O artigo de Santos et al. 11. Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220. traça o percurso da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) (1999-2020), suas tensões e contextos, pontuando avanços, mudanças e forças que operam na sua constituição. A evolução da educação alimentar e nutricional ao longo do histórico da PNAN e, mais particularmente, o documento Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas22. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de referência de educação alimentar e nutricional para as políticas públicas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2012., configura o escopo deste comentário, que pleiteia o campo da educação alimentar e nutricional como essencial, tanto para a condução de diretrizes do PNAN como pelo seu potencial de ampliação da intersetorialidade e interdisciplinaridade de saberes que estão envoltos ao campo da alimentação e nutrição 33. Boog MCF. Educação nutricional: passado, presente, futuro. Rev Nutr PUCCAMP 1997; 10:5-19.,44. Santos LAS. Educação alimentar e nutricional no contexto da promoção de práticas alimentares saudáveis. Rev Nutr PUCCAMP 2005; 18:681-92..
Os eixos norteadores da PNAN estabelecem um diálogo com a educação alimentar e nutricional a partir de então, reconhecida como estratégica para a promoção da alimentação saudável dentro do contexto da realização do direito humano á alimentação adequada (DHAA) e da garantia da segurança alimentar e nutricional (SAN) 55. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2003..
Nesse decurso, a Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição (CGPAN), mais tardiamente CGAN, responsável pela formulação e implementação da PNAN, em paralelo a outras iniciativas da sociedade civil e de articulações de setores que lidavam com as demandas da sociedade, frente ao cenário da situação alimentar e nutricional como, por exemplo, o Programa Fome Zero, instituído em 2003, delinearam as bases que fundamentaram a construção do Marco de Referência em educação alimentar e nutricional para Políticas Públicas, publicado em 2012, pela extinta Coordenação-Geral de Educação Alimentar e Nutricional (CGEAN) do então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Cabe salientar que os processos de construção dessas diretrizes políticas, tanto no caso do Marco de Referência 22. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de referência de educação alimentar e nutricional para as políticas públicas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2012. como no da PNAN, envolveram a participação de diferentes segmentos institucionais, técnico-científicos e da sociedade, bem como a representação por estados e regiões do país. Entretanto, no caso da PNAN, conforme é ressaltado no artigo, a versão 2011 teve foco na saúde, em função da reorganização das ações no campo da alimentação e nutrição, as quais, a partir de 2006, com a publicação da Lei nº 11.346, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), foram transferidas para diferentes setores da administração federal, pelo reconhecimento da necessidade de envolver dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais.
O Marco de Referência, como documento técnico de referência, busca corroborar a consecução dos objetivos da PNAN quando “orienta conceitos, princípios e diretrizes que visam a contribuir para a construção de práticas referenciadas a serem traduzidas em eixos, ações e programas de educação alimentar e nutricional mais qualificados” 66. Amparo-Santos L. Avanços e desdobramentos do marco de referência da educação alimentar e nutricional para políticas públicas no âmbito da universidade e para os aspectos culturais da alimentação. Rev Nutr PUCCAMP 2013; 26:595-600. (p. 596).
Sublinha-se que o Marco de Referência se assume em plena observância aos princípios organizativos e doutrinários do campo no qual as ações de educação alimentar e nutricional estão inseridas, sejam aos do SISAN, do Sistema Único de Saúde (SUS), do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Sistema Único de Assistência Social, dentre outros, agregando ainda: (i) sustentabilidade social, ambiental e econômica, (ii) abordagem do sistema alimentar, na sua integralidade; (iii) valorização da cultura alimentar local e respeito à diversidade de opiniões e perspectivas, considerando a legitimidade dos saberes de diferentes naturezas; (iv) a comida e o alimento como referências (v) valorização da culinária como prática emancipatória; (vi) a promoção do autocuidado e da autonomia; (vii) a educação como processo permanente e gerador de autonomia e participação ativa e informada dos sujeitos; (viii) a diversidade nos cenários de prática; (ix) intersetorialidade; (x) planejamento, avaliação e monitoramento das ações 22. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de referência de educação alimentar e nutricional para as políticas públicas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2012..
Em que pese a ampliação do escopo de articulações setoriais e disciplinares mobilizadas pelo Marco de Referência, vale retomar a sua assunção da alcunha educação alimentar e nutricional como contemporânea da instituição da noção da alimentação adequada e saudável nas políticas públicas brasileiras do campo. Paiva et al. 77. Paiva JB, Magalhães LM, Santos SMC, Santos LAS, Trada LAB. A confluência entre o "adequado" e o "saudável": análise da instituição da noção de alimentação adequada e saudável nas políticas públicas do Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00250318. exploram esse processo da noção da alimentação adequada e saudável como confluente das discussões do campo da segurança alimentar e nutricional, do direito humano e do campo da alimentação e nutrição assentado na área da saúde.
Tais pontuações em conjunto renovam o campo da alimentação e nutrição assumindo cada vez mais o seu caráter complexo e interdisciplinar mediante o acolhimento de temáticas outrora marginalizadas na discussão como, por exemplo, a dimensão das culturas alimentares. Eventos e documentos subsequentes ao Marco de Referência, como o Manifesto Comida de Verdade da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, a segunda versão do Guia Alimentar para a População Brasileira88. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. e outras publicações 99. Coordenação-Geral de Educação Alimentar e Nutricional, Departamento de Estruturação e Integração dos Sistemas Públicos Agroalimentares, Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Ministério do Desenvolvimento Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social; 2018.,1010. Ministério da Saúde; Universidade Federal de Minas Gerais. Instrutivo: metodologia de trabalho em grupos para ações de alimentação e nutrição na atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde/Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2016. aprofundam a circulação de noções sobre comer como um ato político, comida de verdade, do campo à mesa, culinária, comensalidade no compósito de conceitos fundamentais para o campo que, com efeito, impele para uma reflexão aprofundada sobre as suas relações com a saúde. Em adição, este diálogo entre a PNAN, a educação alimentar e nutricional e o Marco de Referência ainda fecunda o campo quando ilumina aspectos que influem nas relações de cuidado como a humanização das práticas de saúde, o autocuidado e a autonomia, mediada por perspectivas educacionais freirianas com base em uma “ação crítica, contextualizada, com relações horizontais e com valorização dos saberes e práticas populares, alinhou-se aos movimentos de democratização e de equidade” 22. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de referência de educação alimentar e nutricional para as políticas públicas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2012. (p. 17).
À guisa da conclusão deste breve comentário, pode-se considerar que a publicação do Marco de Referência representou, ao largo destes 20 anos da PNAN, uma consecução da educação alimentar e nutricional, fundamental para esta política pública, demarcando princípios e diretrizes, pautados em articulações intra e intersetorial e em parceria com diferentes segmentos da sociedade, emergente para que se cumpra o que é “inadiável, para a PNAN”: “perseverar com o compromisso histórico de contribuir para a garantia do direito humano à alimentação saudável e sustentável a todos os que habitam o território brasileiro” 11. Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220. (p. 14), conforme afirmam os autores do artigo aqui comentado.
Por outra via, a experiência de construção do Marco de Referência oxigena a PNAN na medida em que se contrapõe à lógica fragmentada que tanto marcou a história das políticas públicas no país, recuperando dimensões como autonomia, autocuidado, responsabilidade nos âmbitos das relações humanas, ambientais e sociais e se apresenta como desafio para a consolidação desta articulação de ações nos diferentes setores envolvidos na alimentação e nutrição. PNAN, educação alimentar e nutricional, alimentação adequada e saudável podem ser potencializadores na constante busca de uma maior articulação entre o SUS e o SISAN, expresso em uma das diretrizes da PNAN.
Cabe, por fim, um último comentário referente às polifônicas narrativas e discursos que envolvem as práticas de educação alimentar e nutricional, em que urge o constante aprofundamento e atualização deste documento potente, a fim de que os seus princípios e diretrizes não se reduzam a métodos e técnicas replicáveis, por vezes descontextualizados, que podem atender a interesses distintos aos princípios ético-humanísticos que regem a promoção e a garantia da saúde, da SAN e para a realização do DHAA.
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- 1Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220.
- 2Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de referência de educação alimentar e nutricional para as políticas públicas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2012.
- 3Boog MCF. Educação nutricional: passado, presente, futuro. Rev Nutr PUCCAMP 1997; 10:5-19.
- 4Santos LAS. Educação alimentar e nutricional no contexto da promoção de práticas alimentares saudáveis. Rev Nutr PUCCAMP 2005; 18:681-92.
- 5Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.
- 6Amparo-Santos L. Avanços e desdobramentos do marco de referência da educação alimentar e nutricional para políticas públicas no âmbito da universidade e para os aspectos culturais da alimentação. Rev Nutr PUCCAMP 2013; 26:595-600.
- 7Paiva JB, Magalhães LM, Santos SMC, Santos LAS, Trada LAB. A confluência entre o "adequado" e o "saudável": análise da instituição da noção de alimentação adequada e saudável nas políticas públicas do Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00250318.
- 8Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
- 9Coordenação-Geral de Educação Alimentar e Nutricional, Departamento de Estruturação e Integração dos Sistemas Públicos Agroalimentares, Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Ministério do Desenvolvimento Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social; 2018.
- 10Ministério da Saúde; Universidade Federal de Minas Gerais. Instrutivo: metodologia de trabalho em grupos para ações de alimentação e nutrição na atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde/Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2016.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
29 Out 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
22 Mar 2021 - Revisado
08 Maio 2021 - Aceito
14 Jun 2021