No dia 9 de janeiro de 2007, na cidade de São Francisco, Estados Unidos, Steve Jobs subiu ao palco do evento anual da empresa Apple para anunciar um novo produto. “We’re going to make some history here today” [“Nós vamos fazer história aqui hoje”], disse antes de apresentar o primeiro iPhone. A novidade parecia realmente revolucionária: um aparelho de som digital, um telefone celular e um computador com acesso à Internet integrados em um dispositivo pequeno o suficiente para ser levado no bolso. Rory Cellan-Jones, jornalista britânico da área de tecnologia, estava naquela apresentação de Steve Jobs e saiu convencido de que o cofundador da Apple não havia exagerado. Ainda assim, admite que o iPhone abriu caminhos que não eram fáceis de se imaginar à época. Seu livro Always On: Hope and Fear in the Social Smartphone Era11. Cellan-Jones R. Always on: hope and fear in the social smartphone era. London: Bloomsbury Continuum; 2021. descreve alguns desses caminhos, elenca dilemas e possibilidades e discute formas pelas quais o uso em massa de smartphones se tornou onipresente na atualidade.
O lançamento da Apple foi sem dúvida um divisor de águas, mas uma série de eventos precisaram ser encadeados para que novas formas de organização social emergissem a partir do uso de smartphones. A world wide web lançada por Tim Berners-Lee em 1990 estava limitada a computadores fixados em residências ou escritórios, assim como o iPhone lançado por Steve Jobs em 2007 estava limitado a pacotes de dados de alto custo. A mobilidade e a popularização do acesso à Internet se mostraram pré-requisitos indispensáveis para as possibilidades que se abriram com o mercado de aplicativos para smartphones a partir de 2008. O autor nos guia pelos meandros da competição entre as empresas Apple (e sua App Store) e Google (com a Play Store) para mostrar como a disputa por espaço no mercado de serviços tecnológicos foi determinante para que os smartphones se tornassem mais do que dispositivos para comunicação e entretenimento.
A proliferação de aplicativos para smartphones permitiu que empresas dos mais variados ramos pudessem se comunicar pessoal e diretamente com clientes e usuários de seus serviços. Não foram apenas as redes sociais, com seus sistemas de alerta e recompensas sociais, que se tornaram mais presentes na vida de todos. Bancos, restaurantes, escolas e hospitais também passaram a enviar e receber mensagens com um nível de alcance inédito. É a partir desse ponto da narrativa que os avanços tecnológicos elencados por Cellan-Jones se cruzam com a saúde pública.
É inegável que os smartphones e seus aplicativos geraram benefícios para a saúde e o bem-estar das pessoas. Por meio deles foi possível reencontrar conhecidos que vivem distantes ou conhecer pessoas com gostos afinados aos nossos. O acesso à informação foi facilitado, como podemos perceber na atuação de cientistas e professores que usam as redes sociais para apresentar informações sobre suas áreas de atuação. A nova tecnologia também abriu caminho para a obtenção de renda: pequenos produtores e prestadores de serviços passaram a promover o próprio trabalho por meios antes desconhecidos.
Aos poucos, contudo, o otimismo com os smartphones foi sendo ofuscado por um lado mais sombrio que se descortinou. O primeiro dilema nasceu dos próprios hábitos de uso de um dispositivo que se tornou onipresente. Será que estamos todos nos tornando dependentes de (ou viciados em) smartphones? Cellan-Jones faz uma discussão sobre esse ponto, em especial sobre uso de smartphones entre crianças e adolescentes. Há controvérsias principalmente quanto ao conceito de “dependência” entre usuários de smartphones. Ainda assim, as evidências dos efeitos negativos sobre a saúde mental se acumulam. Jovens e adultos relatam sintomas de ansiedade e insônia ao se manterem demasiadamente conectados aos seus aparelhos 22. Ratan ZA, Parrish AM, Zaman SB, Alotaibi MS, Hosseinzadeh H. Smartphone addiction and associated health outcomes in adult populations: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2021; 18:12257., em grande parte por medo de serem excluídos da vida social (fear of missing out). Trabalhadores relatam um apagamento das fronteiras entre casa e trabalho, gerando sobrecarga, conflitos familiares e esgotamento 33. Mellner C. After-hours availability expectations, work-related smartphone use during leisure, and psychological detachment - the moderating of boundary-control. Int J Workplace Health Manag 2016; 9:146-61.. Os smartphones exploram nossa ansiedade, conclui Cellan-Jones.
Há outros problemas que o autor acertadamente elenca como parte do lado sombrio da nova tecnologia. A disseminação de notícias falsas, as fake news, ocasionou enormes desafios para os regimes democráticos. O caso da empresa Cambridge Analytica, que utilizou um método de segmentação baseada em dados para direcionar mensagens a eleitores estadunidenses em 2016, se destaca nesse ponto. Durante a apuração do ocorrido, ficou claro que houve violação de dados do Facebook, o que resultou em um direcionamento de propaganda política de forma pouco condizente com valores democráticos. Para além da interferência em eleições ao redor do mundo, incluindo as presidenciais no Brasil em 2018, o escândalo trouxe a reboque um outro dilema: o problema da privacidade das informações pessoais compartilhadas nas redes sociais. Como nossos dados estariam sendo protegidos e gerenciados pelas grandes empresas de tecnologia? A busca por respostas fez aumentar a desconfiança dos usuários em geral. Um exemplo relatado pelo autor: em 2020, o New York Times revelou que a empresa ClearView havia obtido bilhões de fotos de redes sociais, sem aviso prévio ou autorização dos usuários, para criar um aplicativo de reconhecimento facial usado por forças policiais para identificar suspeitos de delitos.
Os capítulos finais propõem uma discussão interessante sobre o papel da tecnologia durante a pandemia da COVID-19. Cellan-Jones mostra que a crise sanitária foi especialmente valiosa para demonstrar os lados positivo e negativo dos smartphones e seus múltiplos aplicativos. Entre os aspectos destacados como positivos, vale elencar a possibilidade de se manter contato com pessoas apesar do distanciamento, realizar atividades de estudo, gerenciar formas de assistência à saúde - para os indivíduos, alguns aplicativos possibilitaram o monitoramento da própria saúde; para a sociedade, outros tantos permitiram o monitoramento de casos da doença. Entre os elementos considerados negativos, destacaram-se a disseminação de notícias falsas sobre a doença e as vacinas, uso de medicamentos sem evidências sobre sua eficácia, entre outras fakes news que colocaram em risco a vida ou contribuíram para a morte de pessoas. A magnitude do problema gerou a necessidade de um esforço de agências de saúde no combate ao que a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou ser uma epidemia de notícias falsas ou “infodemia” 44. García-Saisó S, Marti M, Brooks I, Curioso WH, González D, Malek V, et al. The COVID-19 infodemic. Rev Panam Salud Pública 2021; 45:e56..
A obra aqui resenhada é instigante para todos nós que atuamos na saúde pública. A experiência do autor como jornalista permite uma visão ampla sobre a evolução da tecnologia em torno dos smartphones ao longo das últimas duas décadas. Além dos pontos explicitados, o autor traz informações sobre o mercado de criptomoedas e sobre a (ainda incipiente) inteligência artificial. A relação entre tecnologia, vida em sociedade e saúde é bem explorada ao longo dos capítulos do livro, com especial atenção ao período da pandemia da COVID-19. Apesar da luz que lança sobre as possibilidades da relação entre política, saúde pública e tecnologia, vale ressaltar algumas limitações. O tema da desigualdade, incluindo o acesso à tecnologia, não foi devidamente discutido. Os smartphones podem ser ferramentas úteis para estudo, trabalho e saúde, mas podem também aprofundar desigualdades. Um exemplo brasileiro: o ensino remoto permitiu, ainda que com limitações, uma continuidade dos estudos para crianças de famílias mais abastadas; crianças de baixa renda, entretanto, deixaram de ter acesso a qualquer forma de ensino, quando não abandonaram de vez os estudos 55. Magalhães RCS. Pandemia de COVID-19, ensino remoto e a potencialização das desigualdades educacionais. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2021; 28:1263-7..
Em conclusão, Always On: Hope and Fear in the Social Smartphone Era descreve os caminhos pelos quais os smartphones nos levaram a novas formas de comunicação e organização social. Nesse caminho, precisamos avançar seus ganhos e encontrar soluções coletivas para seus dilemas aqui elencados. A lição mais importante, que Cellan-Jones mostra ao narrar as tentativas de enfrentar a pandemia usando smartphones, parece ser a recusa em confiar demais na tecnologia para solução de problemas sociais. Ferramentas sempre precisam ser usadas dentro de um contexto maior de organização política, condições socioeconômicas e saúde das populações. Fazer saúde pública com smartphones será um caminho inevitável nos anos vindouros, repleto de dilemas e possibilidades com os quais precisaremos trabalhar.
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- 1Cellan-Jones R. Always on: hope and fear in the social smartphone era. London: Bloomsbury Continuum; 2021.
- 2Ratan ZA, Parrish AM, Zaman SB, Alotaibi MS, Hosseinzadeh H. Smartphone addiction and associated health outcomes in adult populations: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2021; 18:12257.
- 3Mellner C. After-hours availability expectations, work-related smartphone use during leisure, and psychological detachment - the moderating of boundary-control. Int J Workplace Health Manag 2016; 9:146-61.
- 4García-Saisó S, Marti M, Brooks I, Curioso WH, González D, Malek V, et al. The COVID-19 infodemic. Rev Panam Salud Pública 2021; 45:e56.
- 5Magalhães RCS. Pandemia de COVID-19, ensino remoto e a potencialização das desigualdades educacionais. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2021; 28:1263-7.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Out 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
12 Set 2022 - Aceito
19 Set 2022