A atual pandemia de COVID-19 revela, de forma eloquentemente nefasta, uma das implicações da tendência do capital ao seu conceito, do capital como um limite de si mesmo e, portanto, sem limite ao seu movimento contraditório - no interior do qual, vale destacar, processa-se a reiterada e crescente tensão entre expansão e crise, inerente ao capitalismo, com profundas consequências econômicas, sociais, políticas e ambientais.
No final de setembro de 2020, dias antes da submissão do nosso artigo aos Cadernos de Saúde Pública, o Brasil contabilizava quase 5 milhões de casos notificados e pouco mais de 140 mil mortes por COVID-19. No momento em que estamos a redigir esta “réplica” (trata-se, em verdade, de algumas breves reflexões suscitadas pelas qualificações realizadas pelos notáveis comentadores do artigo em questão) aos autores que realizaram generosos e qualificados comentários ao nosso artigo, no final de julho de 2021, os números são ainda mais estarrecedores: praticamente 20 milhões de casos confirmados e nada menos do que mais de 555 mil mortes. Em menos de um ano, portanto, os referidos números quadruplicaram, respectivamente. A tragédia se tornou maior, infelizmente, com efeitos econômicos e sociais incomensuráveis.
O artigo discutiu o sistema de saúde no Brasil sob a égide do capitalismo financeirizado e à luz da pandemia de COVID-19, a partir do conceito de financeirização desenvolvido por Braga 11. Braga JCS. Temporalidade da riqueza: uma contribuição à teoria da dinâmica capitalista [Tese de Doutorado]. Campinas: Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas; 1985.,22. Braga JCS. A financeirização da riqueza: a macroestrutura financeira e a nova dinâmica dos capitalismos centrais. Economia e Sociedade 1993; 2:25-57.,33. Braga JCS. Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo. Campinas: Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas; 2000.. Sustentou-se que a financeirização enquanto padrão sistêmico de riqueza redefine a própria noção do setor saúde, visto se tratar de um complexo econômico no sentido de possuir expressiva interpenetração e interdependência entre as órbitas produtivo-tecnológico-comercial e monetário-financeira de valorização e acumulação da riqueza, e concorre para potencializar o processo de coisificação das relações socioeconômicas, imanente a esse sistema, tornando indispensável a realização de políticas públicas orientadas para salvaguardar a dignidade humana, incluindo o provimento dos serviços de saúde pelo Estado. Sem isso, a lógica da valorização da riqueza tende a se impor de tal forma a transformar a vida em uma mera mercadoria, de forma plena e irremediável.
A compreensão do setor saúde em sua totalidade complexa, tal procuramos discutir no artigo, aponta, nas palavras de Paim 44. Paim JS. Da capitalização da medicina à financeirização da saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00024021., em uma das suas pertinentes qualificações sobre o artigo, para a necessidade de ações políticas voltadas para “…proposições e estratégias menos parciais para o enfrentamento das diversas formas de privatização”. Isso, evidentemente, exige a participação da sociedade nas diferentes esferas políticas de atuação, envolvendo as diversas dimensões do setor saúde.
Ademais, conforme assinala Paim 44. Paim JS. Da capitalização da medicina à financeirização da saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00024021., de forma perspicaz, “Embora não seja propósito dos autores identificar saídas, nem tampouco promover um pessimismo analítico, constata-se um certo incômodo ao longo do texto quando, cientes das dificuldades, apenas deixam uma janela aberta para possibilidades”. Com relação a este ponto, em particular, salientamos apenas que, mais do que um incômodo, o fato é que, diante das determinações que identificamos, prenhes de incerteza radical e de dominância financeira do capital com apoio do Estado, o futuro está em aberto ao “desenrolar” da história. Entendemos que a análise realizada no artigo abre um conjunto de vias para reflexões a respeito de possíveis trajetórias político-econômicas alternativas, orientadas para a transformação da atual realidade. Estudos futuros nesse sentido são não apenas necessários, mas, também, urgentes, considerando os problemas envolvendo o setor saúde no Brasil.
Para as diferentes sociedades do mundo, ficou evidente o caráter imprescindível da atuação do Estado nessa esfera. No Brasil, em particular, o SUS revelou-se indispensável, mesmo com suas incompletudes e insuficiências 55. Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00067218.. Nesse sentido, apenas qualificando um trecho dos comentários de Aragão 66. Aragão ES. Notas sobre o texto Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00063721., o possível “tom otimista” do artigo se restringe ao papel do SUS e das suas potencialidades, visto que, sem ele, seguramente a tragédia brasileira teria sido muito mais ampla e profunda, com mais vidas ceifadas pela pandemia. Cabendo lembrar, ainda, que estamos longe do fim dos efeitos nefastos da COVID-19, visto que, até o final de julho de 2021, pouco mais de 19% da população brasileira estavam totalmente vacinadas, com quase 50% tendo recebido a primeira dose de uma das vacinas disponíveis no país.
Evidentemente, os efeitos nefastos provocados pela COVID-19 no Brasil foram potencializados pela ausência de uma política nacional de saúde capaz de esclarecer a população a respeito da conduta a ser seguida e viabilizar um esforço conjunto, transparente e concertado entre os diferentes entes da Federação, voltado para o combate à pandemia - incluindo a questão envolvendo a aquisição de vacinas.
Nesse sentido, os comentários realizados ao artigo que escrevemos e tivemos a honra de ser aceito e publicado neste importante periódico contribuem, muito, para enaltecer a importância de juntarmos esforços para a transformação de uma realidade altamente adversa. E isso, temos clareza, somente será possível com a união das forças progressistas do país, de tal sorte a propiciar a retomada do desenvolvimento do Brasil. Sem isso, dificilmente o subfinanciamento do SUS, frisado no artigo e reportado nos comentários de Aragão 66. Aragão ES. Notas sobre o texto Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00063721. e Santos 77. Santos NR. O Sistema Único de Saúde pobre para os pobres, a COVID-19 e o capitalismo financeirizado. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00076321., será resolvido. Sem isso, de forma mais objetiva, continuaremos a conviver com “o franco predomínio do ‘modelo SUS real’”, como registra Santos 77. Santos NR. O Sistema Único de Saúde pobre para os pobres, a COVID-19 e o capitalismo financeirizado. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00076321. de forma percuciente.
A inserção do Brasil no sistema internacional, sintetizada por Rugitsky 88. Rugitsky F. Notas sobre acumulação de capital e "epidemias" contemporâneas. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00081921., em sua dimensão produtiva, a partir da noção da articulação triangular entre os países/regiões do mundo (países consumidores, produtores de manufaturados e produtores de commodities), torna a retomada do desenvolvimento econômico ainda mais desafiadora e complexa. Isso porque, seria desnecessário registrar, que o desenvolvimento envolve um processo abrangente de sofisticação dos setores econômicos e aumento do grau de complexidade econômica dos bens e serviços produzidos pelo país, de modo a propiciar efeitos de encadeamento inter e intrassetoriais capazes de multiplicar a renda e o emprego, bem como promover o crescimento consistente e acelerado da produtividade 99. McMillan M, Rodrik D, Verduzco-Gallo I. Globalization, structural change, and productivity growth, with an update on Africa. World Dev 2014; 63:11-32..
Como procuramos frisar no artigo, o capitalismo financeirizado potencializa a desigualdade socioeconômica entre os países e dentro dos países. Há, por isso, uma importante dimensão geográfica a ser examinada na temática em questão, como providencialmente destacou Rugitsky 88. Rugitsky F. Notas sobre acumulação de capital e "epidemias" contemporâneas. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00081921.. E, no caso da pandemia de COVID-19, a explicitação dessa desigualdade foi potencializada.
De fato, a globalização capitalista não tem sido acompanhada de um sistema de governança global minimamente capaz de lidar com os desafios contemporâneos em suas mais diversas esferas, inviabilizando uma regulação civilizatória em âmbito mundial. Diante da dominação da economia sobre a sociedade, e não o contrário, e da subsequente destruição crescente da biodiversidade, as doenças se proliferam e ameaçam o próprio futuro da humanidade em condições de vida sustentáveis no planeta. Impossível não registrar, também, o papel desempenhado pelos diferentes governos do mundo no combate à referida pandemia 1010. Araújo RF, Alves VLS, Gracia da Silva N, Monteiro JGMA, Palludeto AWA, et al. Medidas fiscais e parafiscais frente à pandemia de COVID-19: experiências internacionais selecionadas. In: Anais do 14º Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira. https://www.even3.com.br/anais/akb2021/366508-medidas-fiscais-e-parafiscais-frente-a-pandemia-de-covid-19--experiencias-internacionais-selecionadas/ (acessado em 20/Ago/2021).
https://www.even3.com.br/anais/akb2021/3... ,1111. Wolf PJW. A importância dos Estados de Bem-Estar Social diante da pandemia de COVID-19. In: Anais do 14º Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira. https://www.even3.com.br/anais/akb2021/375520-a-importancia-dos-estados-de-bem-estar-social-diante-da-pandemia-de-covid-19/ (acessado em 20/Ago/2021).
https://www.even3.com.br/anais/akb2021/3... . Aqui, seguramente, pode-se afirmar que condutas negacionistas e ausência de políticas públicas efetivas e integradas certamente concorreram para magnificar os efeitos nefastos da pandemia.
Tudo isso nos remete, pois, à problemática do desafio da retomada do desenvolvimento no Brasil e, consequentemente, à necessidade de pensar as questões relevantes da nação de forma sistêmica, integrada e estratégica.
Nesse sentido, as pertinentes indagações apresentadas por Aragão 66. Aragão ES. Notas sobre o texto Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00063721. apontam justamente para a necessidade de reformas estruturais orientadas para o desenvolvimento e a justiça social, no lugar de reformas voltadas para atender os anseios dos mercados e assegurar os privilégios de uma pequena parcela da população. Elas evidenciam a necessidade de um amplo debate nacional a respeito e reflexões cuja elaboração certamente exigiria um espaço não disponível no âmbito desta “réplica”. De qualquer forma, vale registrar, mesmo que brevemente, o caráter indispensável de ampliar substancialmente os investimentos públicos no Brasil, sobretudo nas áreas sociais, o que pressupõe a revisão das atuais regras fiscais, com destaque à regra do “teto de gastos”. Investimentos públicos, vale salientar, que sejam capazes de lançar as bases para a viabilização de um projeto nacional de desenvolvimento e, assim, romper com a “crise do desenvolvimento” do Brasil que já dura mais de quatro décadas 1212. Oliveira GC. A economia brasileira em marcha lenta. In: Terra FH, Prates DM, organizadores. O Brasil pós-recessão: das origens da crise às perspectivas e desafios futuros. São Bernardo do Campo: Editora UFABC; 2020. p. 160-9.. Um projeto dessa natureza, evidentemente, pressupõe a realização de reformas estruturais, destacadamente, nas esferas fiscal e monetário-financeira, orientadas para restaurar a capacidade de investimento público e o sistema de financiamento de longo prazo. São estas, evidentemente, questões cujas resoluções transcendem a discussão meramente técnica, visto que detêm uma natureza essencialmente política. Afinal, como nos ensinou Celso Furtado 1313. Furtado C. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2000., o desenvolvimento socioeconômico corresponde a um processo de transformação das estruturas econômicas, políticas, sociais etc.
A retomada do desenvolvimento, portanto, exige um esforço coletivo, de natureza, por isso, essencialmente política, traduzido em um plano nacional de desenvolvimento capaz de aglutinar os diferentes atores sociais em prol de um objetivo comum, coletivo, voltado para a prosperidade econômica com justiça social. Seguramente, a mobilização social e a união das alas progressistas dos países são condições necessárias, mesmo se consideradas insuficientes, tanto para evitar o desmonte dos sistemas universais de saúde, como registrado por Paim 44. Paim JS. Da capitalização da medicina à financeirização da saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00024021., como para propiciar processos de transformação social capazes de assegurar a dignidade humana.
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- 1Braga JCS. Temporalidade da riqueza: uma contribuição à teoria da dinâmica capitalista [Tese de Doutorado]. Campinas: Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas; 1985.
- 2Braga JCS. A financeirização da riqueza: a macroestrutura financeira e a nova dinâmica dos capitalismos centrais. Economia e Sociedade 1993; 2:25-57.
- 3Braga JCS. Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo. Campinas: Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas; 2000.
- 4Paim JS. Da capitalização da medicina à financeirização da saúde. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00024021.
- 5Bahia L. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00067218.
- 6Aragão ES. Notas sobre o texto Dinâmica do Capitalismo Financeirizado e o Sistema de Saúde no Brasil: Reflexões sob as Sombras da Pandemia de COVID-19. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00063721.
- 7Santos NR. O Sistema Único de Saúde pobre para os pobres, a COVID-19 e o capitalismo financeirizado. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00076321.
- 8Rugitsky F. Notas sobre acumulação de capital e "epidemias" contemporâneas. Cad Saúde Pública 2022; 38 Suppl 2:e00081921.
- 9McMillan M, Rodrik D, Verduzco-Gallo I. Globalization, structural change, and productivity growth, with an update on Africa. World Dev 2014; 63:11-32.
- 10Araújo RF, Alves VLS, Gracia da Silva N, Monteiro JGMA, Palludeto AWA, et al. Medidas fiscais e parafiscais frente à pandemia de COVID-19: experiências internacionais selecionadas. In: Anais do 14º Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira. https://www.even3.com.br/anais/akb2021/366508-medidas-fiscais-e-parafiscais-frente-a-pandemia-de-covid-19--experiencias-internacionais-selecionadas/ (acessado em 20/Ago/2021).
» https://www.even3.com.br/anais/akb2021/366508-medidas-fiscais-e-parafiscais-frente-a-pandemia-de-covid-19--experiencias-internacionais-selecionadas/ - 11Wolf PJW. A importância dos Estados de Bem-Estar Social diante da pandemia de COVID-19. In: Anais do 14º Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira. https://www.even3.com.br/anais/akb2021/375520-a-importancia-dos-estados-de-bem-estar-social-diante-da-pandemia-de-covid-19/ (acessado em 20/Ago/2021).
» https://www.even3.com.br/anais/akb2021/375520-a-importancia-dos-estados-de-bem-estar-social-diante-da-pandemia-de-covid-19/ - 12Oliveira GC. A economia brasileira em marcha lenta. In: Terra FH, Prates DM, organizadores. O Brasil pós-recessão: das origens da crise às perspectivas e desafios futuros. São Bernardo do Campo: Editora UFABC; 2020. p. 160-9.
- 13Furtado C. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2000.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Ago 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
25 Ago 2021 - Aceito
09 Set 2021