O Sistema Único de Saúde pobre para os pobres, a COVID-19 e o capitalismo financeirizado

Brazilian Unified National Health System poor for the poor, COVID-19, and financialized capitalism

El Sistema Único de Salud pobre para los pobres, la COVID-19 y el capitalismo financiarizado

Nelson Rodrigues dos Santos Sobre o autor

Inicio destacando a riquíssima e imprescindível contribuição da Economia Política na análise, críticas e recomendações sobre os mais de 30 anos do SUS, o que o texto apresentado por Braga & Oliveira 11. Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020. cumpre e atualiza oportunamente em alto nível, na complexa e inusitada conjuntura da COVID-19. Ao avançar e aclarar o desenvolvimento do capitalismo financeirizado, suas consolidações e contradições, muito contribui facilitando “janelas” para pactos sociais mais civilizados e consequente democratização do Estado. Proponho desde já, Braga & Oliveira 11. Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020. e as Editoras de CSP, uma oferta especial do seu debate com a Associação Brasileira de Economia em Saúde, junto às Secretarias Técnicas do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e Conselho Nacional de Saúde (CNS). Seguem os comentários à guisa de sugestões aos debates.

Considero que, perante os elevados juros da dívida pública, a financeirização do orçamento público, o mau desempenho da economia brasileira e as pressões pela privatização na saúde, o Estado brasileiro, comparado aos demais países com sistemas universais 22. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Futuro dos Sistemas Universais de Saúde: Portugal, Costa Rica, Inglaterra, Canadá, Brasil. https://www.conass.org.br/consensus/o-futuro-dos-sistemas-universais-de-saude-em-pauta-conass-debate/ (acessado em Mar/2020).
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, nada resistiu aos ditames da nova ordem econômica: ao contrário, vem descumprindo o Título da Ordem Social da Constituição, incluindo as diretrizes para a Saúde, sendo ator pró-ativo e ofensivo nessas práticas, mantendo contudo o discurso oficial do seu cumprimento.

Nestes mais de 30 anos, descumpriu a indicação constitucional de 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS) para o SUS, retirou do OSS o Fundo da Previdência Social no cálculo para o Sistema Único de Saúde (SUS), criou a Desvinculação das Receitas da União, desdenhou na prática a vinculação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) ao SUS, trocou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 169/1993 33. Brasil. Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000. Altera os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União 2000; 14 set. pela Emenda Constitucional nº 29/200044. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda Constitucional nº 169, de 7 de julho de 1993. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=24979 (acessado em Mar/2021).
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, e abortou as quatro profícuas tramitações e debates na Câmara e no Senado, dos 10% da Receita Corrente Bruta para o SUS, sendo que esses 10% acrescentariam por volta de 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) ao SUS (de 3,8% para 4,5%), ainda muito pouco em relação aos 7% a 8% nos países com sistemas universalistas, porém, contribuindo para avançar na realização da Integralidade e Equidade e fortalecer o apoio ao SUS 22. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Futuro dos Sistemas Universais de Saúde: Portugal, Costa Rica, Inglaterra, Canadá, Brasil. https://www.conass.org.br/consensus/o-futuro-dos-sistemas-universais-de-saude-em-pauta-conass-debate/ (acessado em Mar/2020).
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,55. Direito universal á saúde e Sistema Único de Saúde nas eleições 2018. Divulg Saúde Debate 2019; (59):4-180..

Vale lembrar que na Lei Complementar nº 141/201266. Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2012; 16 jan. (3ª tramitação abortada), a implementação dos dispositivos referentes às diretrizes da Regionalização com Integralidade e Equidade, estava atrelada ao rateio dos recursos federais com base nos 10% da Receita Corrente Bruta, transferidos aos estados e municípios, e que sem esses recursos sua efetivação permanece devida à sociedade há mais de 30 anos. Esses dispositivos pouco ou nada implementados, referem-se diretamente ao modelo constitucional de atenção à saúde, sintetizado pelo senso comum de que mais vale prevenir do que curar, curar no início da doença com diagnóstico precoce e assegurar cuidado permanente sistemático aos doentes crônicos. A organização e realização desse modelo levariam à solução de 80% a 90% das necessidades de saúde na rede de atenção básica em unidades de saúde de fácil acesso, com extensão aos domicílios e locais de trabalho. Os 10% a 20% restantes seguiriam referidos para atendimento oportuno em serviços especializados de diagnóstico e terapia.

Na prática dos mais de 30 anos do SUS, está constatado que esse modelo constitucional é realizado nos seus mais de 30 anos, somente em caráter excepcional, e delimitado no território nacional, convivendo com o franco predomínio do “modelo SUS real”, que prima pela cobertura universal, porém, sem recursos nem prioridade para implementação da Regionalização com Integralidade e Equidade. Os recursos reais e o “fôlego” do SUS quase esvaíram-se nos anos 1990, na realização da inclusão social com a Universalidade, restando para a implementação da Integralidade e Equidade, somente condições excepcionais e pontuais. Essas lembranças importam para a constatação de que a implementação da estrutura de oferta de serviços com base no “modelo SUS constitucional” é umbilicalmente atrelada à estrutura de gastos, sob lógica diametralmente diversa da atual, esta, calcada nos pagamentos públicos de:

(a) serviços prestados por entes privados complementares (65% das internações e mais de 90% dos exames e terapias realizados pelo SUS); 65% dos recursos humanos alocados nas unidades do SUS por entidades privadas contratadas, e entes privados substitutivos de unidades públicas como Organizações Sociais e Parceria Públic-Privado (PPP); e

(b) mercado de planos privados de saúde bancado pela isenção do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Imposto de Renda da pessoa Física (IRPF) às operadoras privadas e consumidores, com valor total maior do que o lucro líquido declarado pelas operadoras, ganhos esses impulsionados pelos seguros-saúde na faixa da lucratividade bancária: - vistoso nicho de mercado que, em 2020, com créditos especiais e elevação das mensalidades dos planos, potencializou seus ganhos ao lado das redes de drogarias, indústrias de medicamentos e equipamentos de saúde. Ao contrário de “aliviar” o SUS, dele se serve ao limite do “SUS pobre para os pobres”.

Essa estrutura de gastos decorre do “SUS real”, que é o arranjo público-privado com lucratividade Estado-dependente, realizando Universalidade, mas Equidade e Integralidade simbólicas. O financiamento per capita total aos 75% da população sem planos privados é 5 a 6 vezes menor do que o dos 25% de consumidores desses planos, resultando o “SUS pobre aos pobres” e desmentindo o chavão de que a Saúde Suplementar privada alivia o SUS. Além da imprescindível elevação dos recursos, impõe-se estrutura de gastos sob a lógica do modelo SUS, o que foi apenas iniciado no debate e aprovação da referida Lei Complementar nº 141/2012 .

A estratégia hegemônica de Estado para o sistema de saúde (SUS e Saúde Suplementar), com as consequências acima comentadas, mantém a porcentagem do PIB para o SUS entre 3,7 e 3,9%, sempre definida “acima” do próprio Ministério da Saúde. Hoje, o Estado e a Saúde Suplementar gastam com 25% da população mais da metade dos recursos totais e o Estado gasta com o SUS, para 75% mais pobres, menos que a metade. Somando valores referentes às indústrias privadas de materiais, equipamentos, fármacos, biotecnológicos etc., o setor saúde representa por volta de 10% do PIB.

Quanto ao inusitado abalo econômico mundial provocado pela COVID-19, houve em nosso país, no terceiro trimestre de 2020, retração econômica de 11,4% em relação ao mesmo período de 2019. Aflorou para a sociedade a consciência do papel do SUS, decisivo no controle preventivo e assistencial, nosso Programa Nacional de Imunização (PNI), com décadas de experiência na produção, importação e imunização eficiente e eficaz da população, referência mundial fruto de entrosamento responsável entre as esferas federal, estadual e municipal.

Perante a inusitada, temerosa e complexa evolução dessa pandemia, nosso Governo Federal durante 2020 espelhou-se exclusiva e acriticamente no Governo dos Estados Unidos, como:

(a) Ridicularizando o distanciamento social, até as máscaras, além da indução à mística do tratamento precoce com cloroquina e outros, todos desmentidos nas comunidades científicas nacionais e internacionais; tudo em nome da precedência da economia e fragilizando engajamento da população na defesa da própria saúde e vida;

(b) Sub-executando orçamento federal aprovado especialmente no Legislativo para contratação de pessoal na saúde, equipamentos, teste PCR, materiais hospitalares etc.;

(c) Não assumindo com os Estados e Municípios a identificação precoce dos grupos populacionais portadores do vírus (PCR +), aumentando ineficácia ao distanciamento social;

(d) Negando ou retraindo o Auxílio Emergencial até a obrigação em Lei aprovada no Legislativo, e em 2021, condicionando sua renovação ao “resultado da vacinação”; e

(e) Desdenhando desde o início: das vacinas ainda em pesquisa, nosso PNI, Bio-Manguinhos, Fundação Oswaldo Cruz e Instituto Butantã internacionalmente reconhecidos, mas penosamente subfinanciados, resultando a encomenda federal de vacinas somente em janeiro de 2021, colocando-nos entre os “últimos da fila”.

O texto aborda com muita atualidade e oportunidade questões candentes e desafiantes, como os ativos financeiros na linha de frente da riqueza, a não estagnação econômica, a subordinação de países com moedas inexpressivas como o Brasil etc.; ao que acrescentaria:

(a) No aguardo de amplo debate democrático de pactos sociais e projeto de sociedade e nação, e

(b) Uma comunicação social sensível, na tradução mobilizadora de textos esclarecedores e densos como esse, para cada segmento e o conjunto da sociedade, e na assessoria aos autores.

Na conjuntura de 2021, emerge no Brasil o agravamento de tensões para dezenas de milhões de famílias, perdendo entre metade a toda renda familiar, quebra desastrosa nos comércios locais, e retorno do Auxílio Emergencial condicionado pelo Ministério da Economia, “aos efeitos da vacinação”. Ao final de janeiro de 2021 os quase 10 milhões de doentes e 222 mil mortos, junto aos desempregados e pobres, contrastam chocantemente com os 50% da riqueza nacional concentrada nos 1% mais ricos, 230 mil brasileiros aplicando cada um no mercado financeiro global em 2015, o mínimo de USD 1 milhão, mais de BRL 1,7 trilhão de depósitos brasileiros em paraísos fiscais, e a incidência do nosso Imposto de Renda em 32% da renda dos 10% mais pobres, e em 21% da renda dos 10% mais ricos.

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  • 1
    Braga JCS, Oliveira GC. Dinâmica do capitalismo financeirizado e o sistema de saúde no Brasil: reflexões sob as sombras da pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00325020.
  • 2
    Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Futuro dos Sistemas Universais de Saúde: Portugal, Costa Rica, Inglaterra, Canadá, Brasil. https://www.conass.org.br/consensus/o-futuro-dos-sistemas-universais-de-saude-em-pauta-conass-debate/ (acessado em Mar/2020).
    » https://www.conass.org.br/consensus/o-futuro-dos-sistemas-universais-de-saude-em-pauta-conass-debate/
  • 3
    Brasil. Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000. Altera os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União 2000; 14 set.
  • 4
    Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda Constitucional nº 169, de 7 de julho de 1993. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=24979 (acessado em Mar/2021).
    » https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=24979
  • 5
    Direito universal á saúde e Sistema Único de Saúde nas eleições 2018. Divulg Saúde Debate 2019; (59):4-180.
  • 6
    Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2012; 16 jan.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2021
  • Aceito
    25 Mar 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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