Cinquenta anos das Conferências Ambientais da Organização das Nações Unidas: qual é o legado para as condições de saúde humana?

50 años de las Conferencias Ambientales de las Naciones Unidas: ¿cuál es el legado en las condiciones de salud humana?

Leandro Dias de Oliveira Sobre o autor

Há 50 anos, em 1972, ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, Suécia. Essa conferência inaugurou o conjunto de conferências mundiais sobre a questão ambiental, que posteriormente ocorreriam na cidade do Rio de Janeiro, Brasil (1992), em Joanesburgo, África do Sul (Rio+10, 2002), e novamente no Rio de Janeiro (Rio+20, 2012). Portanto, comemoramos neste ano o jubileu das conferências ambientais, e certamente é possível fazer diversos balanços sobre seus desafios e legados 11. Oliveira LD. 2022 e o jubileu das grandes conferências ambientais. Le Monde Diplomatique Brasil 2022; 24 jun. https://diplomatique.org.br/2022-e-o-jubileu-das-grandes-conferencias-ambientais/.
https://diplomatique.org.br/2022-e-o-jub...
.

Também em 2012 fez 60 anos da publicação de Primavera Silenciosa22. Carson R. Silent spring. Boston: Houghton Mifflin; 1962., de Rachel Carson, uma pioneira crítica ao uso de pesticidas agrícolas, e meio século de Limites do Crescimento33. Meadows DH, Meadows DL, Randers J, Behrens III WW. The limits to growth. Falls Church: Potomac Associates; 1972., produto do trabalho de uma equipe de cientistas do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT; Estados Unidos) sobre os problemas do modelo de desenvolvimento global. Ambos os livros foram fulcrais para a problemática ecológica e permanecem fundamentais em meio ao desenvolvimento ambientalmente avassalador e insensível à destruição das riquezas naturais. O ano de 2022 é, por diferentes motivos, simbólico para a questão ambiental contemporânea.

Não há dúvidas que neste meio século a questão ambiental deixou de ser assunto alternativo para se tornar tema central e orgânico no xadrez geopolítico e geoeconômico internacional. Se na Suécia ocorreu uma conferência mais modesta, no Brasil, tanto em 1992 quanto em 2012, tivemos grandes conferências que reuniram os principais chefes de Estado e de Governo do mundo. A gigantesca participação da sociedade civil foi evidenciada pelas atividades das organizações não governamentais (ONGs) e da população em geral no centro da cidade do Rio de Janeiro, tanto na Rio 92 quanto na Rio+20, ainda que apartadas dos diplomatas reunidos a cerca de 40km dali.

É possível relacionar simbolicamente o nascituro da questão ambiental contemporânea com a eclosão das bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, ao final da Segunda Guerra Mundial, quando se estima que mais de 100 mil vidas foram ceifadas diretamente pelos efeitos da detonação. Em estudo recente 44. Sobreviventes de bombas atômicas no Japão ainda sofrem com câncer, 70 anos depois. O Globo 2015; 6 jun. https://oglobo.globo.com/saude/sobreviventes-de-bombas-atomicas-no-japao-ainda-sofrem-com-cancer-70-anos-depois-17101763.
https://oglobo.globo.com/saude/sobrevive...
, a Cruz Vermelha demonstrou que grande parte dos sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima ainda sofre com os seus efeitos e ao menos 63% dos que testemunharam sua eclosão faleceram vítimas de câncer até 2014. Não é mais possível separar política e ecologia, gerações presente e futura, meio ambiente e saúde e bem-estar humano.

Outros fatos importantes também fomentaram o debate ambiental pós-Segunda Guerra: os vazamentos de substâncias radioativas em usinas nucleares, como em Kyshtym (Rússia, 1957), Windscale (Reino Unido, 1957) e Three Mile Island (Estados Unidos, 1979); as intoxicações por mercúrio oriundo de dejetos industriais, atingindo centenas de pessoas em Minamata (Japão, 1956); o adoecimento de estadunidenses pela exposição ao chumbo presente em tintas, entre outros produtos, somente regulado no país em 1972; a ocorrência de ondas de calor, como a registrada em agosto de 1965 na Península Ibérica - em Sevilha (Espanha), a temperatura ultrapassou 45ºC -, promovendo debates sobre as implicações das ações antrópicas no clima global.

Poluição em suas diversas formas, crescimento econômico desmesurado, devastação florestal, mudanças climáticas, perda de biodiversidade são todas questões socioambientais que se relacionam diretamente com política, economia, saúde e bem-estar humano. São os operários que sofrem diretamente com a poluição atmosférica industrial e desenvolvem problemas respiratórios; são as populações tradicionais, indígenas e quilombolas que sentem de forma imediata as implicações da devastação florestal e da perda da biodiversidade. O crescimento econômico desmesurado, segregador e beligerante aflige especialmente os mais pobres, que lutam pela sobrevivência em meio à pujança tecnológica e enriquecimento de poucos.

Assim, muitas foram as vitórias da primeira conferência - da criação do Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA) à Declaração de Estocolmo, com 26 princípios político-ambientais -, mas ainda insuficientes para combinar economia e ecologia. Todavia, ao contrário de Estocolmo, sem uma ideia agregadora e linhas de ação claras após o evento, a Rio 92 constituiu um documento central que propugnava um roteiro para todos os países do mundo: a Agenda 2155. Senado Federal. Agenda 21. Brasília: Senado Federal; 1996., uma bula global para um século com base no desenvolvimento sustentável, receituário que combinava crescimento econômico e proteção ambiental.

Em meio à Guerra Fria e às pressões do então Terceiro Mundo, houve em Estocolmo grande resistência a sugestões de diminuição do crescimento, especialmente dos países que almejavam desenvolvimento econômico. O documento da Organização das Nações Unidas (ONU), Nosso Futuro Comum (1997), ainda que priorizasse a satisfação das necessidades das gerações atual e futura 66. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Editora FGV; 1988., resolveu essa equação com a proposição de uma espécie de neoliberalismo ambiental 77. Oliveira LD. Geopolítica ambiental: a construção ideológica do desenvolvimento sustentável (1945-1992). Rio de Janeiro: Autografia; 2019., replicado na Agenda 21, baseado no avanço das tecnologias limpas, no livre comércio e no protagonismo das grandes corporações. Isso não somente inibiu a atuação incisiva dos Estados Nacionais, como também tornou a proteção ambiental um verdadeiro negócio, com foco em uma sustentabilidade corporativa.

Além disso, há diversos entraves para uma política internacional de meio ambiente, desde a fragilidade e maleabilidade dos acordos e metas globais até as diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais entre os países do mundo. A agenda ambiental é, por sua natureza, antagônica à plena soberania das nações, pois a atmosfera, os oceanos, as florestas e os cursos hídricos não necessariamente obedecem às linhas dos mapas políticos 88. Le Prestre P. Écopolitique internationale. Québec: Guérin; 1997.,99. Nogué J, Rufí JV. Geopolítica, identidad y globalización. Barcelona: Ariel; 2001..

Assim, a Agenda 21 é o documento central sobre o qual podemos realizar uma breve análise crítica, pois estabelece políticas, planos de ação, estratégias e mecanismos de implementação globais. Em seus 40 capítulos, assegura a necessidade de abertura de mercados e acrescenta o termo sustentável na agricultura, dinâmica demográfica, assentamentos humanos, produção industrial, ciência, educação, infância, juventude, ação de mulheres, tratamento de resíduos e rejeitos, entre tantos outros. O capítulo seis é intitulado Proteção e Promoção das Condições da Saúde Humana e reforça, desde a introdução, que “os tópicos de ação da Agenda 21 devem estar voltados para as necessidades de atendimento primário da saúde da população mundial, visto que são parte integrante da concretização dos objetivos do desenvolvimento sustentável e da conservação primária do meio ambiente”.

O capítulo apresenta um programa que indica a satisfação das necessidades de atendimento primário da saúde (especialmente nas zonas rurais), o controle das doenças infecciosas, a proteção dos grupos vulneráveis, o desafio da saúde urbana e a redução dos riscos para a saúde decorrentes da poluição e dos perigos ambientais como prioridades. Entre as diversas promessas, podemos destacar “a estratégia geral de obter saúde para todos até o ano 2000”, em que os objetivos eram “satisfazer as necessidades sanitárias básicas das populações rurais, periferias urbanas e urbanas” e “proporcionar os serviços especializados necessários de saúde ambiental”.

Por óbvio, um programa ambicioso tende a não ser completado plenamente. Todavia, a pandemia de COVID-19 revelou a debilidade e a insuficiência das condições dos serviços de saúde em todo mundo, especialmente nas nações periféricas. Importante relembrar a importante indagação do geógrafo Mike Davis 1010. Davis M. O monstro bate a nossa porta: a ameaça global da gripe aviária. Rio de Janeiro: Record; 2006.: como reagiriam as cidades quase indefesas do Terceiro Mundo a uma pandemia? Muito mal, eis a resposta. Com populações adensadas, em grande parte com precárias condições de vida, instalações e equipamentos de saúde insuficientes em seu território e dificuldades de promover distanciamento social, as cidades das periferias do mundo sofreram profundamente os impactos da COVID-19. Afinal, metade da população do mundo não tem acesso a serviços essenciais de saúde, segundo a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Banco Mundial 1111. Metade da população mundial não tem acesso a serviços essenciais de saúde, dizem OMS e Banco Mundial. G1 2017; 13 dez. https://g1.globo.com/bemestar/noticia/metade-da-populacao-mundial-nao-tem-acesso-a-servicos-essenciais-de-saude-diz-oms-e-banco-mundial.ghtml.
https://g1.globo.com/bemestar/noticia/me...
.

Em 2012, foi realizada a Rio+20 com a intenção de fazer um balanço de 20 anos de realização da Rio 92. Sua realização foi logo após uma grave crise econômica, iniciada nos Estados Unidos em razão da explosão da bolha dos créditos hipotecários de risco que gerou uma avalanche global de quebras empresariais. Em uma atmosfera de crise, seria estranho se, após algumas décadas, permanecesse intacta a esperança de que uma reunião de presidentes e corpos diplomáticos de quase todos os países do mundo, muito mais focados em finanças e nos próprios interesses, fosse capaz de alterar os rumos do planeta. O descrédito perante a inoperância, inépcia e desinteresse dos “senhores do mundo” acerca de pactuações verdadeiras para a melhoria socioambiental do planeta era patente. Ao mesmo tempo, a elasticidade temporal, a maleabilidade de método, a pouca ambição dos resultados e a discrepância entre as realidades dos países do mundo - na Alemanha, fala-se em frota de transporte coletivo integralmente elétrico até 2030; na Índia, estima-se que 750 milhões de pessoas não têm acesso a banheiros ou rede de esgoto - também pesavam negativamente no fomento à esperança de um mundo melhor.

Contudo, a Rio+20 também foi responsável por um passo além, mas dado em falso: o uso do termo “Economia Verde”, uma formulação incapaz de apresentar uma alternativa séria, genuína e sincera às mazelas do desenvolvimento segregador e avassalador. Economia Verde significava o desfraldar da leitura econômica do desenvolvimento sustentável, propondo um ajustamento superficial, em forma de uma demão de tinta, do modelo vigente. É o greenwashing de empresas, Estados e demais organizações; é a certeza de que os cuidados ambientais são epidérmicos e não desejam, in factum, promover uma verdadeira mudança nas condições ecológicas do mundo.

Com 48 citações, o termo “saúde” aparece de forma recorrente no documento central da Rio+20, O Futuro que Queremos1212. Declaração Final da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável Rio+20. https://riomais20sc.ufsc.br/files/2012/07/CNUDS-vers%C3%A3o-portugu%C3%AAs-COMIT%C3%8A-Pronto1.pdf (acessado em Jul/2022).
https://riomais20sc.ufsc.br/files/2012/0...
: reconhece-se ali o fato de que “um em cada cinco habitantes do planeta, ou seja, mais de um bilhão de pessoas, ainda viva em condições de extrema pobreza, e que um em cada sete - 14% da população mundial - seja subnutrido, e que problemas de saúde pública, incluindo as pandemias e epidemias continuem sendo ameaças onipresentes”. São 48 citações de reconhecimento do pouco que foi feito, dos desafios crescentes e de apelo a “abordagens holísticas e integradas”, “acesso ao crédito e a outros serviços de financiamento, aos mercados” e “fornecimento de cobertura universal equitativa”. Importantes compromissos, mas com meios de implementação, prazos e formas de financiamento ainda em aberto.

Três anos após a Rio+20, ocorreu a Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, na sede da ONU em Nova York (Estados Unidos), onde oficialmente foi aprovada a nova agenda intitulada Transformando Nosso Mundo: a Agenda de 2030 para o Desenvolvimento Sustentável1313. United Nations General Assembly. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. https://undocs.org/en/A/RES/70/1 (acessado em Jul/2022).
https://undocs.org/en/A/RES/70/1...
, que incluía os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 1414. United Nations. The Millennium Development Goals Report, 2015. https://www.un.org/millenniumgoals/2015_MDG_Report/pdf/MDG%202015%20rev%20(July%201).pdf (acessado em Jul/2022).
https://www.un.org/millenniumgoals/2015_...
. A Agenda 2030 é um plano de ação que altera a temporalidade de um século para apenas 15 anos, mas que novamente parece pensado, escrito, publicado e referendado apenas pelas nações economicamente mais poderosas. As agendas ambientais, com prazos, proposições e medidas cada vez mais flexíveis e suaves, se mostraram gradativamente inócuas e despertaram a indiferença de grande parte dos países do mundo.

O Objetivo 3, Assegurar uma Vida Saudável e Promover o Bem-estar para Todas e Todos, em Todas as Idades, é um conjunto de proposições irretocáveis: “até 2030, reduzir a taxa de mortalidade materna global para menos de 70 mortes por 100.000 nascidos vivos”; “até 2030, acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis”; “até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar”; “até 2030, reduzir pela metade as mortes e os ferimentos globais por acidentes em estradas”; “até 2030, assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva”; “atingir a cobertura universal de saúde” são exemplos de ações que seguramente transformariam a vida dos habitantes do planeta. Todavia, não há uma só pessoa que acredite que até 2030 qualquer uma das ações acima destacadas serão efetivamente concretizadas.

O relatório Moldando a Década Covid: Abordando os Impactos Sociais de Longo Prazo da COVID-191515. The British Academy. Shaping the Covid decade: addressing the long-term societal impacts of COVID-19. https://www.thebritishacademy.ac.uk/documents/3239/Shaping-COVID-decade-addressing-long-term-societal-impacts-COVID-19.pdf (acessado em Jul/2022).
https://www.thebritishacademy.ac.uk/docu...
reforça que as pandemias são sociais e econômicas; que as dimensões temporais e espaciais de nossa resposta têm papel significativo no combate aos efeitos da doença; que relacionamentos, vidas, meios de subsistência e suas interconexões são fundamentais na superação da pandemia. A pandemia de COVID-19 revelou não somente como a difusão de agentes infecciosos como o coronavírus é fruto de um modelo de vida ambientalmente violento e inconsequente, mas também a fragilidade das estruturas econômicas, sociais, políticas, ambientais e de saúde pública sobre as quais a nossa civilização está alicerçada. Há muito trabalho a ser feito, sem tempo para maiores celebrações.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ-2).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2022
  • Revisado
    18 Nov 2022
  • Aceito
    23 Nov 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br