Vidas desiguais

Uneven lives

Vidas desiguales

Leonardo do Amaral Pedrete Sobre o autor
2020

Sociólogo, antropólogo, médico titular da cadeira de saúde do Collège de France (Paris, França) e responsável por trabalhos de campo em três continentes, Didier Fassin tem se dedicado à questão da produção social de biodesigualdades, em especial: “como as desigualdades sociais revelam hierarquias morais na avaliação das vidas humanas?”. Para explicar a intenção de sua aula inaugural no Collège de France, em 2020, publicada na forma de livro, Fassin 11. Fassin D. De l’inégalité des vies. Paris: Fayard/Collège de France; 2020. se remete ao clássico Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdades entre os Homens, do compatriota Jean-Jacques Rousseau 22. Rousseau JJ. Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens. Porto Alegre: L± 2008.. Com a óbvia ressalva do abandono de anacronismos rousseaunianos, o autor se debruça sobre origens e panoramas contemporâneos da noção de desigualdades sociais em saúde.

De suas raízes genealógicas no enfraquecimento do determinismo universalista e naturalista diante da ascensão da estatística social, surge a ideia de que o estado físico e psicológico, bem como o risco de adoecer e a probabilidade de morrer, é influenciado pelo lugar e ambiente em que se encontra o indivíduo. Fassin mostra como, desde meados do século XIX, ao menos na França, a relação entre expectativa de vida média e circunstâncias sociais é estabelecida a partir de estudos empíricos que, ao evidenciarem desigualdades sociais injustas verificáveis estatisticamente, problematizam concepções de que fenômenos como percentuais de óbitos obedecem a fenômenos naturais ou aleatórios. A conclusão de que o corpo, a saúde e os índices de mortalidade dos pobres tendem a ser mais precários em relação a pessoas com mais acesso a tratamentos se insere em um contexto de emergência da questão social em consequência da Revolução Industrial e da pauperização.

O aumento das desigualdades diante da vida e a descoberta das disparidades diante da morte, portanto, coincidem, em favor do reconhecimento das consequências das desigualdades sociais sobre a duração e qualidade de vida. Trata-se de um ponto central do que Michel Foucault 33. Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008. denominou de nascimento da biopolítica, em uma encruzilhada histórica que lança as bases da saúde pública. Embora reconheça a influência inegável das contribuições foucaultianas para sua análise, Didier Fassin contrapõe evidências empíricas à análise histórica de Foucault e destaca que o filósofo francês ignora a questão das desigualdades da vida em toda a sua obra, em nome da recusa a posições normativas.

Fassin chama atenção para uma perspectiva ética de valoração das vidas em contraposição à perspectiva econômica. De um lado, análises econômicas atribuem valor relativo às vidas, como em situações nas quais juízes precisam determinar o montante de indenização de danos a famílias de pessoas vítimas de atentados terroristas. De outro, várias religiões e filosofias atribuem valor absoluto à vida, muito embora episódios históricos como as Cruzadas e os genocídios de povos ameríndios e africanos mostrem a negação prática de tal defesa.

No campo da saúde, as tensões entre clínica médica individual e saúde pública explicitam as diferenças entre valor relativo e valor absoluto da vida, na medida em que manter ou salvar vidas é lógica que frequentemente se choca com a obrigação de fazer escolhas entre estratégias baseadas em relações custo-benefício. Ao exemplificar a distância entre as duas lógicas, Fassin traz achados etnográficos no contexto da epidemia de aids na África dos anos 2000, na qual, em nome de alternativas menos caras e mais eficazes, tais como educação e prevenção com preservativos, especialistas em saúde divergiram de médicos assistentes que apoiavam o uso de novos retrovirais.

Por outro lado, o antropólogo francês assinala que as ideias de importância que a sociedade atribui à vida humana ou de juízo de valor sobre a vida humana (evocando Georges Canguilhem 44. Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2011.) são insuficientes para explicar fenômenos como décadas de diferença na expectativa de vida entre países centrais e periféricos, ou mesmo as desigualdades em saúde no interior de uma mesma região. Com efeito, dados comparativos da Organização Mundial da Saúde (OMS) 55. World Health Organization. Life expectancy and healthy life expectancy. Data by country. http://apps.who.int/gho/data/node.main.688?lang=en (acessado em 20/Ago/2022).
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atestam o fato de que as desigualdades na expectativa de vida não são consequência direta de gastos em saúde ou da qualidade de um sistema de saúde, mas do acúmulo de desigualdades sociais: donos do gasto em saúde, por habitante, mais alto do planeta, os Estados Unidos detêm apenas a 34ª maior média de expectativa de vida e estatísticas que revelam que renda, escolaridade e raça estão intimamente associadas às desigualdades na expectativa de vida.

Ainda que tenha (um tanto paradoxalmente) apoiado mais da metade de seu texto sobre as desigualdades em saúde em dados quantitativos sobre a expectativa de vida, Didier Fassin finalmente constata o caráter vago e insuficiente dessa categoria. Afinal, ela é apenas uma medida abstrata resultante da soma da probabilidade de morrer em diferentes idades. Por si só, as estatísticas sobre expectativa de vida não esclarecem questões ligadas à qualidade de vida, como condições de trabalho, discriminação salarial, violência doméstica, assédio sexual e saúde reprodutiva.

Retomando o pensamento de Hannah Arendt 66. Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009., para quem, mais do que acontecimentos naturais, nascimento e morte estão ligados a histórias de vida repletas de singularidades, Fassin distingue vida biológica e vida biográfica. Ao mesmo tempo, argumenta que a desigualdade de vidas só pode ser apreendida no reconhecimento da distinção e das conexões entre vida biológica (cuja extensão é medida pela categoria “expectativa de vida”) e vida biográfica (cuja riqueza é relatada pelas histórias de vida).

É precisamente nesse ponto que Fassin ilumina as possíveis contribuições singulares da Antropologia para a compreensão das desigualdades em saúde e desigualdade de vidas: a passagem da pergunta “quantos anos podemos esperar viver?” para a questão “o que podemos esperar da vida?”. Mais do que as disparidades quantitativas relacionadas à duração e longevidade da vida, Fassin trata das disparidades entre vidas e o que as pessoas podem esperar delas.

Assim, Fassin lança um olhar sobre as desigualdades entre as vidas, sobre sua qualidade e dignidade. Trata do ponto de vista de vidas cuja qualidade é negada ou tratada com indiferença, como ao mencionar imigrantes explorados, refugiados náufragos ou prisioneiros negros em regime de isolamento, e não da simples duração da vida ou mesmo mortalidade. “Além dos mortos, estão os vivos e as condições que lhe são impostas (...). É o tratamento dessas margens que revela os valores que uma sociedade está disposta a defender”, argumenta Fassin 11. Fassin D. De l’inégalité des vies. Paris: Fayard/Collège de France; 2020. (p. 34). Ele o faz por meio de uma abordagem que sustenta que, mais do que restrita à etnografia, a antropologia abre janelas para o mundo por meio de uma atitude crítica (política e epistemológica) que reconhece que diversidade e mudança são sempre possíveis.

Em que pese o excessivo centramento do texto em pesquisas quantitativas francesas e o subaproveitamento dos ricos achados etnográficos trazidos pelo autor, a atualidade de sua reflexão sobre a desigualdade de vidas - e mesmo sua pertinência em relação ao cenário brasileiro - se evidencia pela sua constatação de que reformas previdenciárias em curso em seu país natal não levam em conta as diferenças na longevidade média entre ricos e pobres (de quase 13 anos, na França). Desde a genealogia da descoberta das desigualdades sociais em saúde e diante da morte até a análise da sua inscrição no corpo e das iniquidades dos tratamentos das vidas, Fassin evidencia categoricamente que, dentre múltiplas formas de desigualdade, a mais profunda se refere à própria vida.

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  • 1
    Fassin D. De l’inégalité des vies. Paris: Fayard/Collège de France; 2020.
  • 2
    Rousseau JJ. Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens. Porto Alegre: L± 2008.
  • 3
    Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008.
  • 4
    Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2011.
  • 5
    World Health Organization. Life expectancy and healthy life expectancy. Data by country. http://apps.who.int/gho/data/node.main.688?lang=en (acessado em 20/Ago/2022).
    » http://apps.who.int/gho/data/node.main.688?lang=en
  • 6
    Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2022
  • Aceito
    16 Nov 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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