Resumos
A insegurança alimentar e seus determinantes se distribuem de forma desigual entre as macrorregiões brasileiras. O objetivo deste estudo foi investigar as intersecções de gênero e raça/cor da pessoa de referência na ocorrência de insegurança alimentar em domicílios nas diferentes regiões do Brasil. Foram utilizados os microdados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018, com amostra de 57.920 domicílios. Os níveis de insegurança alimentar foram considerados com análises em relação aos perfis criados a partir da intersecção do gênero (homem e mulher) e raça/cor: homem branco, mulher branca, homem pardo, mulher parda, homem preto e mulher preta. Razões de prevalência (RP) foram estimadas por meio de modelos de regressão de Poisson para investigar a associação dos perfis com a insegurança alimentar moderada/grave, estratificados por macrorregião. O Norte apresentou as piores proporções de todos os níveis de insegurança alimentar (57%), seguido do Nordeste (50,4%). As regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste apresentaram prevalência de insegurança alimentar moderada/grave até 5 vezes maior entre domicílios chefiados por mulheres comparados aos chefiados por homens (p < 0,001). A insegurança alimentar moderada/grave esteve mais associada aos domicílios chefiados pelas mulheres negras em todas as macrorregiões do Brasil, porém, no Sudeste, a RP foi mais elevada, quando comparada às demais regiões, para a mulher parda (RP = 1,16; IC95%: 1,13-1,20), enquanto na Região Sul a RP foi maior para a mulher preta (RP = 1,17; IC95%: 1,13-1,21). Os achados sugerem que o debate interseccional sobre os dados de insegurança alimentar no Brasil, considerando o gênero, a raça/cor da pele e a região de residência, deve ser somado ao tema das políticas voltadas para redução da insegurança alimentar e das iniquidades relacionadas.
Palavras-chave:
Interseccionalidade; Análise de Gênero; Raça; Segurança Alimentar e Nutricional
Food insecurity is distributed unequally throughout Brazilian regions. This study aims to investigate the intersections of gender and skin color/race in the cases of food insecurity in households across Brazil. Microdata from the 2018 Brazilian Household Budgets Survey (POF) were used, with a sample of 57,920 households. Food insecurity levels were compared to profiles created from the intersection of gender (man and woman) and skin color/race: white man, white woman, mixed-race man, mixed-race woman, black man, and black woman. Prevalence ratios (PR) were estimated using Poisson regression models to investigate the association of profiles with moderate/severe food insecurity, separated by macroregion. The North had the worst proportions of all food insecurity levels (57%), followed by Northeast (50.4%). The North, Northeast, and Central-West macroregions had prevalence of moderate/severe food insecurity up to five times higher among households headed by women compared to those headed by men (p < 0.001). Moderate/severe food insecurity was associated to households headed by black women in all macroregions of Brazil, but prevalence ratios in Southeast were higher compared to other regions for mixed-race women (PR = 1.16; 95%CI: 1.13-1.20), while the PR was higher in South for black women (PR = 1.17; 95%CI: 1.13-1.21). Outcomes suggest that the intersectional food insecurity data in Brazil - focused on gender, skin color/race and macroregion of residence - should be considered for policies aimed at reducing hunger and related issues.
Keywords:
Intersectionality; Gender Analysis; Race; Food and Nutrition Security
La inseguridad alimentaria y sus determinantes está distribuida desigualmente por las macrorregiones de Brasil. El objetivo de este estudio fue investigar las intersecciones de género y raza/color de piel de la persona de referencia en la ocurrencia de inseguridad alimentaria en hogares de diferentes regiones brasileñas. Se utilizaron microdatos de la Encuesta de Presupuestos Familiares (POF) de 2018 de una muestra de 57.920 hogares. Se consideraron los niveles de inseguridad alimentaria con relación a los perfiles creados desde la intersección de género (hombre y mujer) y raza/color de piel: hombre blanco, mujer blanca, hombre pardo, mujer parda, hombre negro y mujer negra. Las razones de prevalencia (RP) se estimaron por modelos de regresión de Poisson para evaluar la asociación de los perfiles con inseguridad alimentaria moderada/grave, estratificados por macrorregión. La Región Norte tuvo las peores proporciones en todos los niveles de inseguridad alimentaria (57%), seguida del Nordeste (50,4%). Las regiones Norte, Nordeste y Centro-oeste mostraron prevalencias moderada/grave de inseguridad alimentaria hasta 5 veces mayores entre los hogares con mujeres como jefas del hogar en comparación con los hogares liderados por hombres (p < 0,001). La inseguridad alimentaria moderada/grave se asoció más en los hogares donde las mujeres negras eran las jefas del hogar en todas las macrorregiones de Brasil, sin embargo, en el Sudeste la RP fue mayor en comparación con las demás regiones para las mujeres pardas (RP = 1,16; IC95%: 1,13-1,20), mientras que en la Región Sur la RP fue mayor para las mujeres negras (RP = 1,17; IC95%: 1,13-1,21). Los hallazgos sugieren que el debate interseccional sobre los datos de inseguridad alimentaria en Brasil, considerando el género, la raza/color de piel y la región de residencia, debe agregarse al tema de las políticas destinadas a reducir la inseguridad alimentaria y sus inequidades asociadas.
Palabras-clave:
Interseccionalidad; Análisis de Género; Raza; Seguridad Alimentaria y Nutricional
Introdução
Mundialmente, a prevalência de insegurança alimentar é maior em domicílios chefiados por mulheres e de minorias étnico-raciais 11. Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children’s Fund; World Food Programme; World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2021.. No Brasil, a chefia feminina se associa com mais da metade dos domicílios em insegurança alimentar grave, enquanto a raça/cor da pele preta ou parda do chefe dos domicílios representa 73,9% deles 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Categorias sociais como classe, raça e gênero têm sido documentadas como determinantes sociais da insegurança alimentar, porém as evidências vêm sendo apresentadas de forma unidimensional na literatura, e os dados sobre a intersecção entre eles ainda são escassos 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,33. Lignani JB, Palmeira PA, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:e200068..
O conceito de interseccionalidade pressupõe que múltiplas categorias sociais (como raça e gênero) interagem no nível das experiências individuais para refletir sistemas interconectados de privilégios e opressões no nível macrossocial (como racismo e sexismo, por exemplo) 44. Crenshaw K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum 1989; (1):139-67.,55. Bowleg L. The problem with the phrase women and minorities: intersectionality - an important theoretical framework for public health. Am J Public Health 2012; 102:1267-73.. Assim, determinantes sociais como renda, gênero e cor/raça - e a interação entre eles - podem influenciar a forma como a insegurança alimentar se mostra numa população 66. Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares. Interseccionalidades em alimentação e nutrição: desafios e conexões entre raça, classe, gênero e comida. Cadernos OBHA 2021; 1(3).. As diversas manifestações da insegurança alimentar representam a violação do direito humano à alimentação adequada, e esse direito não está assegurado de forma equitativa em nossa sociedade 66. Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares. Interseccionalidades em alimentação e nutrição: desafios e conexões entre raça, classe, gênero e comida. Cadernos OBHA 2021; 1(3).,77. Siliprandi EC. A Alimentação como um tema político das mulheres. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 187-98..
A distribuição desses determinantes no Brasil ocorre de forma desigual entre as macrorregiões, reflexo da desigualdade socioeconômica historicamente produzida 88. Monteiro Neto A. Desigualdades regionais no Brasil: características e tendências recentes. Boletim Regional, Urbano e Ambiental 2014; (9):67-81. que se reflete nas diferentes prevalências de insegurança alimentar. Domicílios das regiões Norte e Nordeste apresentam maiores proporções de insegurança alimentar moderada ou grave quando comparados às regiões Sul e Sudeste 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,99. Facchini LA, Nunes BP, Motta JVS, Tomasi E, Silva SM, Thumé E, et al. Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores associados e padrões de renda per capita para redução das iniquidades. Cad Saúde Pública 2014; 30:161-74.. Portanto, este estudo objetivou investigar as intersecções de gênero e raça/cor da pessoa de referência na ocorrência de insegurança alimentar em domicílios nas diferentes regiões do Brasil.
Métodos
Estudo transversal de base populacional realizado com os microdados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (junho de 2017 a julho de 2018). O IBGE adota o desenho de uma amostra mestra em um Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares (SIPD), que consiste em setores censitários como base nas unidades primárias de amostras 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020..
Considerando domicílios contendo apenas uma unidade de consumo (n = 57.920; 99,8%), foram criados quatro perfis com a intersecção do gênero com a raça/cor da pessoa de referência (ou chefe do domicílio), segundo definição do IBGE 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020., a partir das perguntas sobre sexo (homem e mulher) e raça/cor (branca, parda e preta) autorreferidas: homem branco, mulher branca, homem pardo, mulher parda, homem preto e mulher preta. Como a POF não avalia a população indígena e amarela sob a perspectiva de serem representativos do Brasil, os dados sobre essas populações não foram avaliados neste estudo.
A avaliação regional foi realizada considerando as cinco macrorregiões do Brasil (Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul). A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) foi utilizada na POF para classificar a situação dos domicílios em segurança alimentar ou níveis de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave) 1010. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.. Para esse estudo, foi realizado o agrupamento em duas categorias: (i) segurança alimentar/insegurança alimentar leve; e (ii) insegurança alimentar moderada/grave.
As prevalências dos perfis de gênero e raça/cor da pessoa de referência foram estimadas e estratificadas pelos níveis de insegurança alimentar comparando a significância pelo teste qui-quadrado (valor de p < 0,05). Razões de prevalência (RP) foram estimadas por meio de modelos de regressão de Poisson com variância robusta para investigar a associação dos perfis com a insegurança alimentar moderada/grave, estratificados por macrorregião. As covariáveis foram selecionadas com base nos fatores sociodemográficos observados na literatura relacionados com os níveis de insegurança alimentar 33. Lignani JB, Palmeira PA, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:e200068.,1010. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99. e utilizadas como variáveis de ajuste nos modelos de regressão: idade, estado civil e grau de escolaridade da pessoa de referência, localização (rural ou urbana), números de moradores, presença de crianças menores de 10 anos e renda per capita familiar do domicílio.
A análise estatística foi realizada considerando o desenho amostral complexo e nível de 95% de confiança (IC95%), utilizando o software Stata, versão 16.1 (https://www.stata.com).
Resultados
Ao contrário do Sul e Sudeste, as regiões Norte e Nordeste apresentaram as maiores proporções dos chefes de domicílio de raça/cor autodeclarada preta e parda (11,9% e 14,4% pretos e 68,9% e 61,1% pardos, respectivamente), além de maiores prevalências de insegurança alimentar (57% e 50,4%), especialmente moderada/grave (25,2% e 20,6%). Também foram observadas maiores prevalências dos indicadores sociais associados a insegurança alimentar, como baixa escolaridade dos chefes do domicílio, maior proporção de domicílios com presença de crianças e menor terço de renda (Tabela 1).
Em todas as regiões, a proporção de domicílios chefiados por pessoas negras (incluindo pretas e pardas 1111. Petruccelli JL, Saboia AL. Características étnico-raciais: classificação e identidades. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2013.) em situação de insegurança alimentar moderada/grave foi maior quando comparado aos chefes do domicílio que se autodeclararam de cor branca, independentemente do gênero. Do mesmo modo, a prevalência de insegurança alimentar moderada/grave é sempre maior nos domicílios chefiados pelas mulheres quando comparado àqueles chefiados por homens de mesma raça/cor. Os domicílios chefiados por mulheres negras foram aqueles com maiores proporções de insegurança alimentar moderada/grave entre todos os perfis e em todas as regiões, sendo as mulheres pretas ainda mais vulneráveis quando comparadas às pardas (Figura 1).
Prevalência de insegurança alimentar moderada/grave segundo características de sexo e raça/cor do chefe do domicílio por macrorregião. Pesquisa de Orçamentos Familiares, Brasil, 2017-2018.
Comparadas aos demais perfis, a chefia feminina negra foi mais associada à insegurança alimentar moderada/grave domiciliar em todas as macrorregiões, mesmo após o ajuste pela área do domicílio, presença de crianças menores de 10 anos, número de moradores e renda familiar per capita. Porém, no Sudeste, a RP foi mais elevada quando comparadas às demais regiões para a mulher parda (RP = 1,16; IC95%: 1,13-1,20), enquanto na Região Sul a RP foi maior para a mulher preta (RP = 1,17; IC95%: 1,13-1,21) (Tabela 2).
Discussão
Os domicílios chefiados pelas mulheres pretas e pardas foram mais associados à insegurança alimentar moderada/grave nos domicílios das regiões Sul e Sudeste, respectivamente. Assim, essas regiões, conhecidas pelo maior desenvolvimento industrial e melhor índice de desenvolvimento humano (IDH) 88. Monteiro Neto A. Desigualdades regionais no Brasil: características e tendências recentes. Boletim Regional, Urbano e Ambiental 2014; (9):67-81., são também os locais em que as mulheres negras chefes do domicílio são mais vulneráveis aos níveis mais severos de insegurança alimentar. Esse cenário pode ser um dos reflexos das desigualdades de gênero e raça estruturais presentes no Brasil.
A condição de mulher na sociedade impõe diversas restrições sociais, no sentido de confiná-la ao lar e anular o seu reconhecimento ou exercício nos campos político, econômico, cultural, entre outros 1212. Hirata H. Por quem os sinos dobram? Globalização e divisão sexual do trabalho. In: Emílio M, Teixeira M, Nobre M, Godinho T, organizadoras. Trabalho e cidadania ativa para as mulheres: desafios para as políticas públicas. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher; 2003. p. 15-30.. Essas restrições se manifestam nos menores salários, na responsabilidade pelos cuidados com o lar e a família atribuídas a elas - atividades não remuneradas que levam a redução do tempo disponível para empregos formais, educação e melhores oportunidades de trabalho e lazer, impactando na saúde e alimentação das mulheres 77. Siliprandi EC. A Alimentação como um tema político das mulheres. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 187-98.,1212. Hirata H. Por quem os sinos dobram? Globalização e divisão sexual do trabalho. In: Emílio M, Teixeira M, Nobre M, Godinho T, organizadoras. Trabalho e cidadania ativa para as mulheres: desafios para as políticas públicas. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher; 2003. p. 15-30..
Para as mulheres negras, o cenário é mais restrito, pois elas vivenciam a intersecção entre o sexismo e o racismo, ambos regimes de opressão, hierarquização e exclusão social e política que estão alicerçados no colonialismo ao longo de muitos séculos 44. Crenshaw K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum 1989; (1):139-67.,1313. Heringer R. Desigualdades raciais no Brasil: síntese de indicadores e desafios no campo das políticas públicas. Cad Saúde Pública 2002; 18 Suppl:57-65.. Segundo Lélia Gonzalez 1414. Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio Janeiro: Zahar; 2020. (p. 76), a articulação do racismo com o sexismo “produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”, de forma que o grupo de mulheres não pode ser avaliado como homogêneo 66. Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares. Interseccionalidades em alimentação e nutrição: desafios e conexões entre raça, classe, gênero e comida. Cadernos OBHA 2021; 1(3).. No Brasil, essa realidade se reflete em menor renda e maiores taxas de trabalho informal quando comparada aos outros perfis de gênero e raça 1515. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Brasil - inserção das mulheres no mercado de trabalho. https://www.dieese.org.br/infografico/2022/mulheresBrasileRegioes.pdf (acessado em 12/Mar/2022).
https://www.dieese.org.br/infografico/20... , acentuando as desigualdades em acesso à saúde e nutrição.
O papel da renda na mediação entre os indicadores sociais e a insegurança alimentar 33. Lignani JB, Palmeira PA, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:e200068. pode estar associado às maiores prevalências de insegurança alimentar moderada/grave observadas nas regiões Norte e Nordeste. No entanto, ela não é a única determinante da insegurança alimentar no Brasil, especialmente para a população negra. Fatores ligados à classe social, como a rotina de deslocamento entre os locais de trabalho e moradia, a dupla (ou tripla) jornada de trabalho e as escassas opções de comércio que disponibilizam alimentos saudáveis na área de moradia dessas mulheres também contribuem para a situação de insegurança alimentar nos domicílios chefiados por elas 66. Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares. Interseccionalidades em alimentação e nutrição: desafios e conexões entre raça, classe, gênero e comida. Cadernos OBHA 2021; 1(3).,77. Siliprandi EC. A Alimentação como um tema político das mulheres. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 187-98..
Embora sejam normalmente responsáveis pelo preparo das refeições, meninas e mulheres tendem a não ter prioridade para se alimentar dentro do domicílio 1616. Christensen MA. Feminization of poverty: causes and implications. In: Leal Filho W, Azul A, Brandli L, Özuyar P, Wall T, editores. Gender equality. Encyclopedia of the UN Sustainable Development Goals. Cham: Springer; 2019. p. 368-77.. Esse contexto contribui para a redução da autonomia feminina nas escolhas alimentares, tanto individual quanto coletivamente, e em um mesmo domicílio, comprometendo o seu direito humano à alimentação adequada 66. Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares. Interseccionalidades em alimentação e nutrição: desafios e conexões entre raça, classe, gênero e comida. Cadernos OBHA 2021; 1(3)..
A maior vulnerabilidade das mulheres negras nas regiões Sudeste e Sul pode estar associada à relação existente entre as desigualdades regionais e as raciais 1717. Batista JRM, Leite EL, Torres ARR, Camino L. Negros e nordestinos: similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Rev Psicol Polít 2014; 14:325-45.. Nessas regiões, a maior proporção da população se autodeclara branca, enquanto nas regiões Norte e Nordeste há maior concentração da população afro-brasileira e indígena 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Adicionalmente, nordestinos e negros compartilham experiências sociais similares, como a desvantagem econômica e os estereótipos atribuídos a ambos (maior resistência física e menor aptidão cognitiva, por exemplo) 1717. Batista JRM, Leite EL, Torres ARR, Camino L. Negros e nordestinos: similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Rev Psicol Polít 2014; 14:325-45., que podem contribuir para a compreensão dessas disparidades.
Cabe ressaltar, ainda, que há uma hierarquização dentro da categoria “mulher negra”, em que a vulnerabilidade social é intensificada conforme aumenta o gradiente da cor da pele 1818. Devulsky A. Colorismo. São Paulo: Jandaíra; 2021.. Assim, quanto mais escura a cor da pele, maior o risco de insegurança alimentar e o impacto negativo na alimentação delas. Todo esse contexto reitera como a raça/cor é um constructo social e multidimensional que contribui para a produção e perpetuação das desigualdades sociais no Brasil 1919. Bailey SR, Loveman M, Muniz JO. Measures of “race” and the analysis of racial inequality in Brazil. Soc Sci Res 2013; 42:106-19..
Embora o uso de dados nacionais representativos e a análise interseccional em insegurança alimentar representem pontos fortes deste estudo, é importante mencionar que a avaliação da interseccionalidade enquanto constructo não foi realizada em toda a sua complexidade pelo objetivo do breve retrato das desigualdades de gênero e raça em insegurança alimentar, por região, deste estudo. Outra limitação inclui a perspectiva da análise de gênero neste trabalho, pelo uso da variável “sexo” adotada nas pesquisas do IBGE, que é coletada com apenas duas opções de resposta (masculino e feminino). Isso se coloca pelo fato de não considerar a diversidade de identidade de gênero nas análises de estudos sobre as desigualdades sociais que são captadas pela insegurança alimentar. Além disso, o IBGE não trata na POF a representatividade amostral de outras minorias étnicas, como os indígenas e amarelos.
Considerando que esses dados se referem ao período pré-pandemia, eles evidenciam como a análise interseccional se relaciona com o recorte regional no âmbito da insegurança alimentar, expondo as desigualdades socioeconômicas da sociedade brasileira e como elas se interrelacionam entre si, potencializando a vulnerabilidade da mulher preta e parda à insegurança alimentar, principalmente nas regiões economicamente mais desenvolvidas. Assim, nossos achados se mostram como importantes indicadores para o desenvolvimento de políticas públicas específicas às populações mais vulneráveis, contribuindo para a redução dos agravos da insegurança alimentar no país.
Agradecimentos
Agradecemos à Maria Letícia Santos e Letícia Souza pelas contribuições na pesquisa bibliográfica deste artigo. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
27 Jul 2022 - Revisado
07 Nov 2022 - Aceito
10 Nov 2022