É provável, considerando o tumultuado processo político-institucional dos últimos 20 anos, que a abordagem de análise do ciclo de políticas públicas seja a mais apropriada para estudar os avanços e os desafios experimentados pela Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN).
De forma ortodoxa, ainda ficaríamos com o referencial mais adotado pelos analistas. Esse modelo conceitual considera as políticas de alimentação e nutrição dentro de uma abordagem que compreende três aspectos: disponibilidade de alimentos, seu consumo e, por fim, utilização biológica de energia e nutrientes, que reflete o próprio estado de nutrição. Em linguagem figurada, uma trilogia. Na realidade, a disponibilidade de alimentos é um complexo de fatores e processos. Um complicado polinômio, como o consumo alimentar de grupos ou de toda a população representa outro grande polinômio, como a própria utilização biológica de energia e nutrientes, que define metabolicamente o estado de nutrição. Nessa instância, a participação do setor saúde pode ser primordial, uma vez que este pode atuar sobre a ocorrência de processos que condicionam os efeitos secundários das doenças carenciais ou que agravam seus excessos. Entretanto, vamos seguir a tipologia original da proposta.
A PNAN é fruto de um processo histórico de conformação das políticas de saúde e de alimentação e nutrição no país, do qual destaco alguns marcos. O primeiro foi o inquérito pioneiro, realizado na década de 1930 por Josué de Castro com 700 famílias da classe operária do Recife, Pernambuco, e publicado em poucas páginas do Diário Oficial do Estado. O material dessa pesquisa resultou no livro Geografia da Fome, traduzido em 25 línguas, servindo para a elaboração da primeira cesta básica de alimentos do Brasil, e fundamentou a instituição do salário mínimo no país. De fato, além do consumo familiar alimentar, o inquérito registrou gastos com moradia, transporte, vestuário, educação e saúde, funcionando como um orçamento familiar que acabou valendo como uma estratégia na política pública.
O segundo marco foi o Estudo Nacional de Despesas Familiares (ENDEF). Realizado numa amostra de 50 mil famílias, considerado um dos maiores inquéritos de todo o mundo, que impactou poderosamente os estudos e as políticas de alimentação e nutrição em nosso país. O estudo conclui que o fator limitante do perfil alimentar do Brasil seria o “déficit” energético, contrapondo-se à deficiência proteica como paradigma dominante à época. Mais recentemente, pesquisas menos ambiciosas, como as Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF), passaram a moderar e atualizar algumas observações que se impuseram, como “força de gravidade” do ENDEF.
Também compõem a história de formulação e implementação da PNAN vários processos de institucionalização e de extinção de instâncias e arenas voltadas à agenda de alimentação e nutrição. São exemplos disso a extinção, na década de 1990, do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), que era “aninhado” como um nicho institucional do Ministério da Saúde, mas com uma compreensão interinstitucional que acomodava a participação de vários ministérios e apoios fora do âmbito formal do governo, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o Fundo das Nações Unidas para Infância e Adolescência (UNICEF) e fundações internacionais, como a Fundação Ford, além da experiência intercambiada com alguns países como Chile, Costa Rica e Cuba. Outro exemplo foi a criação e a extinção do primeiro Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição, o segundo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), recriado em 2003 e também extinto em 2019, que estimulou um acervo ímpar de experiências em todo o continente e até em nível mundial.
Mais do que memórias, a PNAN mantém ativos grandes princípios doutrinários: os direitos humanos à alimentação e à saúde, dentro de bases humanistas, coparticipativas, éticas e de cidadania. Incorporando princípios e normas do Sistema Único de Saúde (SUS), a PNAN funda-se na compreensão de que a alimentação é um elemento de humanização das práticas de saúde, respeito à diversidade, à cultura e fortalecimento da autonomia dos indivíduos.
O percurso de formulação e implementação da PNAN mostrou a importância de se revisarem diretrizes, ações e programas à luz da transição epidemiológica e nutricional em curso no país. Como a mudança que mais caracteriza a transição é demarcada pela pandemia sobrepeso/obesidade “devido ao consumo de alimentos”, é conveniente esclarecer que constitui um complexo de fatores, como estilos sedentários de vida, mudanças dos padrões de emprego e ocupação, substituição de atividades econômicas primárias como extrativismo e o crescimento do setor terciário da economia. É uma mudança estrutural, com implicações no consumo de alimentos. O simples isolamento social por oito ou dez meses já foi capaz de acelerar ou produzir mudanças marcantes no estado de nutrição 11. Malta DC, Szwarcwald CL, Barros MBA, Gomes CS, Machado IE, Souza Júnior PRB, et al. A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiol Serv Saúde 2020; 29:e2020407..
Na leitura do artigo de debate 22. Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220., é gratificante ver que o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) se valida como um instrumento de trabalho, uma vez que se trata de um projeto iniciado há décadas como uma das propostas mais instigantes do setor saúde para a atenção primária à saúde, podendo contribuir para a organização da atenção nutricional em âmbito local. Ficam ressaltadas as limitações potenciais: como a demanda de crianças ser dominantemente influenciada por razões clínicas ou casos ativos de doenças, o que, por si, já produziria um viés em termos de possível comprometimento do estado nutricional. Estamos falando de fatores imediatos ou proximais, que podem ser refletidos na relação peso/altura ou na relação peso/idade, e como última instância, na relação altura/idade, como efeito de longo prazo dos “déficits” de crescimento.
Quanto às crianças menores de cinco anos, o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI), inquérito de base domiciliar representativo da população brasileira realizado em 2019 33. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil - ENANI-2019: resultados preliminares. Indicadores de aleitamento materno no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020.,44. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil - ENANI-2019: resultados preliminares. Prevalência de anemia e deficiência de vitamina A entre crianças brasileiras de 6 a 59 meses. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020., será uma excelente oportunidade para informar sobre a transição nutricional neste grupo populacional.
No tocante ao financiamento da PNAN, o painel de recursos orçamentários para o período de 2003 a 2018 descreve uma tendência ascendente, mas que, pela simples leitura contábil, provavelmente não acompanhou os custos executados e o potencial de demandas que a PNAN poderia ter mobilizado para a execução de suas diretrizes e ações se houvesse um aumento orçamentário real e condizente com as necessidades de implementação da política. Sente-se que o espírito de “Estado Mínimo”, como marca registrada do neoliberalismo, foi mantido em mandatos sucessivos, com um agravante esdrúxulo no mandato de Michel Temer, quando foram congeladas por 20 anos as verbas públicas para a saúde e a educação. Se trabalharmos com o modelo analítico dos ciclos de políticas, o processo de planejamento, implementação, monitoramento e avaliação da PNAN foi penosamente submetido aos princípios de um Estado Mínimo nessas duas décadas, dado o impacto negativo da escassez de recursos devido à falta de prioridade política, quando comparada ao orçamento de toda a União, ou mesmo, ao do próprio Ministério da Saúde.
Em relação à estruturação da PNAN, cabe valorizar a definição de diretrizes e, como desdobramentos, as ações e os principais programas que materializam a sua efetividade. Particularizando-se o elenco de providências programadas, questionam-se, muito especificamente, as propostas a partir do ano 2000, quando o Brasil e vários outros países (em princípio todos) assumiram compromissos formais com as Nações Unidas. Por exemplo, os objetivos e metas do milênio demarcaram uma demanda direcionada por compromissos entre as nações de alcançar patamares mínimos de superação de vários problemas, entre os quais saúde, educação, nutrição, assistência social e meio ambiente. Novos problemas culminaram na pactuação de novos objetivos: os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que constituem compromissos mais amplos que os Objetivos do Milênio. Acabar com a pobreza é o primeiro objetivo da Agenda 2030. Observa-se o crescimento da pobreza no país, agravado pela pandemia de COVID-19. As reformas trabalhista e previdenciária potencializam esse crescimento, observam-se maiores taxas de desocupação aliadas à perda de direitos, o que leva o país a se distanciar do alcance do segundo objetivo da Agenda: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição, e promover a agricultura sustentável. Em 2019, a trajetória de enfrentamento da fome e de construção do sistema e da política de segurança alimentar e nutricional, ocorrida no período de 2003 a 2015, foi marcada pelo retrocesso. O cumprimento da meta que visa a acabar com todas as formas de desnutrição até 2025 também está ameaçado pelo crescimento, ainda que discreto, da desnutrição crônica. Esse aumento provavelmente reflete o rebaixamento das condições de vida da parcela mais empobrecida da população 55. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030. IV Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável Brasil. https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2020/08/por_rl_2020_web-1.pdf (acessado em Fev/2021).
https://brasilnaagenda2030.files.wordpre... . Essas condições, aliadas ao cenário de aumento da prevalência de doenças crônicas, expressam os imensos desafios que a PNAN ainda enfrenta.
Concluindo, o artigo de Santos et al. 22. Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220. contribui para compreender a história da PNAN e deve ser um texto de referência e consulta para estudiosos, encarregados da concepção de políticas e programas, gestores dentro e fora do setor saúde no Brasil.
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- 1Malta DC, Szwarcwald CL, Barros MBA, Gomes CS, Machado IE, Souza Júnior PRB, et al. A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiol Serv Saúde 2020; 29:e2020407.
- 2Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220.
- 3Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil - ENANI-2019: resultados preliminares. Indicadores de aleitamento materno no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020.
- 4Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil - ENANI-2019: resultados preliminares. Prevalência de anemia e deficiência de vitamina A entre crianças brasileiras de 6 a 59 meses. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2020.
- 5Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030. IV Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável Brasil. https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2020/08/por_rl_2020_web-1.pdf (acessado em Fev/2021).
» https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2020/08/por_rl_2020_web-1.pdf
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
29 Out 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
15 Fev 2021 - Revisado
29 Mar 2021 - Aceito
05 Abr 2021