Resumo:
Este trabalho teve como objetivo realizar uma análise da frequência dos casos, distribuição regional e análise do perfil dos estabelecimentos em que ocorreram nascimentos com malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. É um estudo descritivo, de abordagem quantitativa, que utilizou como fonte de informação as bases de dados sobre nascidos vivos e o cadastro nacional de estabelecimentos de saúde. Os dados analisados apontam uma grande dispersão dos nascimentos com malformações congênitas, sendo que a grande maioria das unidades de saúde registrou menos de um nascimento/ano. Essas unidades também não têm infraestrutura com capacidade potencial para que os cuidados neonatais cirúrgicos ocorram no mesmo local do parto. A manutenção dessa configuração de dispersão dos nascimentos e estruturação dos serviços de saúde resulta em perdas de oportunidades tanto do ponto de vista da qualidade e segurança - não contribui para o alcance do volume mínimo de procedimentos/ano definido por especialistas para a potencialização dos resultados na atenção de casos cirúrgicos neonatais - quanto de economia de escala e acesso oportuno. Com base na análise e classificação das unidades, utilizando os critérios de volume de atendimento e capacidade instalada potencial, foi possível apontar caminhos para a definição de unidades de referência e a organização da rede de atenção.
Palavras-chave:
Malformações Congênitas; Serviços de Saúde Materno-Infantil; Atenção Terciária à Saúde; Planejamento em Saúde
Abstract:
This study aimed to analyze the frequency of cases, regional distribution, and analysis of the profile of healthcare establishments in which births occurred with congenital malformation that underwent immediate surgery in the state of Rio de Janeiro, Brazil. This is a descriptive study with a quantitative approach drawing on live birth databases and the national registry of healthcare establishments. The data reveal major dispersion of births with congenital malformations, in which the great majority of health units reported less than one such birth per year. These units also lack the infrastructure with potential capacity for neonatal surgical care to be performed in the same service as the birth. The persistence of this configuration of dispersion of births and structuring of healthcare services results in missed opportunities both in quality and safety and does not contribute to achieving the minimum volume of procedures per year for specialists, for empowering the results in neonatal surgical care, such as economy of scale and timely access. By analyzing and classifying units using volume of care and potential installed capacity as criteria, we identified paths for definition of referral units and organization of networks of care.
Keywords:
Congenital Abnormalities; Maternal-Child Health Services; Tertiary Healthcare; Health Planning
Resumen:
Este trabajo tuvo como objetivo realizar un análisis de la frecuencia de casos, distribución regional y análisis del perfil de los establecimientos donde se produjeron nacimientos con malformaciones congénitas de abordaje quirúrgico inmediato, en el estado de Río de Janeiro, Brasil. Se trata de un estudio descriptivo, de abordaje cuantitativo, que utilizó como fuente de información las bases de datos sobre nacidos vivos y el registro nacional de establecimientos de salud. Los datos analizados apuntan una gran dispersión de los nacimientos con malformaciones congénitas, siendo que la gran mayoría de las unidades de salud registraron menos de un nacimiento/año. Estas unidades también no poseen infraestructura con capacidad potencial para que los cuidados neonatales quirúrgicos ocurran en el mismo lugar del parto. El mantenimiento de esta dispersión de los nacimientos y estructuración de los servicios de salud resulta en pérdidas de oportunidad, tanto desde el punto de vista de la calidad y seguridad, puesto que no contribuye al alcance del volumen mínimo de procedimientos/año, definido por especialistas para la potencialización de los resultados en la atención de casos quirúrgicos neonatales, como de economía de escala y acceso oportuno. A partir del análisis y clasificación de las unidades, utilizando los criterios de volumen de atención y capacidad potencial instalada, fue posible apuntar caminos para la definición de unidades de referencia, así como para la organización de la red de atención.
Palabras-clave:
Anomalías Congénitas; Servicios de Salud Materno-Infantil; Atención Terciaria de Salud; Planificación en Salud
Introdução
Estudos apontam melhorias nos indicadores de saúde de mulheres e crianças no cenário nacional, decorrentes entre outros fatores da ampliação do acesso à contracepção, à assistência pré-natal e parto, melhoria na infraestrutura das maternidades e nas taxas de aleitamento materno 11. Victora CG, Aquino EM, do Carmo Leal M, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet 2011; 377:1863-76.,22. Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, et al. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1915-28.,33. Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saúde Pública 2014; 30 Suppl:S85-100.,44. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 27 jun.. No entanto, permanecem desafios como inadequações do cuidado pré-natal na atenção básica e na incorporação das ações de humanização 55. Goudard MJF, Simões VMF, Batista RFL, Queiroz RCS, Alves MTSSB, Coimbra LC, et al. Inadequação do conteúdo da assistência pré-natal e fatores associados em uma coorte no nordeste brasileiro. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:1227-38.,66. Polgliane RBS, Leal MC, Amorim MHC, Zandonade E, Santos Neto ET. Adequação do processo de assistência pré-natal segundo critérios do Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento e da Organização Mundial da Saúde. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:1999-2010., desigualdades no acesso 77. Fonseca SC, Monteiro DSA, Pereira CMSC, Scoralick ACD, Jorge MG, Rozario S. Desigualdades no pré-natal em cidade do Sudeste do Brasil. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:1991-8.,88. Guimarães WSG, Parente RCP, Guimarães TLF, Garnelo L. Acesso e qualidade da atenção pré-natal na Estratégia Saúde da Família: infraestrutura, cuidado e gestão. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00110417.,99. Tomasi E, Fernandes PAA, Fischer T, Siqueira FCV, Silveira DS, Thumé E, et al. Qualidade da atenção pré-natal na rede básica de saúde do Brasil: indicadores e desigualdades sociais. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00195815., altas taxas de cesariana e permanência de casos de sífilis congênita 22. Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, et al. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1915-28.. Esses são somados ao crescimento de casos que exigem a ampliação e a organização de serviços de referência de maior densidade tecnológica, como os nascimentos prematuros e as anomalias congênitas 22. Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, et al. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1915-28.,1010. França EB, Lansky S, Rego MAS, Malta DC, França JS, Teixeira R, et al. Principais causas da mortalidade na infância no Brasil, em 1990 e 2015: estimativas do estudo de Carga Global de Doença. Rev Bras Epidemiol 2017; 20 Suppl 1:46-60..
Essa sobreposição resulta muitas vezes numa priorização nas agendas nacional e regional dos problemas relacionados ao pré-natal e parto de risco habitual, e uma indefinição sobre o papel e o perfil dos serviços especializados, o que dificulta a continuidade do cuidado e a articulação entre os níveis assistenciais.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) demostram que as anomalias congênitas estão entre as principais causas de mortalidade infantil, condições crônicas e incapacidade no mundo 1111. World Health Organization. New toolkit aims to improve global birth defects surveillance. https://www.who.int/news/item/02-12-2020-new-toolkit-aims-to-improve-global-birth-defects-surveillance (acessado em 22/Jul/2021).
https://www.who.int/news/item/02-12-2020... ,1212. World Health Organization. Congenital anomalies. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/congenital-anomalies (acessado em 22/Jul/2021).
https://www.who.int/news-room/fact-sheet... . Essas constatações não são recentes e já levaram muitos países a congregarem esforços para a qualificação dos dados epidemiológicos, elaboração de diretrizes diagnóstico/terapêuticas e definição de linhas de cuidado e centros de referências para as anomalias congênitas, o que não se configura como uma realidade no contexto nacional 1313. Orphanet. Portal sobre doenças raras e medicamentos órfãos. https://www.orpha.net/consor/cgi-bin/index.php (acessado em 22/Jul/2021).
https://www.orpha.net/consor/cgi-bin/ind... .
Entre o conjunto de anomalias congênitas existe um grupo de malformações congênitas que tem características semelhantes por serem passíveis de diagnóstico no pré-natal, compatíveis com a vida, demandarem cuidados intensivos e cirúrgicos neonatais imediatos após o nascimento. Por esse motivo foram consideradas como um grupo de casos para o desenho de uma linha de cuidado, e neste trabalho foram definidas como malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata.
Considerando as necessidades de cuidado desse grupo específico de malformações congênitas, foram identificados alguns requisitos estratégicos que orientam a forma de organização e a programação dos serviços de saúde. São eles: planejamento do parto em unidades com infraestrutura para prestar os cuidados intensivos neonatais e cirúrgicos, evitando o transporte do recém-nascido após o nascimento; a concentração de um volume mínimo de atendimento cirúrgico e intensivo neonatal que impacte positivamente nos indicadores de qualidade; e equipe multiprofissional especializada e com experiência no manejo de casos neonatais cirúrgicos com malformação congênitas 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020..
Existem evidências de que essas estratégias aumentam a possibilidade de sobrevivência, diminuem as intercorrências, ampliam a segurança, a qualidade e melhoram o prognóstico desses recém-nascidos 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020.. Do ponto de vista do planejamento e da organização das Redes de Atenção à Saúde (RAS), como se trata de pontos de atenção com alta densidade tecnológica, a incorporação desses requisitos estratégicos para a definição de centros de referência também qualifica o acesso, a integração dos serviços, gerando otimização dos recursos e economia de escala 1515. Organización Panamericana de la Salud. Redes integradas de servicios de salud: conceptos, opciones políticas y hoja de ruta para su implementación en las Américas. Washington DC: Organización Panamericana de la Salud; 2010..
Para isso, é fundamental a organização da rede de cuidados pré-natal, a programação do parto/nascimento, a identificação do perfil adequado dos serviços especializados e de alta complexidade, de modo que ocorra o diagnóstico precoce dos casos e a referência adequada da gestante. No entanto, para elaborar uma proposta de organização da rede de atenção é preciso conhecer a situação atual dos serviços disponíveis no território.
Assim, o objetivo do trabalho foi realizar uma análise da frequência dos casos, distribuição regional dos nascimentos e análise do perfil dos estabelecimentos em que ocorreram os nascimentos com malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata no Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Com esta análise pretende-se identificar possíveis lacunas e desafios na organização da oferta do cuidado hospitalar, baseando-se no diálogo com critérios e fundamentos da organização de redes de atenção, contribuindo para pensar o planejamento e a programação da atenção às malformações congênitas.
Metodologia
É um estudo descritivo, de abordagem quantitativa, sobre os nascimentos ocorridos com malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1º de janeiro de 2014 a 31 de dezembro de 2018, e o perfil dos estabelecimentos que registraram estes casos.
Este trabalho é uma etapa de um estudo maior denominado Planejamento e Programação nas Redes de Atenção à Saúde: Organização da Atenção às Malformações Congênitas, que iniciou com a análise estratégica das malformações congênitas, a construção de recomendações e requisitos de programação, e a organização do caminho assistencial 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020.. Este artigo apresenta o resultado do terceiro momento que é a análise situacional, e subsidiou o momento seguinte de estruturação da proposta de organização dos serviços de referência para o Estado do Rio de Janeiro.
Como fonte de dados foram utilizados o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), disponibilizado pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, na sua plataforma de tabulação (http://sistemas.saude.rj.gov.br/tabnet); e o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), disponibilizado pelo Ministério da Saúde (http://cnes.datasus.gov.br/).
Para o desenvolvimento do trabalho foram consideradas as patologias de maior magnitude entre as malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata e agrupadas em dois segmentos assistenciais: o segmento assistencial cirúrgico pediátrico, composto pelas malformações osteomusculares da parede abdominal (gastrosquise e onfalocele) 1616. Costa CMS, Gama SGN, Leal MC. Congenital malformations in Rio de Janeiro, Brazil: prevalence and associated factors. Cad Saúde Pública 2006; 22:2423-31.,1717. Guerra FAR, Llerena Jr. JC, Gama SGN, Cunha CB, Theme Filha MM. Defeitos congênitos no Município do Rio de Janeiro, Brasil: uma avaliação através do SINASC (2000-2004). Cad Saúde Pública 2008; 24:140-9. e torácica (hérnia diafragmática congênita) 1818. Leite JCL, Dewes LO, Giuglian R, organizadores. Manual de defeitos congênitos. Porto Alegre: Editora Livre; 2007.; e o segmento assistencial neurocirúrgico pediátrico, representado pela principal malformação do sistema nervoso central, a espinha bífida 1616. Costa CMS, Gama SGN, Leal MC. Congenital malformations in Rio de Janeiro, Brazil: prevalence and associated factors. Cad Saúde Pública 2006; 22:2423-31.,1717. Guerra FAR, Llerena Jr. JC, Gama SGN, Cunha CB, Theme Filha MM. Defeitos congênitos no Município do Rio de Janeiro, Brasil: uma avaliação através do SINASC (2000-2004). Cad Saúde Pública 2008; 24:140-9.,1818. Leite JCL, Dewes LO, Giuglian R, organizadores. Manual de defeitos congênitos. Porto Alegre: Editora Livre; 2007..
A primeira etapa do trabalho foi o levantamento de dados no SINASC, incluindo as variáveis como o número de casos notificados com malformações congênitas, o local de ocorrência do nascimento, o local de residência da mãe, a região de saúde e o volume de nascimentos por estabelecimentos de saúde. As malformações congênitas selecionadas correspondem ao capítulo XVII (Malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas) da Classificação Internacional de Doenças - 10ª revisão (CID-10), e para a identificação dos casos no SINASC foram usados os códigos: Q05 (Espinha bífida), Q79.0 (Hérnia diafragmática congênita), Q79.2 (Onfalocele) e Q79.3 (Gastrosquise).
Dentre o conjunto de unidades que registraram esses casos foram selecionadas todas aquelas que apresentaram um volume igual ou superior a 5 casos no período estudado (5 anos), tanto para o segmento cirúrgico pediátrico quanto para o segmento neurocirúrgico pediátrico, com o seu código de identificação para a busca de informações referentes ao perfil assistencial no CNES.
Na segunda etapa utilizou-se a base de dados do CNES, na qual foram acessadas as fichas de cadastro de cada estabelecimento para consulta das seguintes variáveis: natureza jurídica, tipo de estabelecimento, atividades primária e secundária, infraestrutura, profissionais cadastrados e habilitações ativas (habilitação para atendimento de gestação de alto risco).
Após a análise dos dados os estabelecimentos de saúde foram classificados conforme duas variáveis: volume de nascimentos com registro de malformações de abordagem cirúrgica imediata e a capacidade instalada com potencial para agregar os processos de cuidado relacionados ao nascimento, cuidados intensivos neonatais e cirúrgicos, como descritos a seguir.
Para o volume de atendimento, o critério definido foi o número total de nascimentos/ano notificados com malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata, no período de 2014 a 2018. Foram classificadas como sendo de alto volume as unidades que registraram 20 ou mais casos/ano, e como de baixo volume as que notificaram menos de 20 casos/ano, considerando-se o total de registros dos dois segmentos (cirúrgico pediátrico e neurocirúrgico). Essa classificação seguiu o parâmetro definido por um grupo de especialistas de uma unidade de referência nacional no cuidado às malformações congênitas do segmento cirúrgico pediátrico e neurocirúrgico pediátrico, e se baseou na importância do volume de atendimentos realizados por cada unidade hospitalar e seu impacto positivo no alcance de melhores resultados na atenção de malformações congênitas cirúrgicas 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020..
Quanto à capacidade instalada utilizaram-se os seguintes critérios: ter como natureza jurídica a administração pública; contar com o registro de pelo menos 4 leitos de UTI neonatal (tipos II e III) 1919. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 10 de maio de 2012. Define as diretrizes e objetivos para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido grave ou potencialmente grave e os critérios de classificação e habilitação de leitos de Unidade Neonatal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2012; 12 mai.; no mínimo 4 leitos cirúrgicos pediátricos e ter cirurgião pediátrico cadastrado entre os profissionais de saúde para o segmento pediátrico cirúrgico. No caso do segmento assistencial neurocirúrgico, além de todos os critérios citados, foi considerado também o cadastro de um profissional neurocirurgião.
Esses critérios auxiliam na identificação de hospitais com capacidade potencial para realizar os cuidados neonatais cirúrgicos ao grupo de malformações congênitas selecionadas no estudo. Uma das principais formas de identificação desses recursos refere-se à habilitação dos leitos neonatais, sendo que as unidades hospitalares que têm leitos habilitados como UTI neonatal tipos II e III atenderam os critérios estabelecidos na Portaria nº 930/2012 do Ministério da Saúde 1919. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 10 de maio de 2012. Define as diretrizes e objetivos para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido grave ou potencialmente grave e os critérios de classificação e habilitação de leitos de Unidade Neonatal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2012; 12 mai., e contam com os recursos mínimos exigidos para a atenção de recém-nascidos graves ou potencialmente graves.
As unidades que atenderam esses critérios compuseram o grupo denominado como capacidade instalada potencial alta, e as demais foram incluídas no grupo com capacidade potencial baixa.
Optou-se por levantar apenas o local de nascimento e não necessariamente o local de realização da cirurgia porque isto demandaria um trabalho de linkagem de duas bases de dados - SINASC e Sistema de Informações Hospitalares (SIH) - o que foge ao escopo deste trabalho. No entanto, como um dos critérios para a organização dos serviços é que o procedimento cirúrgico ocorra no mesmo local do nascimento, a análise do volume de nascimentos e das caraterísticas da capacidade instalada potencial dessas unidades permite uma aproximação à avaliação do cuidado prestado atualmente.
Resultados
Foram registrados 1.132.904 nascimentos no Estado do Rio de Janeiro no período entre 2014 e 2018, o que corresponde a uma média de 226.581 nascidos vivos/ano. Desse total, 8.162 (0,7%) Declarações de Nascidos Vivos (DNV) foram registradas com a presença de algum problema congênito, 1.097.539 (96,9%) apresentavam registro negativo para problemas congênitos e 27.203 (2,4%) estavam sem informação e são consideradas como ignoradas.
A busca conforme a codificação das patologias incluídas nesse grupo de casos resultou na identificação de 749 nascimentos com malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata no total de cinco anos, o que corresponde a 6,6 casos por 10.000 nascidos vivos/ano (Tabela 1). Desses nascimentos, 450 foram classificados como malformações do segmento cirúrgico pediátrico (286 casos de gastrosquise, 74 de onfalocele e 90 casos de hérnia diafragmática congênita), representando uma frequência de 4,0 casos por 10.000 nascidos vivos; e 299 nascimentos foram do segmento neurocirúrgico (espinha bífida), correspondendo a uma frequência de 2,6 casos por 10.000 nascidos vivos.
Os casos de malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata foram identificados pela região de saúde do local de ocorrência do nascimento e pelo local de residência da mãe (Tabela 1). Com relação aos dois segmentos, pode-se observar uma concentração de casos na Região Metropolitana 1, onde foram registrados 65,8% dos nascimentos por local de residência da mãe e 67,3% por local de ocorrência do nascimento.
A Tabela 1 mostra a cidade do Rio de Janeiro em destaque por ser o local que apresentou a maior frequência de nascimentos no estado, por receber casos de outras cidades e provavelmente de outras regiões. O volume de nascimentos registrados por local de ocorrência na cidade do Rio de Janeiro foi 44,6% maior que o número de mães residentes na cidade do Rio de Janeiro para o segmento cirúrgico pediátrico e 25,6% maior para o segmento neurocirúrgico.
Na análise referente aos estabelecimentos de saúde e ao volume de casos ocorridos (Figura 1) foram identificadas 74 unidades que registraram pelo menos um nascimento com malformação congênita do segmento cirúrgico pediátrico e 67 unidades apresentaram pelo menos um nascimento do segmento neurocirúrgico pediátrico.
Número de casos de malformação congênita cirúrgica registrados por estabelecimento de saúde no período de 2014-2018. Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Com relação ao volume total de nascimentos nesse mesmo período (2014 a 2018), o que se observa é que em ambos os segmentos a maioria das unidades (75,1%) registrou apenas 1 a 4 nascimentos, ou seja, menos de um caso por ano.
Apenas um hospital registrou um número superior a 20 casos, sendo que este foi responsável no período pelo registro da maior parte dos nascimentos com malformação congênita de abordagem cirúrgica imediata no Estado do Rio de Janeiro, concentrando 50,8% dos casos cirúrgicos pediátricos e 21,4% dos casos neurocirúrgicos.
Para a análise do perfil foi realizada a pesquisa individual de cada estabelecimento de saúde no CNES, com base no seu código de identificação, sendo que todas as unidades constavam com o cadastro ativo no momento da busca (primeiro semestre de 2019) e a data da última atualização não ultrapassava o período de 6 meses (Tabela 2).
Dentre o conjunto de estabelecimentos de saúde analisados, a maior parte era de natureza pública (68,6%), do tipo hospital geral ou maternidade (89,2%), e apresentava o atendimento obstétrico e neonatal (62,9%) como uma das principais atividades. As unidades públicas foram responsáveis também pelo maior percentual de nascimentos de malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata, correspondendo a 91,4% do total de casos.
Na análise das variáveis relacionadas à capacidade instalada das unidades (estrutura física e recursos humanos) os leitos de UTI neonatal do tipo II eram os que estavam disponíveis na maioria dos hospitais, estando presentes em 65,7% das unidades. Observa-se, porém, que os principais recursos selecionados para indicar a possibilidade de a unidade realizar o atendimento cirúrgico para os segmentos cirúrgico pediátrico e neurocirúrgico pediátrico (leito especializado e recursos humanos) não estavam disponíveis no cadastro dos hospitais. Em torno de 60% das unidades pesquisadas não apresentaram o leito cirúrgico, pediátrico e neurocirúrgico, e as especialidades médicas, cirurgião pediátrico e neurocirurgião registradas na ficha do estabelecimento no CNES.
O resultado do relacionamento das variáveis referentes ao volume de atendimento e do potencial da capacidade instalada para realizar todos os cuidados (parto, cuidados neonatais e cirúrgicos) na mesma unidade, sem o transporte do recém-nascido, foi consolidado nos Quadros 1 e 2. Esses quadros foram elaborados para identificar qual o percentual das unidades que se encontrariam no quadrante definido como situação ideal/desejada: atende os requisitos mínimos de estrutura para o atendimento da demanda de cuidado neonatal cirúrgico e concentra um volume mínimo de registros que impactaria nos indicadores de qualidade e otimização dos recursos.
Em ambas as análises somente uma unidade cumpriu os critérios, situando-se no quadrante considerado ideal, e a maioria ficou posicionada no quadrante de baixo volume e não atendimento aos requisitos mínimos estabelecidos. Sendo que, entre as unidades identificadas como de baixo volume, cinco unidades no segmento pediátrico cirúrgico (Quadro 1) e quatro do segmento neurocirúrgico (Quadro 2) estão no quadrante com capacidade instalada potencial alta, apontando para a possibilidade de poderem se tornar referência para esta linha de cuidado.
Análise da relação entre o volume de atendimentos e a estrutura das unidades do segmento pediátrico cirúrgico. Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Análise da relação entre o volume de atendimentos e a estrutura das unidades do segmento neurocirúrgico pediátrico. Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Discussão
No Brasil, as anomalias congênitas presentes no nascimento são descritas nas DNV e estas informações são armazenadas no banco de dados do SINASC, conforme a codificação da CID-10, o que permite que sejam utilizadas como uma importante fonte de dados sobre a prevalência dos defeitos congênitos no cenário nacional 1616. Costa CMS, Gama SGN, Leal MC. Congenital malformations in Rio de Janeiro, Brazil: prevalence and associated factors. Cad Saúde Pública 2006; 22:2423-31.,2020. Luquetti DV, Koifman RJ. Surveillance of birth defects: Brazil and the US. Ciênc Saúde Colet 2011; 16 Suppl 1:777-85.. No entanto, ressalta-se a importância do preenchimento adequado desse campo na DNV para que os dados referentes aos desfechos, frequência e local de nascimento subsidiem as análises e proposições de organização da rede de atenção.
Outros estudos já analisaram dados de prevalência das malformações congênitas no Rio de Janeiro, mas nenhum com esta forma de abordagem: agrupamento de casos para a definição de uma linha de cuidado que demanda processos e recursos assistenciais similares, o que dificulta a comparação dos resultados.
Uma dessas pesquisas analisou os problemas congênitos por aparelhos e sistemas acometidos e identificou que no Estado do Rio de Janeiro, no período de 2000 a 2004, as maiores prevalências ocorreram nos sistemas que representam o grupo de casos deste estudo, sendo: 32,1 casos/10.000 nascidos vivos com problemas congênitos do aparelho osteomuscular e 12,3 casos/10.000 nascidos vivos com problemas congênitos do sistema nervoso central 1717. Guerra FAR, Llerena Jr. JC, Gama SGN, Cunha CB, Theme Filha MM. Defeitos congênitos no Município do Rio de Janeiro, Brasil: uma avaliação através do SINASC (2000-2004). Cad Saúde Pública 2008; 24:140-9.. Outra análise comparou as prevalências das malformações maiores e menores numa amostra das maternidades do Município do Rio de Janeiro e apontou os problemas de fechamento do tubo neural (sistema nervoso central) como uma das principais anomalias maiores detectadas 1616. Costa CMS, Gama SGN, Leal MC. Congenital malformations in Rio de Janeiro, Brazil: prevalence and associated factors. Cad Saúde Pública 2006; 22:2423-31.. Esses dados reforçam a necessidade de se pensar estratégias de organização dos fluxos assistenciais e serviços de referência para a atenção dos segmentos assistenciais priorizados neste trabalho.
Para a configuração dos serviços em rede e desenho de linhas de cuidado, alguns elementos, além dos dados de prevalência, são fundamentais para a programação da oferta, como definição de pontos de atenção com perfil assistencial adequado e organizados no território, de forma que facilitem o acesso e garantam a qualidade e a segurança do cuidado 2121. Kuschnir R, Chorny AH. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:2307-16.,2222. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde; 2001..
Uma das estratégias deste trabalho foi articular o referencial das RAS e os critérios como acesso, qualidade e segurança, economia de escala, definição de territórios e regiões de saúde, níveis de atenção e integração dos serviços, em todos os momentos do estudo 1515. Organización Panamericana de la Salud. Redes integradas de servicios de salud: conceptos, opciones políticas y hoja de ruta para su implementación en las Américas. Washington DC: Organización Panamericana de la Salud; 2010.,2323. Kuschnir R. Organizando redes de atenção à saúde: perfis assistenciais, articulação entre níveis e organização de linhas de cuidado. In: Kuschnir R, Fausto MCR, editores. Gestão de redes de atenção à saúde. Rio de Janeiro: Educação à Distância, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2014. p. 129-68.,2424. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011.. Isso permitiu a identificação de elementos norteadores para a construção do caminho assistencial e dos requisitos estratégicos para a programação - que correspondem à explicitação de uma situação ideal em termos de práticas clínicas e de organização de serviços de saúde - e orientaram esta fase de análise do cenário do Rio de Janeiro 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020..
O levantamento da frequência de nascidos vivos foi realizado para identificar a população-alvo da linha de cuidado das malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata. Para o período de 2014 a 2018 no Estado do Rio de Janeiro, essas malformações representaram um total de 150 casos/ano, sendo em torno de 90 casos/ano no segmento pediátrico cirúrgico e 60 casos/ano no segmento neurocirúrgico. Para pensar a definição de territórios e regiões foram consideradas as divisões estabelecidas no Plano Diretor de Regionalização do Estado do Rio de Janeiro 2525. Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Atualização do Plano Diretor de Regionalização 2012/2013. https://www.saude.rj.gov.br (acessado em 30/Mar/2021).
https://www.saude.rj.gov.br... . A maior parte dos nascimentos está ocorrendo na Região Metropolitana 1, com uma concentração no Município do Rio de Janeiro que é o local onde reside a maior parte das gestantes (41,2%,), seguida da Região Metropolitana 2 (11,4%). Este estudo não contemplou uma análise aprofundada das características dessas regiões, mas a presença de hospitais gerais de grande porte e unidades hospitalares com alta densidade tecnológica nesses territórios pode ser um fator que contribui para essa concentração de nascimentos com malformações congênitas nas duas regiões metropolitanas 2525. Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Atualização do Plano Diretor de Regionalização 2012/2013. https://www.saude.rj.gov.br (acessado em 30/Mar/2021).
https://www.saude.rj.gov.br... .
Para a organização das RAS essas informações precisam ser consideradas na relação com outros dois elementos/fundamentos importantes: qualidade e economia de escala 2222. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde; 2001.. Um dos elementos estratégicos que orienta o processo de programação para esse grupo de casos é o volume de atendimento. Para os procedimentos cirúrgicos já existe uma relação bem estabelecida entre volume cirúrgico e resultado assistencial, em diferentes áreas e especialidades, apontando que maior volume de procedimentos corresponde a melhores resultados prognósticos e menor mortalidade 2626. Spiegelhalter DJ. Mortality and volume of cases in pediatric cardiac surgery: retrospective study based on routinely collected data. BMJ 2002; 324:261-3.,2727. Sacks GD, Ulloa JG, Shew SB. Is there a relationship between hospital volume and patient outcomes in gastroschisis repair? J Pediatr Surg 2016; 51:1650-4.,2828. Birkmeyer JD, Siewers AE, Finlayson EVA, Stukel TA, Lucas FL, Batista I, et al. Hospital volume and surgical mortality in the United States. N Engl J Med 2002; 346:1128-37.,2929. Noronha JC, Travassos C, Martins M, Campos MR, Maia P, Panezzuti R. Avaliação da relação entre volume de procedimentos e a qualidade do cuidado: o caso de cirurgia coronariana no Brasil. Cad Saúde Pública 2003; 19:1781-9..
Dessa forma, a concentração dos atendimentos que demandam cuidado cirúrgico em centros de atenção terciários resultaria em melhoria da qualidade e em economia de escala, tendo em vista a possibilidade de otimização de recursos e o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades pela equipe de saúde. Com a concentração dos casos e a definição de centros de referências as unidades passam a operar em rede, qualificando também o acesso e garantindo o atendimento referenciado para todos estes casos.
Um estudo direcionado para a análise dos resultados de casos de gastrosquise verificou que as unidades com volume cirúrgico entre 15 ou 17 casos/ano apresentavam menor tempo médio de permanência e menores chances de mortalidade hospitalar, o que levou à orientação de limitação do número de hospitais que prestam cuidados cirúrgicos complexos ao recém-nascido 2727. Sacks GD, Ulloa JG, Shew SB. Is there a relationship between hospital volume and patient outcomes in gastroschisis repair? J Pediatr Surg 2016; 51:1650-4.. Neste trabalho, foi utilizado como requisito o parâmetro definido por um grupo de especialistas de uma unidade de referência nacional no cuidado às malformações congênitas dos segmentos cirúrgico pediátrico e neurocirúrgico pediátrico: volume mínimo de 20 procedimentos/ano por segmento assistencial para o alcance de melhores resultados nos cuidados cirúrgicos neonatais 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020..
Por isso, seria esperado que os casos registrados pelos estabelecimentos de saúde no Estado do Rio de Janeiro estivessem mais concentrados em algumas unidades de saúde, no entanto, os dados analisados apontam uma grande dispersão dos nascimentos. Na Figura 1, pode-se observar que apenas uma unidade consegue alcançar esse volume de cuidados, sendo que esse hospital registrou em torno de 50% dos nascimentos do segmento cirúrgico pediátrico e 20% do segmento neurocirúrgico pediátrico. Os demais casos estão nascendo em unidades que não atingem o volume estabelecido e a grande maioria das unidades registrou menos de um caso/ano.
Outra questão importante, identificada para a garantia da qualidade e a segurança do cuidado, foram as condições de infraestrutura necessárias para a definição do perfil assistencial dos pontos de atenção e para que os cuidados neonatais e cirúrgicos ocorressem no mesmo local do parto, sem a necessidade de transporte entre unidades de saúde 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020.. Uma análise recente realizada no Rio de Janeiro apontou que nascer fora de um centro terciário aumentou a chance de mortalidade dos recém-nascidos com gastrosquise em 5 vezes, e a ausência de UTI neonatal do tipo III nas unidades aumentou a chance de óbito em 3,8 vezes 3030. Barreiros CFC. Análise dos casos de gastrosquise no Estado do Rio de Janeiro [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2019..
Assim, a composição do perfil assistencial adotada neste trabalho se justifica pelos índices de complicações neonatais serem menores quando a gestante tem o seu parto realizado em unidades hospitalares capacitadas para o atendimento cirúrgico e equipe com experiência no manejo de malformações congênitas 3030. Barreiros CFC. Análise dos casos de gastrosquise no Estado do Rio de Janeiro [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2019.. Nessas circunstâncias os riscos inerentes ao transporte do recém-nascido e os problemas decorrentes de um diagnóstico tardio são evitados. Sendo assim, o nascimento em uma unidade e o transporte do recém-nascido após o parto para outra unidade para a realização do procedimento cirúrgico ou cuidado neonatal não são consideradas uma boa prática, e não deveriam constar no desenho das linhas de cuidado 1414. Binsfeld L. Planejamento e programação nas redes de atenção à saúde: organização da atenção às malformações congênitas [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020..
Dentre aquelas unidades selecionadas para análise e busca de dados no CNES sobre a infraestrutura (Tabela 2), somente 40% tinham o leito ou especialidade cirúrgica pesquisada, e apenas 22,9% tinham leito de UTI neonatal do tipo III cadastrado. Esses dados apontam para a possibilidade de além dos nascimentos estarem dispersos, não atendendo ao critério de concentração de um volume mínimo de atendimentos, também estão demandando transferência externa após o nascimento porque as unidades não têm infraestrutura com capacidade potencial para o cuidado neonatal cirúrgico.
A manutenção dessa configuração dos serviços de saúde resulta em perdas de oportunidades tanto do ponto de vista da qualidade e segurança quanto de economia de escala. Para apontar algumas possibilidades de revisão dos fluxos, principalmente na identificação de unidades de referência que possam atender os requisitos definidos neste trabalho, as unidades foram classificadas com base no cruzamento destes dois critérios: volume de atendimento e capacidade instalada (Quadros 1 e 2 ).
Além da unidade que atendeu os dois requisitos (volume e capacidade instalada potencial), existem 5 do segmento cirúrgico pediátrico e 4 do segmento neurocirúrgico que estão no quadrante com baixo volume, mas com uma capacidade potencial alta e, desta forma, poderiam ser consideradas numa reestruturação e desenho da linha de cuidado no Estado do Rio de Janeiro.
Para essa definição precisariam ser agregados outros resultados desta análise, como os dados de frequência de casos, distribuição pelas regiões de saúde e a necessidade de concentração dos nascimentos em unidades com perfil assistencial adequado. Essas informações representam os elementos considerados como o tripé para a organização de redes de atenção à saúde: acesso, qualidade e economia de escala 2121. Kuschnir R, Chorny AH. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:2307-16.,2222. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde; 2001..
A análise e definição do perfil assistencial precisaria considerar também, em se tratando de condições que demandam cuidados especializados, como as malformações congênitas, que a pactuação apenas de centros de referência para o cuidado à gestação de baixo e alto riscos não é suficiente para o desenho de linhas de cuidado e definição do perfil assistencial hospitalar.
Seria fundamental para a organização dos serviços que envolvem alta densidade tecnológica, necessidade de concentração de casos específicos e equipe com experiência e formação especializada, que fossem definidas quais as patologias ou grupo de casos que serão atendidos em cada serviço de referência.
Essa mesma consideração foi feita com relação à organização dos serviços perinatais em outro país, onde especialistas questionam a forma de classificação dos serviços de risco materno e fetal. Apontam que apesar de contarem com centros de referência, como hospitais de apoio perinatal diferenciado, com a diversidade de doenças e a resposta que é possível dar a cada uma, torna-se muito difícil que todos consigam dar solução adequada a todos os casos com que se deparam ou que são referenciados. Assim, quando falamos em referência, provavelmente devemos particularizar a que patologia nos referimos e, para algumas, devem existir centros específicos, porque será aí que a orientação diagnóstica/terapêutica será a mais adequada 3131. Clode N. Centros de referência. Precisam-se? Acta Obstet Ginecol Port 2018; 12:96-8..
As vantagens da especificação do perfil assistencial citadas no artigo mostrado assemelham-se às discutidas neste trabalho. A concentração de casos, para além da otimização de recursos tecnológicos, permite a constituição de equipes com experiência em lidar com casos concretos, o que qualifica a tomada de decisão clínica. O contrário, a existência de múltiplas unidades de referência, sem uma especificação do perfil assistencial por patologia, leva a uma diluição de casos que normalmente, pelas suas características epidemiológicas, apresentam um volume muito baixo. Essa diluição de casos, que ocorre quando não se especifica o perfil assistencial dos centros de referência, dificulta a manutenção de graus de excelência em determinadas técnicas e tratamentos que demandam um número mínimo de atendimentos/ano 3131. Clode N. Centros de referência. Precisam-se? Acta Obstet Ginecol Port 2018; 12:96-8..
Assim, considerando o contexto da linha de cuidado às malformações congênitas de abordagem cirúrgica imediata, a habilitação de hospitais de referência à gestação de alto risco ou a adoção de tipologias como a utilizada para classificar os leitos de UTI neonatal (tipo II ou III) 1919. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 10 de maio de 2012. Define as diretrizes e objetivos para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido grave ou potencialmente grave e os critérios de classificação e habilitação de leitos de Unidade Neonatal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2012; 12 mai., não é suficiente para a especificação e definição dos caminhos e fluxos assistenciais a estas condições complexas em saúde.
Se não forem especificadas as patologias ou o grupo de casos que cada centro de referência tem condições de atender perde-se a oportunidade de qualificar o cuidado e otimizar recursos que são escassos, podendo resultar numa indefinição do perfil assistencial, na diluição dos casos e na insatisfação das equipes de saúde e usuários.
Finalmente, cabe ressaltar que uma outra questão fundamental para a linha de cuidado abordada neste trabalho é o diagnóstico no momento do pré-natal para a programação adequada dos cuidados ao parto e nascimento. Apesar de a OMS recomendar a realização da ultrassonografia obstétrica antes da 24ª semana - o que pode permitir o rastreamento de problemas congênitos - este exame ainda não foi incorporado como uma rotina nos manuais e políticas nacionais 3232. Salomon LJ, Alfirevic Z, Bilardo CM, Chalouhi GE, Ghi T, Kagan KO, et al. ISUOG practice guidelines: performance of first-trimester fetal ultrasound scan. Ultrasound Obstet Gynecol 2013; 41:102-13.. Essa situação pode trazer dificuldades para o diagnóstico e encaminhamento adequado dos casos de malformação congênita durante a gestação, contribuindo para essa diluição de nascimentos encontrada no cenário do Estado do Rio de Janeiro.
No entanto, mesmo reconhecendo o conjunto de desafios referentes à qualificação dos cuidados à gestação e ao nascimento de risco habitual, o que se buscou destacar neste estudo foi a importância de pensar estratégias que contemplem critérios específicos para a organização do cuidado de casos complexos e especializados, como as malformações congênitas.
Os esforços de qualificação do cuidado materno-infantil na atenção primária em saúde precisam estar articulados com análises e propostas para a estruturação do cuidado especializado e terciário ambulatorial e hospitalar, contemplando as características e demandas de cuidado em todos os níveis de atenção nos processos de planejamento, programação e organização das linhas de cuidado e da rede de atenção.
Para isso é importante que os processos de planejamento e programação em saúde incorporem elementos referentes às necessidades assistenciais, baseadas nas melhores evidências disponíveis, mas também critérios estratégicos de qualidade e segurança para a organização dos serviços, critérios que são próprios da gestão de serviços especializados e de alta complexidade. E esse processo demanda um diálogo constante entre a clínica, a epidemiologia e os fundamentos de estruturação das RAS.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Fev 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
30 Abr 2021 - Revisado
05 Ago 2021 - Aceito
13 Ago 2021