Prezadas Editoras,
Lemos com interesse e atenção o artigo publicado no fascículo de julho de 2022 de CSP, intitulado A Cor e o Sexo da Fome: Análise da Insegurança Alimentar sob o Olhar da Interseccionalidade11. Silva SO, Santos SMC, Gama CM, Coutinho GR, Santos MEP, Silva NJ. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00255621.. O estudo analisou a insegurança alimentar a partir de um enfoque interseccional, revelando que domicílios chefiados por mulheres negras apresentaram maior probabilidade de insegurança alimentar leve, moderada ou grave quando comparados àqueles liderados por homens brancos.
Além de cruciais para combater a invisibilidade de segmentos multiplamente marginalizados da população brasileira, tais achados permitem uma compreensão mais nuançada sobre as iniquidades na insegurança alimentar e fundamentam estratégias mais inclusivas para seu enfrentamento. Em larga medida, os resultados de Silva et al. 11. Silva SO, Santos SMC, Gama CM, Coutinho GR, Santos MEP, Silva NJ. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00255621. confirmam pressupostos interseccionais, pois revelam como o intercruzamento de raça e gênero produz desvantagens para alguns grupos sociais e vantagens para outros, que vão muito além da atuação isolada desses dois eixos de opressão. Por tudo isso, brindamos os autores pela iniciativa original e absolutamente necessária, inclusive na investigação da insegurança alimentar em nosso país.
Ao mesmo tempo, entendemos que as comparações estabelecidas entre os grupos interseccionais requerem um cuidado metodológico adicional, que poderia trazer mais vigor às importantes conclusões do trabalho. Em particular, caberia previamente examinar se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) é capaz de produzir estimativas comparáveis entre os segmentos populacionais, facilitando uma interpretação inequívoca das iniquidades identificadas. Embora o histórico de desenvolvimento e avaliação psicométrica da EBIA conte com evidências favoráveis à sua utilização no país, essa propriedade do instrumento não foi escrutinada em estudos prévios, potencialmente limitando a interpretação das comparações realizadas.
Explicamo-nos: ao compararmos os resultados obtidos com a EBIA entre diferentes grupos interseccionais, assumimos que a escala afere a insegurança alimentar da mesma forma para todos eles. Em outras palavras, pressupomos que a EBIA é invariante nos distintos segmentos populacionais atravessados por raça e gênero, por exemplo. Entretanto, a invariância da escala ainda deve ser examinada para que as iniquidades observadas - senão nas suas direções, pelo menos nas suas magnitudes - possam ser atribuídas a diferenças factuais entre os grupos, e não a eventuais problemas internos do instrumento 22. Brown TA. Confirmatory factor analysis for applied research. 2nd Ed. Nova Iorque: The Guilford Press; 2015.,33. Reichenheim M, Bastos JL. What, what for and how ? Developing measurement instruments in epidemiology. Rev Saúde Pública 2021; 55:40..
Nesse sentido, consideramos imprescindível que evidências sobre a invariância da EBIA em distintos grupos populacionais sejam produzidas em pesquisas futuras, de modo que as comparações derivadas de sua utilização possam ser dotadas de maior robustez. Nosso grupo de pesquisa está atualmente dedicado a essa questão e teria muito interesse em colaborar com os autores da recente publicação em CSP para fazer avançar a investigação sobre as iniquidades na insegurança alimentar em níveis mais elevados de validade e precisão.
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- 1Silva SO, Santos SMC, Gama CM, Coutinho GR, Santos MEP, Silva NJ. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00255621.
- 2Brown TA. Confirmatory factor analysis for applied research. 2nd Ed. Nova Iorque: The Guilford Press; 2015.
- 3Reichenheim M, Bastos JL. What, what for and how ? Developing measurement instruments in epidemiology. Rev Saúde Pública 2021; 55:40.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Nov 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
17 Ago 2022 - Aceito
26 Ago 2022