O livro Gênero e Saúde: Uma Articulação Necessária, de Elaine Reis Brandão & Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir ¹1. Brandão ER, Alzuguir FCV. Gênero e saúde: uma articulação necessária. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde)., é uma leitura relevante em um momento de resistência ao debate de gênero, trazendo uma discussão necessária para o setor saúde. Cada capítulo traz uma interseção dos estudos de gênero com outros campos de maneira didática e reflexiva, compondo um olhar introdutório, mas completo, em uma linguagem acessível, útil tanto para a sala de aula quanto para o serviço de saúde.

O primeiro capítulo, Panorama Histórico e Conceitual sobre a Categoria de Gênero, localiza histórica e epistemologicamente os estudos de gênero e explora as conexões entre o conceito e as formulações do movimento social, sendo um guia útil para uma introdução na temática. Considero essencial o cuidado das autoras em apresentar gênero como uma categoria analítica, não como sinônimo de “homem” ou “mulher”, o que produz uma série de ruídos nos debates leigos sobre o assunto. Como um ponto a ser mais desenvolvido, destaco o lugar das masculinidades. Ainda que o caráter relacional do gênero seja bem abordado no texto ²2. Scott JW. Gender: a useful category of historical analyses. Am Hist Rev 1986; 91:1053-75., assim como a necessidade de envolver os homens e refletir sobre masculinidades, a discussão permanece muito centrada na realidade feminina. Como uma breve contribuição ao debate, reflito como os valores caros à sociedade seguem pari passu aos atributos característicos do ideal hegemônico de masculinidade no binarismo de gênero ³3. Connell RW, Messerchmidt JW. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gend Soc 2005; 19:829-59.. Ao mencionar a crítica feminista à “mulher universal”, a obra nos leva a perguntar acerca do “homem universal”, cujas características tecem o próprio tecido social em uma sociedade pensada por homens para homens.

No capítulo seguinte, Diferença Sexual e Medicalização de Corpos, o livro discute corpo como uma âncora para o sistema de gênero. Gênero é apresentado como um valor, que organiza e orienta nossas vidas segundo uma perspectiva heteronormativa e reprodutiva. O processo de medicalização, apresentado no capítulo, leva a uma percepção de produtividade e objetividade do corpo e da fisiologia que é cara ao ideal de masculinidade e deslocaliza o corpo feminino, tido como instável e misterioso. Contudo, caberia discutir a molecularização e a farmacologização como características da biopolítica ⁴4. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013.^,55. Abraham J. Pharmaceuticalization of society in context: theoretical, empirical and health dimensions. Sociology 2010; 44:603-22., no sentido de atentar, criticamente, ao fato de que o processo não se resume a gênero/sexualidade, mas cobre todo o olhar contemporâneo sobre o corpo.

No capítulo 3, Implicações do Gênero na Produção do Conhecimento Científico, o aporte dos estudos sociais de ciência e tecnologia enfatiza a articulação do gênero com o próprio pensamento científico. A discussão sobre o uso de metáforas na ciência ressalta como ciência e política se misturam, reafirmando a impossibilidade de uma neutralidade absoluta no pensamento científico. Destaco a abordagem das autoras de uma clivagem estabelecida entre “mulheres e ciência” e “gênero e ciência” ⁶6. Citelli MT. Mulheres nas ciências: mapeando campos de estudo. Cadernos Pagu 2015; 15:39-75.. Mesmo que venham se aproximando recentemente, essa diferença ainda marca o campo e divide formações disciplinares. Nesse sentido, o fato de as duas autoras serem da saúde coletiva, área necessariamente interdisciplinar e multiprofissional, traz um olhar mais integrado. De toda forma, a apresentação das duas abordagens é feita de forma didática, servindo como um ótimo ponto de partida para esse debate em sala de aula. Esse capítulo ainda encerra uma primeira parte da obra, mais teórica e conceitual, permitindo avançar para uma segunda parte, mais aplicada.

Assim, o capítulo 4, A Centralidade da Abordagem Interseccional na Compreensão dos Processos de Saúde e Doença, se centra nos impactos do gênero sobre o processo saúde-doença. Se o terceiro capítulo é útil para o ensino, aqui temos um profícuo diálogo com gestores e profissionais de saúde. Em uma lógica sanitarista, as autoras demonstram como as normas de gênero produzem problemas de saúde. Enfatizar o caráter interseccional do gênero por meio de um olhar decolonial, como o livro traz, tem o potencial de superar certo divisionismo artificial do sujeito que as políticas de saúde para populações específicas correm o risco de produzir. O capítulo levanta discussões sobre os impactos das normas de gênero não apenas sobre corpos, mas na estruturação do sistema de saúde, levando a buscar soluções para o machismo estrutural e institucional que permeia a assistência em saúde. Contudo, cabe aqui uma crítica à ausência de uma apresentação mais detalhada do conceito de desigualdades sociais em saúde ⁷7. Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. (Coleção Temas em Saúde)., o que ampliaria o diálogo com outras áreas do pensamento sanitarista.

Já no capítulo 5, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: Debates Contemporâneos, observamos como a articulação entre gênero e relações internacionais têm consequências globais e locais, repercutindo em políticas públicas e reafirmando a importância dos Direitos Humanos em um período de crise do humanismo e do multilateralismo. As autoras enfrentam de maneira honesta temas delicados na arena pública atual, como a “ideologia de gênero” e o negacionismo científico. Algo que poderia ser explorado seria uma possível interseção com o Direito, ainda pouco explorada no campo, destacando a noção de “justiça reprodutiva” e as análises de documentos internacionais de que o país é signatário. O capítulo traz ainda uma reflexão sobre a manutenção da redução da mulher à sua capacidade reprodutiva nas políticas públicas, demonstrando seu caráter estrutural, o que corrobora e exemplifica a discussão teórica dos primeiros capítulos. Vale ressaltar o cuidado em trazer exemplos nesse capítulo. A escolha por tais exemplos (aborto, HIV/aids e trabalho sexual) é estratégica e adequada, porém eles acabam sendo tratados de forma desigual, um mais desenvolvido que os outros. Essa diferença impacta mais diretamente a discussão sobre prostituição e trabalho sexual, que termina muito curta comparativamente.

Por fim, as Considerações Finais nos convidam à luta pela defesa da garantia de direitos ameaçados pela cruzada antigênero ⁸8. Paternotte D, Kuhar R. "Ideologia de gênero" em movimento. Rev Psicol Polít 2018; 18:503-23., fechando o livro de forma propositiva e estimulante. Sem se furtarem às necessárias críticas e à denúncia dos sucessivos desmontes que vivenciamos nos diversos campos abordados - Gênero, Saúde, Política, Ciência, Direitos Humanos -, as autoras conseguem escapar de um tom melancólico e desesperançado que tem acompanhado essas discussões, aprofundado pelo contexto da pandemia de COVID-19. Aliás, a abordagem da pandemia e suas evidentes marcas de gênero tornam a leitura atual e dialogam diretamente com as vicissitudes vividas durante a crise sanitária.

Portanto, recomendo a leitura para quem se interesse pela articulação entre gênero e saúde e, principalmente, para o(a) professor(a) e para o(a) formulador(a) de políticas e ações em saúde na perspectiva de gênero. A didática divisão das articulações apresentadas demonstra a preocupação de quem conhece e se reconhece na sala de aula, sem deixar de lado a possibilidade de aplicação pelo(a) profissional. Os capítulos cumprem o papel de introduzir cada temática, podendo ser trabalhados separadamente ou em conjunto.

Por fim, é muito bem-vindo um relato mais pessoal de pertencimento ao campo com que as autoras encerram a obra; mais do que pertencimento científico, um pertencimento ativista, que induz o(a) leitor(a) a fazer o mesmo movimento. O livro nos conclama a “seguir na luta”, dando um incentivo em um momento histórico que parece muito sombrio para essa discussão. Nas palavras das autoras, “trata-se de uma visão parcial, posicionada, que certamente não abrange todas as perspectivas possíveis de se abordar o tema. Não é uma história isenta de conflitos, dissidências, embates e disputas de poder, como qualquer outra disputa política” (p. 128). Considero que assim o seja porque a visão das autoras concorda com a objetividade localizada proposta por Donna Haraway ⁹9. Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu 1995; 5:7-41.. A visão é parcial e posicionada justamente porque foge ao imperativo masculinista de uma ciência deificada, transcendental, neutra, artificialmente livre de conflitos. O livro, portanto, cumpre outro objetivo, o de apresentar outro olhar, outro paradigma científico. Em última instância, uma perspectiva feminista.

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