Editores de Ciências Sociais na Saúde Coletiva: práticas e limites na conformação de um habitus científico

Social Science editors in Public Health: practices and limits in the creation of a scientific habitus

Editores de Ciencias Sociales en Salud Colectiva: prácticas y límites en la conformación de un habitus científico

Suely Deslandes Ivia Maksud Sobre os autores

Resumos

A editoria científica constitui prática socialmente valorizada, modulando trajetórias acadêmicas. Revistas científicas atuam entre dois campos sociais distintos, o editorial e o científico, tendo como eixo as relações objetivas e intersubjetivas do campo científico. O presente artigo analisa a atuação dos editores de Ciências Sociais do campo da Saúde Coletiva e suas concepções acerca do processo de avaliação de artigos científicos, sua visão e relação com os demais agentes da prática editorial e seu papel na conformação de um habitus científico. A opção metodológica foi a análise temática de 13 entrevistas semiestruturadas com editores(as)-chefes e associados(as) da área de Ciências Sociais de revistas de destaque da Saúde Coletiva. Os editores são agentes que operam com as contradições e pressões derivadas do produtivismo numa relativa autonomia da prática editorial. Gradativamente conformam um habitus editorial cunhado pela prática empírica, formação autodidata e dedicação voluntária. Estabelecem o diálogo entre os autores e a comunidade de pares-concorrentes do campo. Delimitam objetos e temas de interesse da área a partir da legitimidade assentada no agir “desinteressado” que demanda o campo científico. Impõem barreiras aos artigos considerados de baixa qualidade, definida especialmente por lacunas teórico-metodológicas e falta de originalidade. No entanto, seu trabalho didático de inculcar um modo considerado adequado no manejo de teorias e metodologias das Ciências Sociais se encontra circunscrito à recusa dos textos, o que sugere a importância de maior articulação entre editores, fóruns de editores, programas de pós-graduação e demais agentes de formação de pesquisadores do campo.

Palavras-chave:
Saúde Coletiva; Domínios Científicos; Ciências Sociais


Scientific publishing is a socially valued practice, modulating academic trajectories. Scientific journals operate between two distinct social fields, the editorial and the scientific, having as axis the objective and intersubjective relationships of the scientific field. This article analyzes the performance of Social Science editors in the field of Public Health, as well as their conceptions about the process of evaluating scientific articles, their perspective and relationship with other agents of editorial practice, and their role in shaping a scientific habitus. The methodological option was the thematic analysis of 13 semi-structured interviews with editors-in-chief and associates of the Social Science area of prominent journals in Public Health. Editors are agents who operate with the contradictions and pressures derived from productivism in a relative autonomy of the editorial practice. They gradually create an editorial habitus coined by empirical practice, self-taught training, and voluntary dedication. They also establish a dialogue between authors and the peer-competitor community in the field. They delimit objects and themes of interest in the area from the legitimacy based on the “disinterested” action demanded by the scientific field. They will impose barriers to articles considered of low quality, defined especially by theoretical-methodological gaps and lack of originality. However, their didactic work of inculcation in a way considered appropriate in the management of theories and methodologies of Social Science is limited to the refusal of texts, which suggests the importance of greater articulation between editors, editors’ forums, graduate programs, and other agents of training of researchers in the field.

Keywords:
Public Health; Scientific Domains; Social Sciences


La editorial científica es una práctica socialmente valorada que modula las trayectorias académicas. Las revistas científicas operan entre dos campos sociales distintos, lo editorial y lo científico, teniendo como eje las relaciones objetivas e intersubjetivas del campo científico. Este artículo analiza el papel de los editores de Ciencias Sociales en el campo de la Salud Colectiva y sus concepciones sobre el proceso de evaluación de artículos científicos, su visión y relación con otros agentes del proceso editorial y su rol en la conformación de un habitus científico. Se realizó un análisis temático con 13 entrevistas semiestructuradas aplicadas a editores en jefe y editores asociados del área Ciencias Sociales de destacadas revistas de la Salud Colectiva. Los editores son agentes que operan con las contradicciones y presiones que resultan del productivismo en una relativa autonomía de la práctica editorial. De manera gradual, forman un habitus editorial, marcado por la práctica empírica, la formación autodidacta y la dedicación voluntaria. Llegan a entablar un diálogo entre los autores y la comunidad de pares competidores en el campo. Delimitan objetos y temas de interés en el campo a partir de la legitimidad basada en la acción “desinteresada” que demanda el campo científico. Además, imponen barreras a los artículos considerados como de baja calidad, debido especialmente a lagunas teórico-metodológicas y la falta de originalidad. Sin embargo, su labor didáctica de proponer un manejo considerado adecuado de las teorías y metodologías de las Ciencias Sociales se restringe al rechazo de los textos, lo que muestra la importancia de una mayor articulación entre editores, foros de editores, programas de posgrado y otros agentes formadores de investigadores del campo.

Palabras-clave:
Salud Colectiva; Dominios Científicos; Ciencias Sociales


Introdução

O exercício da editoria científica constitui uma prática extremamente valorizada, modulando trajetórias e carreiras acadêmicas. A prática da publicação científica e do sistema de avaliação de pares foi pioneiramente estudada no campo da Sociologia por Zuckerman & Merton 11. Zuckerman H, Merton RK. Patterns of evaluation in science: institutionalization, structure and functions of the referee system. Minerva 1971; 9:66-100., que mostraram como as primeiras revistas científicas no século XVII - uma extensão das sociedades científicas renomadas - definiram um modo de julgamento próprio à produção científica, inteiramente assentado no sistema de revisão por pares. A institucionalização desse sistema consolidaria a ideia de concorrência por espaços restritos de prestígio e reconhecimento, bem como da necessidade do crivo externo de credibilidade.

Merton 22. Merton R. Ensaios de sociologia das ciências. São Paulo: Editora 34; 2013. inaugura uma sociologia da ciência, concebida como uma ação institucional, regida por regras e normas, mas dotada de autonomia e conduzida pela máxima do desinteresse. A leitura mertoniana priorizava não o caráter intrínseco do conhecimento (seus métodos/episteme), mas as características culturais e valores que regem a prática científica 33. Coelho GB. Sociologia do conhecimento e da ciência: da sua emergência a Pierre Bourdieu. Sinais 2017; 21:266-94.. Sua perspectiva é assentada na compreensão de que “o ethos da ciência se refere a um complexo emocionalmente modulado de regras, prescrições, costumes, crenças, valores e pressuposições, que é mantido pelo cientista22. Merton R. Ensaios de sociologia das ciências. São Paulo: Editora 34; 2013. (p. 16). Nesta perspectiva, a ação do sistema de arbitragem das revistas teria importante papel na consolidação dos principais valores desse ethos: o universalismo (alegações de verdade devem ser submetidas a critérios impessoais preestabelecidos), o “comunismo” (textos aprovados e publicados serão partilhados com toda a comunidade), o ceticismo organizado (a análise cética dos árbitros é fundamental para o questionamento das hipóteses) e o desinteresse (o julgamento dos árbitros age no melhor interesse da ciência e não da persona ou status dos autores) 22. Merton R. Ensaios de sociologia das ciências. São Paulo: Editora 34; 2013..

Numa perspectiva distinta, o campo editorial para Bourdieu 44. Bourdieu P. Uma revolução conservadora na edição. Política & Sociedade 2018; 17:198-249. envolve coerções e pressões externas ao campo e disputas em seu interior. Tal campo possui diversos agentes (autores, editores, financiadores, pareceristas, leitores) que, numa lógica de relações cruzadas de parceria/concorrência, ocupam posições na estrutura do campo que serão frutos de um conjunto de acumulações dos capitais financeiros e simbólicos (reconhecimento, prestígio, consagração), que definem as hierarquias desse campo. Ainda que Bourdieu esteja se referindo sobremaneira ao campo das editoras de literatura francesa, interessa-nos seu modelo teórico da relação entre os agentes (editores, avaliadores, especialistas e autores).

Partindo deste referencial poderíamos dizer que revistas científicas atuam na confluência entre dois campos sociais distintos, o editorial e o científico, tendo como vetor predominante as relações objetivas e intersubjetivas do campo científico. Seus agentes buscam autonomia adiante da pressão de outros campos (econômico, político, religioso) e estão distribuídos a partir das posições de poder e dos capitais que acumulam. Os agentes dominantes buscam dispor dos mecanismos de inculcação dos modos de agir/pensar considerados adequados, bem como de definição dos critérios de progressão numa carreira no campo. Possuem em comum a valorização de alguns capitais simbólicos, como a credibilidade e autoridade assenta no reconhecimento de mérito pelos pares-concorrentes. O desinteresse e a autonomia crítica para a escolha dos trabalhos que serão publicados são condições essenciais dos valores oriundos do campo científico e que dão credibilidade a cada revista 55. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC; 2013..

Autores brasileiros reconhecem as publicações como “importantes instâncias de consagração e legitimação de pesquisas e pesquisadores66. Santos SM, Noronha DP. Periódicos brasileiros de Ciências Sociais e Humanidades indexados na base SciELO: características formais. Perspect Ciênc Inf (Online) 2013; 18:2-16. (p. 13-4), assinalando o alto valor que um artigo científico possui no mercado acadêmico 77. Barradas Barata RC. Desafios da editoração de revistas científicas brasileiras da área da saúde. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:929-9.. Desta forma, o editor seria um dos agentes privilegiados, capaz de “fazer existir” - a partir de um sistema sustentado pela crença do valor da ciência - um autor e sua publicação 11. Zuckerman H, Merton RK. Patterns of evaluation in science: institutionalization, structure and functions of the referee system. Minerva 1971; 9:66-100.,44. Bourdieu P. Uma revolução conservadora na edição. Política & Sociedade 2018; 17:198-249..

Apesar do papel estratégico da atuação dos editores, no campo da Saúde Coletiva poucos estudos têm se dedicado ao tema 77. Barradas Barata RC. Desafios da editoração de revistas científicas brasileiras da área da saúde. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:929-9.,88. Minayo MCS, Gomes R. Divulgação científica: a última e imprescindível etapa do processo científico. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:4.,99. Barradas Barata RC. Dez coisas que você deveria saber sobre o Qualis. Revista Brasileira de Pós-Graduação 2016; 13:13-40., havendo maior escassez quando se focam as editorias de Ciências Sociais em Saúde. A atuação da editoria científica em Ciências Sociais, obviamente, dialoga com o próprio subcampo, suas disputas e formas de conformação na Saúde Coletiva. Esse subcampo é formado por agentes de perfis e trajetórias diversas de formação, sem uma “padronização” de conteúdos de base, abarcando uma enorme diversidade temática. Apesar de ocupar posição subalterna na oferta de disciplinas dos cursos da área e no financiamento em pesquisa, é reconhecido como essencial para a reflexão crítica e interdisciplinar fundante da Saúde 1010. Nascimento JL, Nunes ED. Quase uma auto/biografia: um estudo sobre os cientistas sociais na saúde a partir do Currículo Lattes. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:1077-84.,1111. Deslandes S, Maksud I. Ensino de metodologias em Ciências Sociais e Humanas nos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva (2002-2016). Cad Saúde Pública 2020; 36:e00133619.,1212. Ianni AMZ. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo Social 2015; 27:13-32..

Nesse sentido, o presente artigo objetiva analisar a atuação dos editores de Ciências Sociais do campo da Saúde Coletiva e suas concepções acerca do processo de avaliação de artigos científicos, sua visão e relação com os demais agentes da prática editorial e, sobretudo, seu papel na conformação de um habitus científico.

Percurso metodológico

A reflexão apresentada neste artigo se deu a partir da análise de entrevistas com editores(as)-chefes e editores(as) associados(as) da área de Ciências Sociais de revistas de destaque do campo da Saúde Coletiva. As revistas foram selecionadas por serem as que mais publicam artigos de Ciências Sociais e estarem situadas entre os extratos mais altos do Qualis de 2016 (entre A2 e B1). São elas: Ciência & Saúde Coletiva; Saúde e Sociedade; Interface: Comunicação, Saúde e Educação; Physis: Revista de Saúde Coletiva; Cadernos de Saúde Pública; e Revista de Saúde Pública. Não foram incluídas revistas exclusivamente de cunho temático (p.ex.: gênero, trabalho, educação).

Entre novembro de 2019 a março de 2020, 13 entrevistas semiestruturadas foram realizadas, a maioria presencialmente, nos ambientes institucionais de trabalho do(a) editor(a), localizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que confirma a concentração desigual do campo acadêmico da Saúde Coletiva no Brasil. Destas, três entrevistas foram realizadas virtualmente, através das ferramentas Skype (https://www.skype.com) e Hangout (https://hangouts.google.com). Dos entrevistados 4 são homens e 9 mulheres; 5 graduados em Medicina, 1 em outro curso da área da Saúde, 7 em Ciências Sociais e Humanas; a formação doutoral da maioria se localiza nas áreas da Medicina Preventiva/Saúde Coletiva (5) e em Ciências Sociais (6), todos titulados há mais de 17 anos e a maioria realizou o pós-doutorado. Quanto à faixa etária, 5 estão entre 50 e 60 anos e os demais acima dos 60.

As entrevistas foram transcritas na íntegra e, a fim de proteger a identidade dos entrevistados, seus nomes foram substituídos pelas designações: EC - editor(a)-chefe; e EACS - editor(a) associado(a) de Ciências Sociais, bem como suas revistas foram codificadas com numeral de 1 a 6.

Foram empreendidas sucessivas leituras de familiarização com o texto, seguidas pela identificação de temas, codificação de conteúdos, definição/nomeação dos temas, agrupamentos, elaboração de relatório descritivo e produção de inferências interpretativas.

Foi utilizado o processador de acervo NVivo versão 12 (https://www.qsrinternational.com/nvivo/home) e a codificação foi feita pelas duas autoras de forma independente, seguida de consensos interpretativos descritos no Quadro 1.

Quadro 1
Codificação: nós temáticos e subtemas.

A análise temática adotada reconhece que as experiências relatadas manifestam estruturas de relevância de significados atribuídos pelos sujeitos, que podem ser explicitados pela interpretação em ordenamentos e tipologias 1313. Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol 2006; 3:77-101.. Tais esquemas interpretativos são problematizados pela historicidade desses depoimentos e situados a partir do quadro teórico adotado, reconhecendo, a partir da inspiração bourdiana “as estruturas invisíveis que os organizam1212. Ianni AMZ. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo Social 2015; 27:13-32. (p. 705), e compreendendo que trajetórias pessoais e espaços institucionais contribuem para orientar sua visão de mundo. As categorias analíticas que conduziram a interpretação foram: campo científico, habitus e posições de campo 44. Bourdieu P. Uma revolução conservadora na edição. Política & Sociedade 2018; 17:198-249.,55. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC; 2013.,66. Santos SM, Noronha DP. Periódicos brasileiros de Ciências Sociais e Humanidades indexados na base SciELO: características formais. Perspect Ciênc Inf (Online) 2013; 18:2-16.,1313. Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol 2006; 3:77-101.,1414. Bourdieu P. Compreender. In: Bourdieu P, editor. A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2012. p. 693-732..

Duas observações metodológicas precisam ser feitas e dizem respeito às posições dos agentes diante do campo. A primeira delas concerne ao binômio editor-pesquisador. Nós, autoras deste artigo, também atuamos como editoras em revistas científicas da área e acionamos conhecimentos prévios dessa realidade, além de termos como limite certo horizonte interpretativo partilhado e a que nos propomos problematizar. A segunda nota relaciona-se ao binômio entrevistados-intelectuais. Boa parte dos entrevistados figura tanto como pensadores da Saúde Coletiva quanto como analistas da prática editorial do campo. Algumas das referências teóricas acionadas por nós se fazem presentes no próprio repertório autoanalítico desses agentes e algumas das obras foram por eles redigidas.

Reconhecemos que nossas interpretações estão assentadas nos marcos teóricos e são produtos de reflexões possibilitadas pelas nossas trajetórias e posições. Recorremos ao exercício proposto por Bourdieu acerca da objetivação participante para demarcar esse posicionamento ético-metodológico 1414. Bourdieu P. Compreender. In: Bourdieu P, editor. A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2012. p. 693-732.,1515. Bourdieu P. Objetificação participante. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção 2017; 16:73-86..

Revistas, editores e a conformação de habitus

Os meios de divulgação científica regulam a circulação do conhecimento científico, permitindo seu reconhecimento e publicização, ou o relegando ao ostracismo. A pesquisa que não chega de forma exitosa à publicização nos canais reconhecidos pelo campo perde credibilidade e não se converte em capital científico 88. Minayo MCS, Gomes R. Divulgação científica: a última e imprescindível etapa do processo científico. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:4.. As revistas e seus editores são os agentes que coligam o pesquisador de um campo à sua comunidade de pares-concorrentes, cobrando e também definindo um certo padrão do que é a “boa ciência”. Como reconhecem os(as) editores(as) entrevistados(as), as revistas têm importante papel na defesa de um certo habitus através da construção e reprodução de parâmetros, seja para a estruturação do relato acadêmico e para a definição e exposição metodológica, seja para as formas de apropriação teórica.

“...Afinal a pesquisa, ela existe quando ela é publicada. (...) É a publicação que faz a ciência, quando você passa pelo crivo dos pares. Então, quando você está nessa posição de poder influenciar e dizer ‘Isso é publicado e isso não é’, você está moldando o campo, sem dúvida, de forma importante, porque a gente está dizendo (...) É uma revista da área da Saúde Coletiva, o que essa revista da área da Saúde Coletiva está publicando, não está publicando. O que ela está publicando em Ciências Sociais, o que ela está deixando passar, se tem menos acesso, o que ela está recusando? (EACS-Rev2).

As revistas também atuam na eleição dos objetos que serão considerados relevantes para o campo. O pêndulo entre o rigor, os parâmetros de “qualidade científica” 1616. Carvalho MS, Travassos C, Coeli CM. Um bom texto. Cad Saúde Pública 2013; 29:1701. que as revistas ajudam a imprimir e a necessidade de inovação, de superar o “mais do mesmo” 1717. Carvalho MS, Travassos C, Coeli CM. Mais do mesmo? Cad Saúde Pública 2013; 29:2141., são também objeto de reflexão dos(as) editores(as) entrevistados(as). A agência autônoma dos editores é mencionada como necessária para alargar os horizontes das esferas de reprodução, permitindo figurar no cenário consagrado da publicação as perspectivas epistêmicas e teórico-metodológicas emergentes ou contra-hegemônicas.

É um risco, porque sempre tem um certo conservadorismo também. A gente pode estar moldando a área se a gente não tem abertura para o novo (...). Eu tenho visto o novo não chegar como eu gostaria que chegasse. Ou a gente também não está fazendo o nosso papel de convidar, de propor, de ter abertura para que nos mandem artigos, mas tenho procurado ficar vigilante disso, para não recusar artigos por conservadorismo ou por discordância do que pode ser teoricamente novo, metodologicamente novo...” (EACS-Rev2).

As revistas estão sujeitas a um conjunto de imposições externas que as afetam em sua própria produção e esferas de reprodução. A própria estrutura dos artigos imposta por muito tempo foi o modelo IMRD (Introdução, Método, Resultados, Discussão) típico da editoria das ciências naturais, destoando completamente da arquitetura epistêmica e de apresentação dos textos das Ciências Sociais e Humanas. Via de regra, a classificação das revistas de Ciências Sociais e Humanas da Saúde Coletiva recebiam um Qualis inferior na área da Saúde, assim como as revistas da área de Humanas, confirmando a hegemonia das Ciências Biomédicas nesse campo.

A conformação na área da Saúde de rankings como Qualis Periódicos, embora não se destine a ser um fator de indexação de revistas 99. Barradas Barata RC. Dez coisas que você deveria saber sobre o Qualis. Revista Brasileira de Pós-Graduação 2016; 13:13-40., acaba por influenciar no cálculo realizado pelos autores dos melhores rendimentos ao investimento de onde publicar. As revistas mais bem posicionadas nessa estratificação, além de serem mais procuradas, dispõem de mais chances de obter recursos e financiamentos.

Tal cálculo de ranqueamento está em fase de reelaboração pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mas por décadas se baseou no fator de impacto das revistas, produzindo disparidades, com desvantagens para os periódicos e artigos das Ciências Sociais, geralmente com menor público leitor e, portanto, menor citabilidade 99. Barradas Barata RC. Dez coisas que você deveria saber sobre o Qualis. Revista Brasileira de Pós-Graduação 2016; 13:13-40.,1818. Martinovich V. Indicadores de citación y relevancia científica: genealogía de una representación. Dados 2020; 63:e20190094..

Os indicadores e metas da política de ciência e tecnologia no país, embora externas, afetam diretamente todas as revistas científicas, diminuindo consideravelmente a autodeterminação do que seria um campo editorial. A política de produtivismo, que apesar de redundar em um quantitativo muito maior de textos submetidos e publicados 1818. Martinovich V. Indicadores de citación y relevancia científica: genealogía de una representación. Dados 2020; 63:e20190094., não necessariamente implica em produção inovadora ou mesmo de qualidade, nem sequer em citações em quantidade satisfatória 1919. Camargo Jr. KR. Produção científica: avaliação da qualidade ou ficção contábil? Cad Saúde Pública 2013; 29:1707.,2020. Camargo Jr. KR. Publicar ou perecer, ou perecer por publicar (em excesso)? Physis (Rio J.) 2014; 24:337-9.,2121. Carvalho MS, Travassos C, Coeli CM. Valorizando a revisão por pares. Cad Saúde Pública 2014; 30:2485-6.. Filtrar as publicações que somente confirmam o já exaustivamente conhecido se torna um desafio reconhecido por todos os editores.

Além de fazer a gestão das imposições externas que afetam sua autonomia e sobrevivência econômica, os editores se voltam para o interior do campo, atuando na definição dos temas que serão considerados relevantes e dos modos de estudá-los e de interpretá-los.

Escolha e atuação do editor de Ciências Sociais: da alienação parcial à quase-autonomia

Segundo os depoimentos, os editores associados de Ciências Sociais e Humanas foram convidados a compor o corpo editorial das revistas à medida que a demanda de artigos dessa área aumentou. A escolha desses profissionais parece seguir um fluxo de reconhecimento de suas trajetórias acadêmicas e não propriamente conhecimento das práticas de editoria. Entre os requisitos, o acúmulo do capital de publicação é decisivo. A expertise solicitada pode ser metodológica (domínio de “métodos qualitativos”), de campos temáticos (gênero, relações de trabalho etc.) ou disciplinares (filosofia, antropologia etc.). Espera-se do editor o domínio do habitus necessário ao sucesso na prática da publicação acadêmica e uma certa maturidade crítico-reflexiva do campo científico.

“...A gente tenta trazer para essa editoria pessoas que estão atuando nesse campo e que a gente reconhece que estão tendo essa capacidade sendo bons pesquisadores, com bastante produção, inclusive, para estarem afeitos a essas questões e terem esses cuidados metodológicos” (EC-Rev1).

A editoria não é vista como um ofício, mas uma atividade da carreira científica, “função de prestígio” para a qual não se exige uma educação formal específica. A despeito de já existirem cursos profissionalizantes em alguns países, o exercício da atividade no Brasil conforma um saber aprendido “intuitivamente” a partir de orientações gerais dadas pelos editores-chefes, pelo debate entre editores e pelo domínio prático das lógicas e papéis concernentes às etapas do trabalho editorial.

O trabalho editorial se realiza em diversas etapas. O fluxo de recepção e distribuição dos artigos varia em cada revista, mas geralmente os editores associados recebem os artigos designados pelos editores-chefes após uma triagem inicial quanto ao alinhamento do artigo em relação à missão da revista e uma rápida análise sobre qualidade teórico-metodológica e originalidade. A distribuição da carga de trabalho, i.e., de quantos artigos cada editor associado receberá é assunto de gestão da editoria-chefe. Se numa revista houver dois ou mais editores de Ciências Sociais, os artigos serão divididos segundo o perfil de expertise temática/metodológica de cada um. Os EACS não possuem a dimensão da totalidade, não sabem quantos ou quais artigos foram submetidos, analisados, recusados ou aceitos. Tal divisão do trabalho produz, em certa medida, uma alienação desse editor, que perde a perspectiva da massa crítica dessa produção que se candidata, seus temas mais recorrentes e quais obtiveram a aprovação.

Entrevistadora: “E como é que é feita essa divisão? Quais artigos vão pra você, quais artigos vão pro [nome do outro editor de Ciências Sociais e Humanas em Saúde]?”.

Editora: “Não sei. Não sei. Por exemplo, tem [nome do outro editor associado] que está lá. Então, eu acho que é uma pessoa que veio e que deve estar pegando uma grande demanda, porque a minha demanda diminuiu bastante. Tem a [nome de outro editor] que é das Ciências Sociais. Mas é isso que eu te disse, não tem nenhuma coordenação em relação a isso. Eu olho os artigos que caem pra mim, na minha caixa” (EACS-Rev1).

Após essa fase inicial, o editor assumirá o percurso avaliativo daquele artigo. Terá a prerrogativa de fazer uma recusa prévia do texto, enviá-lo para pareceristas, devolvê-lo aos autores para que eles reelaborem o trabalho e, ao final, aceitá-lo ou recusá-lo. Sua decisão deverá ser sustentada em argumentação sólida sobre as qualidades do artigo (ou a falta delas) para que os editores-chefes examinem todo o processo e ratifiquem sua escolha. O editor associado possui uma autonomia relativa delimitada pela disponibilidade de uma base técnica de argumentação, construída a partir da sua relação com os pareceristas, e pela autoridade do seu editor chefe, que, em última instância, tem uma visão mais ampla sobre o que a revista tem publicado ou quais prioridades deseja imprimir à política editorial.

Pareceristas e editores

A avaliação externa visa agregar, há séculos, os valores de credibilidade e isenção à revista e, por conseguinte, aos artigos ali publicados. Os pareceristas constituem os juízes externos, cuja autoridade e legitimação estão assentadas na premissa do ethos do agir desinteressado a favor do melhor julgamento do mérito científico do trabalho 2222. Stumpf I. Avaliação pelos pares nas revistas de comunicação: visão dos editores, autores e avaliadores. Perspect Ciênc Inf (Online) 2008; 13:18-32.. O sistema de revisão duplo-cego, adotado pelas revistas de Saúde Coletiva e pela maioria das revistas científicas brasileiras, pressupõe que as regras do jogo editorial serão garantidas 2323. Werlang E. Revisão por pares: um estudo da gestão de avaliadores nas revistas científicas [Dissertação de Mestrado]. Florianópolis: Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina; 2013.. Obviamente que essa performance ética e técnica pode encontrar os vieses do conflito de interesses ou mesmo do pouco domínio sobre o tema tratado 2424. Castellanos GRR, González AIS. Ética de la revisión por pares en publicaciones científicas. Revista Médica Electrónica 2019; 41:1533-49.. Esses comportamentos são reconhecidos pelo campo editorial científico como exceções ou “desvios” inerentes às práticas intersubjetivas de avaliação e passíveis de melhor adequação 2222. Stumpf I. Avaliação pelos pares nas revistas de comunicação: visão dos editores, autores e avaliadores. Perspect Ciênc Inf (Online) 2008; 13:18-32.,2424. Castellanos GRR, González AIS. Ética de la revisión por pares en publicaciones científicas. Revista Médica Electrónica 2019; 41:1533-49.,2525. Jenal S, Vituri DW, Ezaías GM, Silva LA, Caliri MHL. O processo de revisão por pares: uma revisão integrativa de literatura. Acta Paul Enferm 2012; 25:802-8.,2626. Patrus R, Dantas DC, Shigaki HB. Pesquisar é preciso. Publicar não é preciso: história e controvérsias sobre a avaliação por pares. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior 2016; 21:799-820..

Se por um lado o número de artigos aumentou exponencialmente, por outro, o de pareceristas qualificados não seguiu o mesmo ritmo. Além de também haver o cálculo egoísta dos que só se beneficiam do sistema sem nele colaborar. Dos pareceristas é esperado que correspondam a uma certa lógica da dádiva acadêmica, ou seja, os pareceres são feitos gratuitamente, reforçando o sistema de vínculos e alianças entre autores e avaliadores, no qual os juízes são também autores, numa permuta de papéis que se espera solidária.

A composição do corpo de juízes dessa produção científica não é uma tarefa simples. Como num mosaico, cada parecerista será convocado pelo domínio de uma expertise temática, teórica ou metodológica 2222. Stumpf I. Avaliação pelos pares nas revistas de comunicação: visão dos editores, autores e avaliadores. Perspect Ciênc Inf (Online) 2008; 13:18-32.. Em alguns casos, um parecerista fora do campo da Saúde Coletiva, mas atuante no campo das Ciências Sociais, será requisitado. Essa visada parcial será recomposta em sua integralidade pelo editor, que pesará o conjunto da avaliação.

A dificuldade de encontrar pareceristas qualificados e com domínio disciplinar em Ciências Sociais e Humanas em Saúde foi um tema recorrente nas entrevistas. Não raro o editor dispara dezenas de convites para ter o número mínimo de avaliadores, aumentando consideravelmente o tempo de análise. Tal situação tem sido retratada na literatura como um dos elementos críticos do sistema de peer review2323. Werlang E. Revisão por pares: um estudo da gestão de avaliadores nas revistas científicas [Dissertação de Mestrado]. Florianópolis: Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina; 2013.,2727. Lasker SP. Peer review system: a systematic review. Bangladesh Journal of Bioethics 2018; 9:13-23.,2828. Mulligan A. Is peer review in crisis? Oral Oncol 2005; 41:135-41.. Esse quadro, segundo alguns editores-chefes, apesar de ser uma constante em todas as áreas, parece ser ainda mais crítico para as Ciências Sociais e Humanas em Saúde, por ser uma comunidade menor na Saúde Coletiva. Muitas vezes o editor associado precisa recorrer a profissionais de fora do campo da Saúde Coletiva ou das Ciências Sociais, não raro produzindo pareceres alheios à lógica epistêmica das Ciências Sociais.

Editores mais antigos relatam que compunham listas com nomes de possíveis pareceristas a partir de uma rede própria de pares, mapeados nos vários espaços acadêmicos (congressos, fóruns, associações etc.). Cada revista compunha seus bancos de pareceristas a partir do capital relacional dos seus editores associados, além de acrescentar os nomes dos próprios autores que ali publicaram. Mais recentemente, com o enorme crescimento da demanda, a rede de referência conhecida dos editores passa a não ser suficiente e as plataformas digitais são acionadas para auxiliar essa identificação a partir de amplas bases bibliográficas ou consultas a empresas da área como a Publons (de propriedade da Clarivate Analytics, também dona da Web of Science) 2929. Nassi-Calò L. In time: PUBLONS busca atrair pareceristas e aperfeiçoar a avaliação por pares. Rev Paul Pediatr 2017; 35:367-8.. O editor contará com duas fontes de pareceristas a quem recorrer, uma conhecida e permeável a pedidos pessoais (cumprimento de prazo ou de atenção a determinado aspecto do artigo) e outra distante das suas relações (e desconhecida quanto ao seu desempenho avaliativo). Dialeticamente, com o crescimento quantitativo da demanda por publicação, as relações qualitativas entre editores e pareceristas são modificadas, migrando de um modelo de controle artesanal das relações, assentado nas redes acadêmicas e pessoais do editor, para outro impessoal, ancorado no big data das bases de indexação e de bancos de pareceristas.

Então, assim, eu credenciei as pessoas. A gente tinha uma separação um pouco por área, então assim, nisso eu acho que eu ajudei bastante no início, de criar esse banco de pareceristas” (ECS-Rev1).

“...Porque o Scholar [Google Scholar] também, o editor tem a possibilidade na hora que ele entra com palavras-chave e o próprio sistema dá, o banco que é da revista e o banco de pareceristas que estão cadastrados no Scholar (EC-Rev4).

Os editores parecem convergir ao delinear um perfil de parecerista que atuará bem, em termos dos prazos de resposta e da qualidade do parecer emitido. Nessa construção típico-ideal, o parecerista que melhor opera é alguém no meio da carreira, com experiência acadêmica acumulada, mas não tão famoso a ponto de não ter tempo para se dedicar a essa tarefa pouco reconhecida nos rankings produtivistas. É alguém que, no sentido bourdiano, ainda tem interesse e precisa “investir no seu currículo”, “fazer um nome” em meio aos seus pares 66. Santos SM, Noronha DP. Periódicos brasileiros de Ciências Sociais e Humanidades indexados na base SciELO: características formais. Perspect Ciênc Inf (Online) 2013; 18:2-16.. Em contrapartida, pesquisadores consagrados são reconhecidos como uma opção nem sempre confiável, porque provavelmente não terão tempo de cumprir a tarefa ou emitirão uma análise rápida.

Não adianta você chamar grandes nomes do campo... Que é assim, aquela pessoa que você acha que é a mais sabida naquele assunto, ela não vai dar o parecer naquele artiguinho ali da revista. Provavelmente ela vai estar preocupada em escrever os artigos dela. Não tem tempo para dar parecer. Eu tenho um certo time de pós-doutores (EACS-Rev3).

Diante de recusas de pareceristas em avaliar o artigo, ou quando essas análises são apenas superficiais, o editor poderá eventualmente atuar como parecerista 77. Barradas Barata RC. Desafios da editoração de revistas científicas brasileiras da área da saúde. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:929-9.. Tal desempenho será acionado para que o tempo de acompanhamento do artigo não extrapole os limites definidos pelas bases indexadoras que avaliam a revista e para não prejudicar os autores em seus prazos. A justaposição dos papéis, por um lado, colide com a lógica da revisão “cega” adotada pelas revistas, mas justifica o próprio sistema ao prover pelo menos dois pareceres “independentes”.

Além dessas dificuldades práticas, os editores mencionam os desafios teóricos em atuar na editoração de trabalhos que se situam na interseção entre tantos temas e saberes, perpassando fronteiras diversas entre as clínicas biomédicas, o campo “psi” e as distintas disciplinas que compõem as Ciências Sociais e Humanas em suas interfaces com a Saúde.

O papel didático de editores e pareceristas na inculcação de um habitus e a conformação científica e política do campo

O exercício didático de inculcação do conjunto de atributos e modos considerados adequados ao exercício daquele campo científico, que cabia ao parecerista e ao editor, foi sendo deixado de lado ao longo dos anos. No caso dos pareceristas, relatos rápidos e instrumentais foram tomando o lugar das análises detalhadas, que exigiam muita dedicação e horas de pesquisa e estudo. Este espaço de trocas acadêmicas e do exercício de inculcação pedagógica de um certo habitus científico foi sendo preterido. O aumento dos artigos submetidos, o tempo cada vez mais escasso diante do acúmulo de muitas funções e certo cálculo racional de onde investir para acumular outros capitais científicos mais valorizados parecem explicar tais deslocamentos.

“...Cada vez mais as revisões são feitas de maneiras menos úteis do ponto de vista pedagógico. As pessoas não se dispõem a gastar aquele tempo para escrever direitinho” (EC-Rev1).

A gente tinha uma certa, não digo paciência, mas era um olhar mais pedagógico. Agora nós não temos tempo disso. Porque 170 artigos entram numa semana. Quer dizer, em média. Então você não tem como fazer isso. E você não tem como também lotar os editores associados. E você também não tem revisores” (EC-Rev4).

Nesse exercício de mediação das relações e posições do campo, o editor “polirá” os pareceres de modo a coibir julgamentos morais ou afirmações rudes. Pode intervir corrigindo erros gramaticais ou afirmações equivocadas sobre certo tipo de metodologia. Diante de pareceres divergentes, o editor associado atuará como o “peso da balança”. A decisão final será definida junto aos editores-chefes, fechando um ciclo do processo de trabalho editorial. O editor-chefe solicitará ao editor de Ciências Sociais que “defenda” os argumentos favoráveis ou desfavoráveis à publicação, que poderão ser acatados ou, mais excepcionalmente, contestados. O editor constitui uma “ponte” entre os autores e esta comunidade de pares-concorrentes que são os pareceristas e os editores-chefes.

“Uma aula do que não fazer”: os critérios de qualidade científica de um artigo

Nas entrevistas com os editores, compreendemos que os critérios de qualidade científica extrapolam a formalidade expressa nas normas. Não há como defini-los de forma objetiva e padronizada, embora as revistas forneçam instruções aos autores.

O adequado uso de teorias e métodos na fundamentação e análise dos resultados são os critérios de qualidade científica exigidos pelos editores para a publicação de artigos de Ciências Sociais e Humanas. Este foi um aspecto unânime entre os entrevistados, que refletiram sobre a formação dos pesquisadores nas pós-graduações de Saúde Coletiva que, em dado momento, tornam-se autores. Em última instância, a baixa qualidade dos artigos reflete a necessidade de aprimoramento do ensino de Ciências Sociais no campo da Saúde Coletiva.

“...Falta densidade teórica em geral. Eu acho que isso é um problema das nossas pós-graduações que eu acho que estão muito, como é que eu diria? Muito práticas. Muito instrumentais e falta teoria” (EC-Rev2).

Reconhecem que um bom uso de referenciais das Ciências Sociais e Humanas se deve a um amplo rol de práticas interligadas ao ensino formal de disciplinas, à pesquisa, à participação em fóruns acadêmicos, e ao convívio e trabalho com orientadores, constituindo-se, dessa forma, num habitus científico próprio 55. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC; 2013..

Ainda que a formação teórica de Ciências Sociais se apresente no currículo interdisciplinar de Saúde Coletiva, por sua discreta presença ela acaba se diluindo ao longo da formação, constituindo-se num habitus fraco. A ausência de um leque consistente de disciplinas de teoria social, por um lado, e a concorrência entre diferentes áreas disciplinares, por outro, levam a uma necessária formação complementar que, via de regra, será feita com a mediação dos orientadores ou a participação em disciplinas em outras instituições. Nesse sentido, tal fatia corresponderia, quando muito, a uma ou duas disciplinas teóricas e uma ou duas disciplinas metodológicas, com preferência por textos de compilação 1111. Deslandes S, Maksud I. Ensino de metodologias em Ciências Sociais e Humanas nos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva (2002-2016). Cad Saúde Pública 2020; 36:e00133619.,3030. Ferreira J, Brandão ER. Desafios da formação antropológica de profissionais de Saúde: uma experiência de ensino na pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface (Botucatu) 2019; 23:e170686.,3131. Deslandes S, Maksud I. Capitais científicos em saúde coletiva: proposta de análise inspirada nas fontes utilizadas na obra Homo academicus. Saúde Soc 2019; 28:324-36..

Como os editores da revista Dados: Revista de Ciências Sociais, referência nas Ciências Sociais 3232. Campos LA, Candido MR. Transparência em DADOS: submissões, pareceristas e diversidade no fluxo editorial dos últimos anos. Dados Rev Ciênc Sociais 2022; 65:e20220000., nossos entrevistados relatam que os textos recusados apontam para uma sequência de falhas ou discrepâncias, a maioria delas associadas à fragilidade teórico-metodológica. Artigos que não se encaixam no escopo da revista, trabalhos essencialmente descritivos, com pouco ou nenhum referencial teórico, uso inconsistente do método, baixa capacidade analítica e caráter normativo/prescritivo são elementos recorrentemente citados nos artigos recusados. Tais limitações se apresentam em todos os campos de conhecimento, mas nas Ciências Sociais a falta de adensamento teórico as destitui de sua credibilidade científica e o tom normativo foge da lógica reflexiva desse campo disciplinar.

Nas Ciências Sociais, assim, é muito importante uma compreensão de uma abordagem teórica mais densa. (...) E a gente com tempo, com um pouco de experiência, começa a perceber a malandragem, que a pessoa só citou, mas ela não se apropriou. Não faz uma discussão de resultados que está dialogando teoricamente, criticamente, criativamente, muito menos com as Ciências Sociais” (EC2-Rev5).

Trabalho com a temática muito restrita. Não tem uma revisão teórica adequada e começa a fazer um monte de extrapolações absurdas a partir de meia dúzia de entrevistas” (EC-Rev6).

Artigos de autoria de agentes que estão em etapas iniciais da carreira científica têm mais chances de serem recusados. Menções a fraudes, fabricação de resultados e plágio também estiveram presentes nos relatos dos editores. Sobre esses aspectos, autores enfatizam que o processo de avaliação científica vem cada vez mais incorporando a dimensão ética, que se constitui num desafio que vai além da “forma e conteúdo3333. Pessanha C. Critérios editoriais de avaliação científica: notas para discussão. Ciência da Informação 1998; 27:226-9. (p. 228).

A baixa qualidade dos artigos também é compreendida pelos editores como resultante da falta de tempo para a análise e a escrita adequadas. Para disputar um espaço cada vez mais concorrido, é preciso demonstrar alguns atributos do habitus editorial científico: ter domínio e habilidade das ferramentas teórico-conceituais, saber elaborar um bom resumo, construir e apresentar um objeto que apresente relevância e inovação, e ultrapassar o nível descritivo.

“...As ideias são interessantes, podem até ser interessantes, mas elas não tiveram um tempo de serem amadurecidas. Mas eu acho que a gente não está tendo tempo de amadurecer nada” (EC2-Rev5).

Os editores apontaram a compreensão restrita do papel das metodologias qualitativas. Tal concepção assumiria o fetiche da equivalência entre método e área disciplinar, isto é, como se todo artigo de Ciências Sociais e Humanas utilizasse somente abordagens qualitativas e, por sua vez, como se qualquer artigo com método qualitativo correspondesse ao domínio das Ciências Sociais e Humanas. O uso operacional dos métodos qualitativos apartados da teoria tem marcado a produção do campo da Saúde Coletiva, na maioria das vezes com pouca ou nenhuma referência às áreas disciplinares que a localizariam epistemologicamente 3434. Gomes MHA, Silveira C. Sobre o uso de métodos qualitativos em Saúde Coletiva, ou a falta que faz uma teoria. Rev Saúde Pública 2012; 46:160-5.,3535. Bosi MLM. Produtivismo e avaliação acadêmica na Saúde Coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Cad Saúde Pública 2012; 28:2387-92..

A associação entre os modos de fazer pesquisa social e epidemiológica figurou em algumas narrativas, destacando o embate epistêmico e a hegemonia dessa última na Saúde Coletiva. O raciocínio dos métodos epidemiológicos tenderia a influenciar critérios de cientificidade no campo da Saúde Coletiva. Sua escrita pretensamente neutra, impessoal e objetiva se mostra presente, mesmo entre pesquisadores que se valem de metodologias qualitativas. Este aspecto pode estar presente inclusive na avaliação do parecerista que realizará o julgamento do artigo e até mesmo de editores 3535. Bosi MLM. Produtivismo e avaliação acadêmica na Saúde Coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Cad Saúde Pública 2012; 28:2387-92..

Por outro lado, ainda que considerem que boa parte dos artigos que se candidatam à publicação tenham fragilidades e inconsistências, os editores também apontam uma melhora significativa da produção da área como um todo. No entanto, nos parece que tal melhoria estaria associada aos pesquisadores mais experientes, sendo aqueles cujos habitus de Ciências Sociais e Humanas se apresentam mais fortemente. Inclusive vigorou entre os editores uma certa autocrítica em relação à sua própria produção intelectual em etapas iniciais de seu trajeto acadêmico. Essa reflexão reforça a hipótese do trabalho do tempo como fortalecedor de um habitus55. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC; 2013.,1515. Bourdieu P. Objetificação participante. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção 2017; 16:73-86..

Considerações finais

Os editores de Ciências Sociais e Humanas das revistas de Saúde Coletiva são agentes que operam com as contradições e pressões vividas na prática editorial. Gradativamente conformam um habitus editorial cunhado pela prática empírica, pela formação autodidata e pela dedicação solidária e voluntária.

Num campo de disputas epistêmicas, onde os artigos em Ciências Sociais e Humanas em Saúde constituem minoria das publicações nas revistas de Saúde Coletiva, um dos pontos mais delicados para a atuação editorial e para toda a comunidade que dela depende é o exercício de definição e aferição de critérios de qualidades dos textos. Vale lembrar que falamos de um campo cuja formação se mostra problemática, agregando muitos pesquisadores em diferentes e desiguais estágios de apropriação de um habitus das Ciências Sociais no campo da Saúde Coletiva. Em particular, a editoria nas Ciências Sociais e Humanas em Saúde se dá em fronteiras por vezes borradas entre domínios teóricos das Ciências Sociais e o difuso campo dos “estudos qualitativos”.

Nas distintas fases da produção científica, os editores atuam no final do ciclo da pesquisa, impondo barreiras aos artigos considerados de baixa qualidade. Esse necessário anteparo faz a participação dos artigos de Ciências Sociais nas revistas de Saúde Coletiva se mostrar mais qualificada, ainda que em proporções modestas em comparação às demais áreas que compõem o campo. No entanto, seu trabalho didático de inculcação de um modo considerado adequado no manejo de teorias e metodologias das Ciências Sociais se encontra cada vez mais circunscrito à recusa dos artigos, o que sugere a importância de maior articulação entre os editores, fóruns de editores, programas de pós-graduação e demais agentes de formação de pesquisadores do campo para que possam atuar nas fases anteriores desse percurso, ampliando seu papel na conformação de um habitus científico em Ciências Sociais.

Como visto, os EACS pouco atuam na escolha dos temas a serem investidos pela revista, conformando uma atuação de certo modo “passiva”, orientada mais pelo exercício de avaliação da qualidade dos artigos que se apresentam e menos de incentivo e proatividade a publicações inovadoras, capazes de estimular o protagonismo teórico autônomo, por exemplo, em projetos decoloniais.

Inegavelmente o papel do editor de Ciências Sociais é estratégico para garantir a diversidade epistêmica e a interdisciplinaridade do campo, para que as narrativas das Ciências Sociais e Humanas se expressem e afetem as formas como as revistas da Saúde Coletiva se organizam, superando o marco hegemônico da produção biomédica.

Agradecimentos

Agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo financiamento do projeto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2022
  • Revisado
    06 Jul 2022
  • Aceito
    22 Jul 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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