Decisão compartilhada: por que, para quem e como?

Daniel Neves Forte Sobre o autor

Há quase 2.400 anos, Hipócrates recomendava que “o médico é quem comanda e decide”, e que “o paciente deve se colocar nas mãos de seu médico e obedecer a seus comandos11. Will JF. A brief historical and theoretical perspective on patient autonomy and medical decision making: Part I: the beneficence model. Chest 2011; 139:669-73. (p. 670). Esse tipo de visão, característica do paternalismo médico, no qual o dever de beneficência e não maleficência sustenta este tipo de postura passiva de pacientes, prevaleceu na medicina nos últimos 24 séculos. Mas, antes de fazer julgamentos apressados, é interessante olhar para os lados, ou seja, para basicamente todas as outras formas de relação social que foram tão comuns nesse período. Olhando para o direito, para a política, para as relações entre esposos ou entre pais e filhos, veremos o mesmo padrão 22. Platão. República. 2ª Ed. São Paulo: Escala; 2007.. E, se olharmos para antes disto, para as relações sociais nas sociedades humanas de caçadores-coletores, ou mesmo se olharmos para a biologia, nas relações sociais entre primatas ou entre canídeos, veremos, em última análise, o mesmo padrão 33. Wrangham R. The goodness paradox: the strange relationship between virtue and violence in human evolution. Nova York: Pantheon Books; 2019.. O indivíduo com maior ranking social manda, os demais obedecem. Coalizões entre indivíduos de maior poder garantem a manutenção do modelo em que a vontade do mais poderoso prevalece.

Para Norberto Bobbio 44. Bobio N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier; 2004., um dos cérebros por trás da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esse modelo começa a ruir na Idade Moderna, inicialmente com as Guerras Religiosas. Ali, o modelo soberano-súdito começa a ser substituído pelo modelo Estado-cidadão, em que o direito de se autodeterminar passa a ser, lenta e gradualmente, garantido a cidadãos que antes, como súditos, não tinham sequer o direito de escolher qual fé professar. Mas, segundo o jurista italiano, “os direitos do [humano], por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas44. Bobio N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier; 2004. (p. 5). Essa mudança gradual e heterogênea encontra em algumas partes do tecido social maior resistência. É o que percebemos na saúde e, em especial, na medicina. E, assim, foi só na década de 1970 que essas novas liberdades chegaram para pacientes. Foi a revolução da autonomia na relação médico-paciente. Mas, muito mais do que isso, foi o início da erosão do modelo soberano-súdito na medicina, no qual não só pacientes, mas também familiares, enfermeiros, legisladores, entre outros obedeciam às ordens dos soberanos no campo da medicina. E, como em outras áreas do saber, essa mudança não foi de uma vez, tampouco foi isenta de turbulências e problemas.

Basicamente, e em especial nas democracias ocidentais, o papel da autonomia de pacientes na relação médico-paciente veio, com muita frequência, garantido após conflitos nos quais o Judiciário e o Legislativo, que antes simplesmente respaldavam o que médicos opinavam 55. Rothman D. Strangers at the bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision making. Nova York: Basic Books; 1991., passaram a garantir que liberdades individuais já conquistadas em outros campos tivessem valor também para indivíduos na condição de pacientes. E então, numa guinada que mistura medicina defensiva com situações cada vez mais complexas do ponto de vista ético, em tempos cada vez mais corridos, médicos passaram a oferecer opções para que pacientes pudessem escolher como consumidores. Essa autonomia consumista, ou como brilhantemente colocam Hossne et al. 66. Hossne W, Pessini L, Siqueira JE, Barchifontaine CP. Bioética aos 40 anos: reflexões a partir de um tempo de incertezas. Bioethikos 2010; 4:130-43., essa autonomia solitária, passou a se tornar o modelo mais comum. E o pêndulo foi de um extremo, em que se prezava beneficência e não se reconhecia autonomia, para o outro oposto, no qual se preza autonomia e abdica-se do dever de beneficência. E frases como “é escolha dele, eu não me importo”, passaram a se tornar comuns nas bocas de profissionais da saúde. O trágico é que se importar é justamente uma das bases da palavra “cuidar”. Ou seja, em nome de respeitar escolha, abriu-se mão de prestar uma assistência minimamente humanizada.

Mas vale lembrar que esse é um movimento de 50 anos, numa história de pelo menos 2.400. Seria excessivo otimismo imaginar que mudaria de forma perfeita e conclusiva em tão pouco tempo. E assim as relações continuaram mudando. Só nos últimos 20 anos nos países desenvolvidos, e nos últimos poucos anos aqui no Brasil, que se compreende cada vez mais que essa autonomia solitária também não gera boas decisões, justamente por privar pacientes de recomendações e do saber de médicos exatamente nos momentos mais vitais e delicados da existência 77. Barry MJ, Edgman-Levitan S. Shared decision making: pinnacle of patient-centered care. N Engl J Med 2012; 366:780-1.. O que vemos é, não sem tempo, o crescimento do modelo de decisão compartilhada.

Para isso, é necessário entender que a decisão compartilhada não é nem a decisão paternalista, nem a consumista, mas sim um meio-termo entre os dois, no qual profissionais colocam suas opiniões técnicas sobre doenças, mas, antes, buscam compreender os valores de vida de pacientes para, assim, respeitarem pacientes como pessoas, como fins em si mesmos, e respeitarem também uma boa prática profissional baseada em evidências. Entender que o direito de um paciente recusar uma intervenção é amparado pela autonomia, mas o direito para demandar um tratamento fere a autonomia do profissional, que também é um fim em si mesmo. Entender que mais do que bom senso, decisão compartilhada é método no qual habilidades e competências em comunicação são as ferramentas necessárias. Entender que a tecnologia torna a bioética mais complexa e exige, assim, maior capacitação de profissionais nesse campo, para que possam atuar em dilemas cada vez mais desafiadores. E, acima de tudo, entender que não se pode abrir mão nem do respeito à autonomia, nem do dever da beneficência. Afinal, como já foi dito, o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. Importar-se com o sofrimento do outro e agir para amenizá-lo é a base dos cuidados paliativos contemporâneos 88. Kelley AS, Morrison RS. Palliative care for the seriously ill. N Engl J Med 2015; 373:747-55., área que impulsionou e continua impulsionando o crescimento das decisões compartilhadas, ao explicitar que precisamos de técnicas para tratar doença e, também, de técnicas para cuidar de sofrimento. E, assim, decisões compartilhadas se mostram como o modelo ideal de decisões 77. Barry MJ, Edgman-Levitan S. Shared decision making: pinnacle of patient-centered care. N Engl J Med 2012; 366:780-1., abrangendo não só a relação médico-paciente, mas também a relação entre profissionais 99. Michalsen A, Long AC, DeKeyser Ganz F, White DB, Jensen HI, Metaxa V, et al. Interprofessional shared decision-making in the ICU: a systematic review and recommendations from an expert panel. Crit Care Med 2019; 47:1258-66..

Este fascículo de CSP traz justamente uma coletânea de novos artigos nesse sentido. Começando por um necessário e relevante posicionamento conjunto da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) sobre tomada de decisão compartilhada em cuidados paliativos 1010. Vidal EIO, Kovacs MJ, Silva JJ, Silva LM, Sacardo DP, Bersani ALF, et al. Posicionamento da ANCP e SBGG sobre tomada de decisão compartilhada em cuidados paliativos. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00130022., segue-se importante artigo chamando atenção para a importância dos cuidados paliativos para a Saúde Coletiva e sua importância na atenção primária à saúde 1111. Rodrigues LF, Silva JFM. Cuidados paliativos: percurso na atenção básica no Brasil. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00130222.. Como mostram os autores, o avanço irregular do acesso aos cuidados paliativos no Brasil é o reflexo da falta de uma política pública de saúde organizando e estruturando essa área do conhecimento no país. E na sequência, artigo que parte do ponto de vista dos serviços de urgência enquanto espaço importante para os cuidados paliativos 1212. Ribeiro DL, Carvalho Filho MA. Cuidados paliativos na emergência: invocando Kairós e repensando os sistemas de saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00127922.. Refletindo a partir de um caso extremamente comum, em que infelizmente a falta de conhecimento sobre cuidados paliativos leva a aumento do sofrimento de pacientes, familiares e profissionais de saúde, além de perda da eficiência do próprio sistema de saúde, comprometendo também seu acesso por outros pacientes, os autores chamam atenção a como o conhecimento sobre cuidados paliativos (ou sua falta) impacta a todos. Muito do conhecimento sobre decisão compartilhada foi criado a partir da abordagem dos cuidados paliativos. Hoje, décadas depois, observamos que a decisão compartilhada não precisa se restringir a situações de doenças graves. Esse conhecimento extrapola o universo dos cuidados paliativos, abrangendo áreas muito maiores. Decisão compartilhada é a base para uma relação ética entre indivíduos que tenham direito de se autodeterminar, não de maneira em que cada parte não se importe com a outra, mas, sim, como indivíduos que procuram um mesmo objetivo comum: o paciente no centro e profissionais que se importem e busquem, por meio de diálogo, um cuidado de qualidade e segurança, respeitando valores humanos e prática baseada em evidências. É, finalmente, a relação Estado-cidadão chegando à beira do leito.

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    Will JF. A brief historical and theoretical perspective on patient autonomy and medical decision making: Part I: the beneficence model. Chest 2011; 139:669-73.
  • 2
    Platão. República. 2ª Ed. São Paulo: Escala; 2007.
  • 3
    Wrangham R. The goodness paradox: the strange relationship between virtue and violence in human evolution. Nova York: Pantheon Books; 2019.
  • 4
    Bobio N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier; 2004.
  • 5
    Rothman D. Strangers at the bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision making. Nova York: Basic Books; 1991.
  • 6
    Hossne W, Pessini L, Siqueira JE, Barchifontaine CP. Bioética aos 40 anos: reflexões a partir de um tempo de incertezas. Bioethikos 2010; 4:130-43.
  • 7
    Barry MJ, Edgman-Levitan S. Shared decision making: pinnacle of patient-centered care. N Engl J Med 2012; 366:780-1.
  • 8
    Kelley AS, Morrison RS. Palliative care for the seriously ill. N Engl J Med 2015; 373:747-55.
  • 9
    Michalsen A, Long AC, DeKeyser Ganz F, White DB, Jensen HI, Metaxa V, et al. Interprofessional shared decision-making in the ICU: a systematic review and recommendations from an expert panel. Crit Care Med 2019; 47:1258-66.
  • 10
    Vidal EIO, Kovacs MJ, Silva JJ, Silva LM, Sacardo DP, Bersani ALF, et al. Posicionamento da ANCP e SBGG sobre tomada de decisão compartilhada em cuidados paliativos. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00130022.
  • 11
    Rodrigues LF, Silva JFM. Cuidados paliativos: percurso na atenção básica no Brasil. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00130222.
  • 12
    Ribeiro DL, Carvalho Filho MA. Cuidados paliativos na emergência: invocando Kairós e repensando os sistemas de saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00127922.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2022
  • Aceito
    22 Jul 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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