximado experiências e o compartilhamento de medos, inseguranças, suspensão de planos e mudanças de rumos.

O leitor atento perceberá, ao final, o embate de forças que, ao mesmo tempo, reivindica pela qualidade do ensino e da aprendizagem, pela responsabilidade social em meio ao contexto epidemiológico e pretende focalizar nos interesses exclusivos de cada classe. De um lado, os alunos que querem aprender e ter sua formatura garantida no tempo previsto; de outro, os professores que primam pela qualidade do que oferecem, mas penam pelos custos pessoais e profissionais de arcar com as adaptações rápidas e pouco planejadas; e de outro, os dirigentes que buscam equilibrar todas essas forças para manter os colaboradores e investir nas aquisições impostas pelo ERE.

Os autores apresentam mais perguntas do que respostas. No entanto, abrem espaço para as experiências de êxito e de busca pelo melhor caminho. Certamente, superados os desafios iniciais, novos desafios às escolas médicas se apresentarão, principalmente com a aproximação do Ensino Híbrido Emergencial. Embora tenhamos aprendido muito até aqui, é preciso coragem para continuar transformando a educação médica, que deve ser cada vez mais conectada às demandas sociais.

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    Afonso DH , Postal EA , Batista NA , Oliveira SS , organizadores. A escola médica na pandemia da COVID-19. Brasília: Associação Brasileira de Educação Médica; 2020.
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    Hodges C, Moore S, Lockee B, Trust T, Bond A. The difference between emergency remote teaching and online learning. EDUCAUSE Review 2020; 27 mar. https://er.educause.edu/articles/2020/3/the-difference-between-emergency-remote-teaching-and-online-learning#fn3
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    Oliveira GL, Ribeiro AP. Relações de trabalho e a saúde do trabalhador durante e após a pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00018321.
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    Ministério da Saúde. Portaria nº 492, de 23 de março de 2020. Institui a Ação Estratégica "O Brasil Conta Comigo", voltada aos alunos dos cursos da área de saúde, para o enfrentamento à pandemia do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União 2020; 23 mar.
  • 5
    Souza KR, Santos GB, Rodrigues MAS, Felix EG, Gomes L, Rocha GL, et al. Trabalho remoto, saúde docente e greve virtual em cenário de pandemia. Trab Educ Saúde 2021; 19:e00309141.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2021
  • Aceito
    11 Ago 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br