Proposta metodológica para avaliação de registros de óbitos por COVID-19

Methodological proposal for evaluation of death records from COVID-19

Propuesta metodológica para la evaluación de los registros de defunción por COVID-19

Neir Antunes Paes Assel Muratovna Shigayeva Ferreira Lucas de Almeida Moura Sobre os autores

Resumos

A limitação de estudos sobre a cobertura e completude dos registros de óbitos está entre os principais problemas relacionados às estatísticas vitais no Brasil. Com o advento da pandemia de COVID-19, em 2020, houve um aumento na quantidade de sistemas de informação sobre os registros de óbitos no Brasil, gerando mais incertezas quanto à qualidade dos registros de óbitos. Este estudo propôs uma metodologia de avaliação da qualidade dos registros de óbitos por COVID-19. Foram consideradas três etapas metodológicas: estimação do sub-registro de óbitos; redistribuição de óbitos por causas inespecíficas (Códigos Garbage) e redistribuição de óbitos por causas mal definidas para dados da COVID-19. A proposta foi aplicada para o Estado da Paraíba, Brasil, e seus municípios para 2020, com o uso dos registros oficiais do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. No total, foram recuperados 1.281 óbitos por COVID-19 além dos 3.426 registrados oficialmente para a Paraíba, um incremento de 37,4%. A proposta mostrou-se efetiva e de fácil aplicação, podendo ser utilizada pelos gestores das esferas governamentais e interessados como ferramenta de avaliação da qualidade dos registros de óbitos para qualquer espaço geográfico, contribuindo, assim, para uma melhor compreensão do real impacto da pandemia.

Palavras-chave:
COVID-19; Confiabilidade dos Dados; Estatísticas Vitais; Sub-Registro


The limitation of studies on the coverage and completeness of death records is one of the main problems regarding vital statistics in Brazil. In 2020, the number of information systems on death records in Brazil increased due to the COVID-19 pandemic, generating more uncertainties about the quality of death records. This study proposed an evaluation of the quality of death records due to COVID-19. Three methodological stages were considered: estimation of deaths under-registration; redistribution of deaths from nonspecific causes (Garbage Codes), and redistribution of deaths from ill-defined causes to COVID-19 data. The proposal was applied in the State of Paraíba, Brazil, and its municipalities in 2020, by using the official records of the Brazilian Mortality Information System of the Brazilian Ministry of Health. In total, 1,281 deaths were retrieved, besides the 3,426 deaths officially recorded for Paraíba State, an increase of 37.4% in deaths from COVID-19. The proposal was effective, easy to apply, and can be used by managers of governmental spheres and people interested in it as a tool to assess the quality of death records for any geographic space, thus, contributing to a better understanding of the real effect of the pandemic.

Keywords:
COVID-19; Data Accuracy; Vital Statistics; Underregistration


La limitación de los estudios sobre la cobertura y la integralidad de los registros de defunción es uno de los principales problemas relacionados con las estadísticas vitales en Brasil. Con la llegada de la pandemia de COVID-19 en 2020 hubo un aumento en la cantidad de sistemas de información sobre registros de defunción en Brasil, generando más incertidumbres sobre la calidad de los registros de defunción. Este estudio propone una metodología para evaluar la calidad de los registros de defunción por COVID-19. Se consideraron tres pasos metodológicos: estimación del subregistro de defunciones; redistribución de las defunciones por causas no específicas (Garbage Codes) y redistribución de las defunciones por causas mal definidas para los datos del COVID-19. La propuesta fue aplicada al Estado de Paraíba, Brasil y sus municipios para el año 2020 utilizando los registros oficiales del Sistema de Información de Mortalidad del Ministerio de Salud. En total, se identificaron 1.281 muertes, además de las 3.426 registradas oficialmente en Paraíba, lo que representa un aumento del 37,4% en las muertes por COVID-19. La propuesta demostró ser eficaz y fácil de aplicar, y puede ser utilizada por los gestores gubernamentales y las partes interesadas como herramienta para evaluar la calidad de los registros de defunción de cualquier zona geográfica, contribuyendo así a una mejor comprensión del impacto real de la pandemia.

Palabras-clave:
COVID-19; Exactitud de los Datos; Estadísticas Vitales; Omisiones de Registro


Introdução

As estatísticas vitais são essenciais para o estabelecimento de metas e avaliação de planos de intervenção na saúde de diversos segmentos da população 11. Department of Economic and Social Affais, Statistics Division, United Nations. Principles and recommendations for a vital statistics system. Nova York: United Nations; 2014.. Sem embargo, o uso dos sistemas de informação de mortalidade disponíveis no Brasil em tempos de pandemia de COVID-19 gerou incertezas e questionamentos adicionais com relação à qualidade e fidedignidade dos registros de óbitos. As incertezas quanto à magnitude dos sub-registros de óbitos, que já existiam, mesmo antes da pandemia, para um conjunto de regiões - particularmente o Nordeste e o Norte do país -, se exacerbaram com o advento dela. E essas incertezas se justificam pela quantidade de fontes e plataformas novas de dados que surgiram, somando-se às já tradicionais, como as do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE; Registro Civil) e do Ministério da Saúde (Sistema de Informação sobre Mortalidade - SIM).

Em circunstâncias sem precedentes como a pandemia da COVID-19, além do surgimento de novas fontes e plataformas de dados, o que se tem verificado é excesso de óbitos, sobrecarga dos sistemas de saúde e atrasos no repasse das informações sobre óbitos. Para os gestores das esferas públicas, pesquisadores e interessados, muitos questionamentos têm emergido: qual fonte ou plataforma de dados disponível é confiável?; qual a qualidade dos registros dessas fontes ou plataformas, seja ela expressos pela cobertura ou fidedignidade dos dados?; que grau de confiança pode ser atribuído aos indicadores gerados a partir desses dados?

Entre os principais problemas relacionados às informações sobre mortalidade no país, estão a limitação dos estudos relacionados à cobertura dos registros de óbitos, erros nas declarações dos óbitos e a falta de informações confiáveis sobre as causas de mortes 22. Paes NA. Quality of death statistics by unknown causes in Brazilian states. Rev Saúde Pública 2007; 41:436-45.,33. Oliveira ATR. Sistemas de estatísticas vitais no Brasil: Avanços, perspectivas e desafios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2018.,44. Lima EEC, Queiroz BL. Evolution of the deaths registry system in Brazil: associations with changes in the mortality profile, under-registration of death counts, and ill-defined causes of death. Cad Saúde Pública 2014; 30:1721-30.,55. Naghavi M, Makela S, Foreman K, O’Brien J, Pourmalek F, Lozano R. Algorithms for enhancing public health utility of national causes-of-death data. Popul Health Metr 2010; 8:9..

Critérios específicos, organizados em uma estrutura de dois conceitos principais de qualidade - cobertura e completude -, geralmente são considerados para uma avaliação mais abrangente acerca da qualidade das informações sobre mortalidade 66. Paes NA. Demografia estatística dos eventos vitais. 2ª Ed. João Pessoa: Editora CCTA; 2018..

Nas últimas décadas, a qualidade deste tipo de informação no Brasil, especificamente relacionada à cobertura dos óbitos, tem apresentado avanços expressivos, mas com grande variabilidade regional 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975.. Entretanto, ainda são verificados problemas com a sistematização das abordagens da cobertura dos registros e com a falta de estudos relacionados aos aspectos específicos dos grupos de população ou territórios, principalmente de áreas pequenas, que ainda são extremamente limitados.

É sabido que dados de alta qualidade sobre causas de óbitos são uma fonte-chave de evidências úteis para a implementação de certas políticas e para tomadas de decisão que tenham o objetivo de melhorar a saúde da população. Um grande problema advindo do uso desses dados são as práticas inadequadas de certificação destas causas, o que resulta em códigos que fornecem pouca ou nenhuma informação sobre a verdadeira causa básica de morte 88. Hill K. Methods for measuring adult mortality in developing countries: a comparative review. In: International Population Conference Annals. http://www.hsph.harvard.edu/burdenofdisease/publications/papers/Methods%20for%20Measuring%20Adult%20Mortality.pdf (acessado em 20/Jan/2022).
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Em relação à declaração e a acurácia dos registros de óbitos no Brasil, ainda enfrentamos grandes desafios. Ultimamente, o Brasil tem apresentado níveis relativamente altos de causas mal definidas e Códigos Garbage nas estatísticas de mortalidade, com grande variabilidade entre cidades e regiões 55. Naghavi M, Makela S, Foreman K, O’Brien J, Pourmalek F, Lozano R. Algorithms for enhancing public health utility of national causes-of-death data. Popul Health Metr 2010; 8:9.,88. Hill K. Methods for measuring adult mortality in developing countries: a comparative review. In: International Population Conference Annals. http://www.hsph.harvard.edu/burdenofdisease/publications/papers/Methods%20for%20Measuring%20Adult%20Mortality.pdf (acessado em 20/Jan/2022).
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,99. Paes NA. Qualidade das estatísticas de óbitos por causas desconhecidas dos estados brasileiros. Rev Saúde Pública 2007; 41:436-45..

No caso da COVID-19, as discussões sobre este tema recrudesceram, mesmo nos países com cobertura completa dos óbitos. Além disso, a pandemia passou a exigir dos sistemas de informação o processamento de um gigantesco volume de dados de modo quase simultâneo, o que pode interferir na qualidade dos levantamentos e que, consequentemente, pode afetar severamente os indicadores deles derivados.

Tendo em vista esse contexto, objetivou-se neste estudo propor uma metodologia de avaliação da qualidade dos registros de óbitos por COVID-19, com foco na cobertura e completude, a qual pode ser aplicada a qualquer segmento geográfico.

Método

Dentre as principais fontes e plataformas de dados oficiais sobre a COVID-19 disponíveis no Brasil se encontram: secretarias de saúde dos estados 1010. Secretaria Estadual da Saúde da Paraíba. COVID-19 microdados. https://superset.plataformatarget.com.br/superset/dashboard/microdados/ (acessado em 20/Jan/2022).
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, Painel Coronavírus 1111. Ministério da Saúde. Painel coronavírus. https://covid.saude.gov.br/ (acessado em 28/Jan/2022).
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, SIM 1212. Ministério da Saúde. Sistema de Informação sobre Mortalidade - SIM. https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svs/sistemas-de-informacao/sistema-de-informacoes-sobre-mortalidade-sim (acessado em 28/Jan/2022).
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e Registro Civil 1313. Painel COVID Registral. Portal da transparência - Registro Civil. https://transparencia.registrocivil.org.br/sobre (acessado em 20/Jan/2022).
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(por data da ocorrência do óbito e data do registro do óbito). Entre elas, a fonte do SIM é a única que fornece informações sobre as causas de morte desagregadas por idade e sexo. Desta forma, foram considerados para este estudo dados sobre óbitos gerais e de óbitos por COVID-19 registrados no ano de 2020 e disponibilizados online (http://opendatasus.saude.gov.br).

Segundo Paes 66. Paes NA. Demografia estatística dos eventos vitais. 2ª Ed. João Pessoa: Editora CCTA; 2018., quando se trata de investigar a qualidade dos óbitos, levando em consideração não apenas a questão do registro, mas também a das causas de morte, devem ser consideradas três etapas: (i) correção do sub-registro de óbitos; (ii) redistribuição de óbitos por causas inespecíficas (Códigos Garbage); e (iii) redistribuição de óbitos por causas mal definidas, o que tornará possível mensurar a magnitude do total de óbitos corrigidos.

1ª Etapa: No tocante à mensuração do sub-registro, na literatura existem várias propostas 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975.,88. Hill K. Methods for measuring adult mortality in developing countries: a comparative review. In: International Population Conference Annals. http://www.hsph.harvard.edu/burdenofdisease/publications/papers/Methods%20for%20Measuring%20Adult%20Mortality.pdf (acessado em 20/Jan/2022).
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,1414. Department of International Economic and Social Affairs. Manual X. Indirect techniques for demographic estimation. Nova York: United Nations; 1983. (Population Studies, 81).,1515. Bennett NG, Horiuchi S. Estimating the completeness of death registration in a closed population. Popul Index 1981; 47:207-21.,1616. Hill K. Estimating census and death registration completeness. Asian Pac Popul Forum 1987; 1:8-13.,1717. Hill K, You DZ, Choi YJ. Death distribution methods for estimating adult mortality: sensitivity analysis with simulated data errors. Demogr Res 2009; 21:235-54.. Para este estudo foi considerado o método que faz uso da Equação do Balanço Geral do Crescimento (BGC) proposto por Brass 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975. para populações adultas (aqui considerada aquela acima dos dezenove anos de idade), o qual é largamente conhecido na literatura clássica. Devido aos pressupostos requeridos para a utilização deste método, que nem sempre são cumpridos se a população de interesse não for estável, Paes 99. Paes NA. Qualidade das estatísticas de óbitos por causas desconhecidas dos estados brasileiros. Rev Saúde Pública 2007; 41:436-45. recomenda algumas estratégias para a superação da quebra de supostos e que podem fornecer razoáveis estimativas do fator de correção (f) para os registros de óbitos. Assim, foram estabelecidos, para a estimativa das coberturas dos óbitos (o inverso do sub-registro), os seguintes critérios: (1) média das coberturas produzidas pelo método BGC. Para tanto, pode ser usada uma combinação dos grupos etários quinquenais, ao considerar apenas os grupos etários que não sofrem grande influência dos fluxos migratórios (jovens adultos) e das mudanças nos padrões de fecundidade. A forma mais adequada para decidir o intervalo etário para estimação da cobertura é visualizar os gráficos sobre o relacionamento entre as variáveis usadas no método com distintas combinações dos intervalos etários; (2) não admitir nenhuma cobertura acima de 100%; (3) admitir que a cobertura estimada deverá ser superior à verificada para 2011, segundo estimativas realizadas pela Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA) 1818. Rede Interagencial de Informações para a Saúde. Indicadores e dados - Brasil - 2012. IDB-2012. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.; (4) cobertura dos óbitos dos homens superior ao das mulheres; (5) cobertura constante para as idades adultas.

Devido aos erros inerentes a toda estimativa e para facilitar a interpretação das estimativas das coberturas dos óbitos, utilizou-se a classificação adaptada por Paes 99. Paes NA. Qualidade das estatísticas de óbitos por causas desconhecidas dos estados brasileiros. Rev Saúde Pública 2007; 41:436-45., que estabeleceu quatro categorias: ótima (> 90%); boa (81%-90%); regular (71%-80%) e deficiente (≤ 70%).

O número de óbitos gerais esperados (O esp ) é dado pela expressão:

Oesp= f*Oobs(1)

Para o caso particular da COVID-19 (causa j), o cálculo para o número esperado de óbitos foi obtido usando a seguinte equação:

Oespj= f*Oobsj+CMDj+GCj(2)

Onde,

Oespj = óbitos esperados da causa j;

f = fator de correção de sub-registro dos óbitos gerais observados 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975.;

Oobs = óbitos observados gerais

Oespj= óbitos observados da causa j;

CMDj = causas mal definidas realocadas para a causa j;

CGj = Códigos Garbage realocados para a causa j.

2ª Etapa: o grupo de causas Códigos Garbage e causas mal definidas se referem às condições que estão incluídas na Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão (CID-10) 1919. World Health Organization. International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems, 10th revision. https://icd.who.int/browse10/2010/en (acessado em 20/Jan/2022).
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devido a seu uso para classificar serviços de saúde, mas que não significam causa básica de morte 44. Lima EEC, Queiroz BL. Evolution of the deaths registry system in Brazil: associations with changes in the mortality profile, under-registration of death counts, and ill-defined causes of death. Cad Saúde Pública 2014; 30:1721-30.. O uso frequente desses tipos de códigos nas estatísticas vitais pode limitar seriamente as comparações das causas de morte. Por esse motivo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e analistas sugerem reatribuir as mortes codificadas aos Códigos Garbage para outras causas, adotando algum método válido 2020. França E, Ishitani LH, Teixeira R, Duncan BB, Marinho F, Naghavi M. Changes in the quality of cause-of-death statistics in Brazil: garbage codes among registered deaths in 1996-2016. Popul Health Metr 2020; 18 Suppl:20.,2121. Teixeira RA, Naghavi M, Guimarães MDC, Ishitani LH, França EB. Quality of cause-of-death data in Brazil: Garbage codes among registered deaths in 2000 and 2015. Rev Bras Epidemiol 2019; 22 Suppl 3:e190002..

Para redistribuição de Códigos Garbage para casos de COVID-19, o estudo seguiu a abordagem conceitual descrita em detalhes por Naghavi et al. 55. Naghavi M, Makela S, Foreman K, O’Brien J, Pourmalek F, Lozano R. Algorithms for enhancing public health utility of national causes-of-death data. Popul Health Metr 2010; 8:9., que tem sido amplamente utilizada e não mudou desde o estudo Carga Global de Doenças (GBD) 2222. GBD 2017 Causes of Death Collaborators. Global, regional, and national age-sex-specific mortality for 282 causes of death in 195 countries and territories, 1980-2017: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet 2018; 392:1736-88.. O algoritmo seguiu três etapas principais: identificação de Códigos Garbage possivelmente relacionados à COVID-19; identificação de causas-alvo em que as mortes atribuídas a um Código Garbage devem, em princípio, ser reatribuídas à COVID-19 (com base na fisiopatologia); e redistribuição de Códigos Garbage.

Não há Códigos Garbage especificados para COVID-19, uma vez que esta doença é relativamente nova, com rubricas CID-10 recém-inauguradas, e ainda sob observação/investigação em termos de patogênese, sistemas envolvidos na patologia e razões específicas de mortes. Os Códigos Garbage para investigação foram escolhidos de acordo com o conhecimento científico sobre danos primários ao sistema respiratório por COVID-19 e suas complicações generalizadas, como sepse 2323. Ortiz-Prad E, Simbaña-Rivera K, Gómez-Barreno L, Rubio-Neira M, Guaman LP, Kyriakidis NC, et al. Clinical, molecular, and epidemiological characterization of the SARS-CoV-2 virus and the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), a comprehensive literature review. Diagn Microbiol Infect Dis 2020; 98:115094.,2424. Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, Liang WH, Ou CQ, He JX. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med 2020; 382:1708-20..

Para a redistribuição dos Códigos Garbage foram estabelecidos dois grupos de causas-alvo considerando a CID-10: capítulo I, “Certas Doenças Infecciosas” (A00-B99), e capítulo X, “Doenças do Aparelho Respiratório” (J00-J99). Além de identificar uma lista específica de Códigos Garbage e mapeá-la em dois grandes grupos estabelecidos, foi utilizada a tipologia de Códigos Garbage em quatro níveis com relação à redistribuição proposta na lista hierárquica do GBD, conforme apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Lista de Códigos Garbage escolhidos para redistribuição de acordo com a tipologia hierárquica e grupos-alvo (doenças infecciosas e doenças do aparelho respiratório) de mortes.

Códigos Garbage foram distribuídos por sexo (masculino e feminino) e suas proporções foram calculadas. Por sua vez, os números de Códigos Garbage, de acordo com sua tipologia e dois grandes grupos, também foram extraídos da Linha A (doenças ou afecções que levaram diretamente ao óbito) para todos os óbitos por COVID-19 registrados para a unidade geográfica de estudo. Para a realocação dos Códigos Garbage para a causa j foi utilizado o método de redistribuição proporcional.

3ª Etapa: O grupo de Causas Mal Definidas faz parte dos Códigos Garbage e se refere a “sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório, não classificados em outra parte” (CID-10), no Capítulo XVIII (R00-R99) 2525. Mello Jorge MHP, Laurenti R, Lima-Costa MF, Gotlieb SLD, Chiavegatto Filho ADP. A mortalidade de idosos no Brasil: a questão das causas mal definidas. Epidemiol Serv Saúde 2008; 17:271-81.,2626. Martins Junior DF, Felzemburg RD, Dias AB, Costa TM, Santos PN. Trends in mortality from ill-defined causes among the elderly in Brazil, 1979-2013: ecological study. São Paulo Med J 2016; 134:437-45.. Um grande problema com as causas mal definidas é a falta de práticas de certificação de causas de morte que resultam em códigos que fornecem pouca ou nenhuma informação sobre a verdadeira causa básica de morte. Para a obtenção das causas mal definidas realocadas para a causa j, foi utilizado o método de estimação do fator redistributivo proposto por Ledermann 2727. Lederman S. La répartition des décès de cause indéterminée. Revue l’Institut Internat Statistique 1955; 23:47-57., que se baseia no uso de uma equação linear simples em que o coeficiente β estima a proporção de redistribuição das causas mal definidas para uma causa (ou grupo) específico. Assim, a proporção de óbitos por COVID-19 foi considerada como variável dependente e a proporção de óbitos por causas mal definidas, desagregada por sexo, como variável independente 2828. Ferreira AMS. COVID-19 excess mortality in Paraíba and the most affected counties [Dissertação de Mestrado]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022.. Para o emprego de tal método de estimação, faz-se necessária a disponibilização de um número estatisticamente razoável (desejável que seja ≥ 30) de subáreas relativas à área de interesse.

Como forma de ilustrar a metodologia proposta, procedeu-se a uma aplicação para um estado do Brasil com porte populacional e com nível de desenvolvimento (Índice de Desenvolvimento Humano - IDH) abaixo da média brasileira, além de desagregações espaciais do estado ainda menores. Selecionou-se o Estado da Paraíba com desagregações regionais para João Pessoa (capital) e o conjunto dos demais municípios do estado - com exceção do Município de Campina Grande, segundo maior do estado, cuja exclusão deveu-se à ausência de dados por causas de morte desagregadas por sexo e grupos etários para as subáreas do município. Pela contagem populacional do estado em 2010 2929. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico. https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pb/ (acessado em 21/Abr/2021).
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, havia 3.766.528 habitantes, estimando-se, para 2020, 4.039.277 habitantes e densidade demográfica de 66,7 habitantes/km2. Em 2017, o IDH era 0,722, 20ª posição entre os 27 estados brasileiros (incluindo o Distrito Federal) 3030. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. AtlasBR. http://www.atlasbrasil.org.br/ (acessado em 22/Abr/2021).
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Enfatiza-se que a proposta metodológica para avaliação da qualidade dos dados de óbitos por COVID-19 é aplicável a qualquer região do mundo, seja do Brasil ou de outro País, independentemente da qualidade dos dados, desde que haja disponibilidade dos dados requeridos pela proposta, como quantitativo dos óbitos desagregados por sexo, idade e causas de morte. Mais ainda, esta proposta pode ser aplicada a qualquer causa de óbito específica na eventualidade, por exemplo, de haver interesse no entendimento da dinâmica de pandemias futuras.

Este estudo fez uso de dados secundários, de acesso público e sem identificação de sujeitos. Dessa forma, não se fez necessária a apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme estabelecido na Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

A cobertura dos óbitos estimados, por sexo, para a Paraíba, João Pessoa e o conjunto dos demais municípios do estado (não inclui o Município de Campina Grande) são mostrados na Tabela 1. Observa-se que a cobertura dos óbitos teve maior registro para os homens em todas as unidades geográficas analisadas.

Tabela 1
Fator de correção e cobertura dos óbitos totais acima dos 19 anos de idade, por sexo, segundo áreas geográficas do Estado da Paraíba, Brasil, 2020.

Para o sexo masculino, as coberturas dos óbitos para todos os recortes geográficos ultrapassaram os 90%, configurando-se como “ótima” de acordo com a classificação proposta por Paes 66. Paes NA. Demografia estatística dos eventos vitais. 2ª Ed. João Pessoa: Editora CCTA; 2018.. Já para o sexo feminino, as coberturas variaram entre 91,1% e 86,5%, sendo o menor desempenho verificado para a cobertura dos óbitos para os demais municípios do Estado da Paraíba que, mesmo assim, posiciona-se com uma classificação “boa”.

No caso do sexo feminino, a cobertura para os demais municípios da Paraíba resultou de um ajuste realizado por meio da relação entre a proporção dos óbitos entre homens e mulheres para todo o estado - ou seja, 0,9539 -, devido à não adequação do método BGC 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975. para este sexo. Essa relação entre os sexos foi aplicada na cobertura dos homens (90,7%), resultando em uma cobertura de 86,5% para as mulheres.

A cobertura para os sexos combinados para o Estado da Paraíba em 2020 (em torno de 93,3%) seguiu a tendência de aumento gradual, conforme estimado pela RIPSA (2012), que obteve, em 2000, 2005 e 2011, respectivamente 82,1%, 88,2% e 91,2% de cobertura 1818. Rede Interagencial de Informações para a Saúde. Indicadores e dados - Brasil - 2012. IDB-2012. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Tendo em vista a não disponibilidade dos dados por causas de óbitos para Campina Grande, de forma a possibilitar a aplicação da metodologia de distribuição das causas mal definidas adotada neste trabalho, este município não foi incluído nas etapas deste estudo. Assim, os valores obtidos pela redistribuição das causas mal definidas para as demais áreas territoriais são apresentados na Tabela 2, os quais resultaram em um aumento no número de óbitos por COVID-19 para ambos os sexos.

Tabela 2
Redistribuição de causas mal definidas e de Códigos Garbage relacionados à COVID-19 com correção dos óbitos registrados por sexo, segundo áreas geográficas do Estado da Paraíba, Brasil, 2020.

Do mesmo modo, a redistribuição dos valores dos Códigos Garbage resultou em expressivos aumentos no número de óbitos por COVID-19. O diferencial entre sexos apontou maior percentual de causas mal definidas e Códigos Garbage para o sexo feminino em comparação com o masculino. Em relação às causas mal definidas, foi observada variação de percentual redistribuído entre 15,2% e 17% (Paraíba e João Pessoa, respectivamente) para o sexo feminino, enquanto para o masculino a variação ficou entre 11,6% e 13,2% (demais municípios e João Pessoa, respectivamente).

A redistribuição de Códigos Garbage também revelou um diferencial por sexo, tendo recebido as mulheres um maior percentual em todos os recortes geográficos. A maior diferença entre os sexos, considerando o percentual redistribuído, foi observada na capital paraibana (36,4%), seguida pelo estado e demais municípios (20,4% e 19%, respectivamente). Na Tabela 3 são apresentados os resultados da redistribuição dos óbitos por COVID-19, considerando o total de causas mal definidas e de Códigos Garbage para a Paraíba, João Pessoa e demais municípios do estado.

Tabela 3
Redistribuição dos óbitos por COVID-19 considerando os componentes, fator de correção, causas mal definidas e Códigos Garbage, segundo áreas geográficas do Estado da Paraíba, Brasil, 2020.

A tabela também ilustra as etapas para aplicação do método proposto neste trabalho, em que tomou-se, como ponto de partida, a obtenção do fator de correção (f i ) calculado por meio da aplicação do método de BGC 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975., que foi posteriormente aplicado ao número de óbitos registrados Oobsj. Desta forma, obteve-se o número de óbitos corrigidos considerando o sub-registro fj*Oobsj. Com a inclusão das CMD (CMD j ) e CG (CG j ) relacionadas à causa em estudo foi possível ter conhecimento do número total de óbitos esperados por COVID-19 para o Estado da Paraíba e unidades geográficas analisadas. Com isto, houve um incremento no número de óbitos na ordem de 1.281 (37,4%), 418 (38,2%) e 804 (42,2%) para a Paraíba, João Pessoa e demais municípios, respectivamente, conforme mostrado na Tabela 4.

Tabela 4
Óbitos por COVID-19 esperados totais e ajustados por sexo, segundo áreas geográficas do Estado da Paraíba, Brasil, 2020.

Quando ajustados por sexo (Tabela 4), constatou-se maior incremento dos óbitos por COVID-19 para o sexo feminino. Para o estado, capital e o conjunto dos demais municípios, o incremento nos óbitos de mulheres foi de 680 (45,4%), 287 (60%) e 411 (49,8%), respectivamente; no caso dos óbitos masculinos, este incremento foi de 601 (31,2%), 131 (21,3%) e 393 (36,4%), respectivamente.

Discussão

Estimar a mortalidade atribuível a diferentes doenças, fatores de risco ou eventos de saúde é fundamental para nortear a alocação de recursos e avaliar as intervenções de saúde pública. No caso dos dados de mortalidade por COVID-19, estes também têm sido essenciais para entender a disseminação da doença. No entanto, a existência de sub-registro (subnotificação) nos registros oficiais de óbitos torna esse entendimento mais difícil 3131. Whittaker C, Walker PGT, Alhaffar M, Hamlet A, Djaafara BA, Ghani A, et al. Under-reporting of deaths limits our understanding of true burden of covid-19. BMJ 2021; 375:n2239..

O impacto do sub-registro das fontes de dados sobre óbitos raramente é incluído nas estimativas apresentadas nos diferentes meios de comunicação e difusão, que passaram a divulgar dados sobre óbitos por COVID-19 desde a eclosão da pandemia 3232. Kupek E. How many more? Under-reporting of the COVID-19 deaths in Brazil in 2020. Trop Med Int Health 2021; 26:1019-28.. Portanto, explorar a magnitude do sub-registro de mortes e examinar como o uso de fontes alternativas de mortalidade pode ajudar numa resposta mais equitativa à pandemia reforça a necessidade urgente de investimentos na consolidação dos sistemas de registro civil e das estatísticas vitais.

Para a definição da fonte a ser utilizada neste estudo, realizou-se primeiramente uma investigação acerca da qualidade de cinco fontes de dados oficiais sobre óbitos por COVID-19 para o Estado da Paraíba. Foram elas: Secretaria de Estado da Saúde da Paraíba (SES); Painel Coronavírus do Ministério da Saúde; e Painel da Transparência do Registro Civil - por data da ocorrência do óbito e data do registro do óbito -, bem como do SIM do Ministério da Saúde. Tanto em termos de volume de óbitos disponibilizados quanto em relação ao sub-registro de óbitos para cada fonte, constatou-se que a fonte SES apresentou melhor desempenho, com menor sub-registro em comparação às demais 3333. Ferreira AMS, Moura LA, Paes NA. Características dos óbitos por COVID-19 na Paraíba e no Brasil segundo diferentes fontes de dados. Conjecturas 2021; 21: 294-313.,3434. Moura LA. Fatores determinantes do tempo entre o início dos sintomas da COVID-19 e o óbito dos indivíduos adultos no Estado da Paraíba [Dissertação de Mestrado]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022., ou seja, 1,0038, enquanto a fonte de dados do SIM apresentou 1,0728.

A estimativa do sub-registro direto de 7,28% para os óbitos informados pelo SIM para a Paraíba ilustra o panorama de subnotificação de dados que tem sido atribuído aos óbitos por COVID-19 desde o início da pandemia. No entanto, deve-se destacar que há diferenças entre estados, inclusive de uma mesma região, como ocorreu para as divisões político-administrativas investigadas nesse trabalho (Paraíba, João Pessoa e demais municípios), o que faz necessário a realização de estudos localizados, que possam elucidar a situação singular de cada estado.

No entanto, quanto a disponibilidade de dados de cada fonte, constatou-se que o SIM é, dentre as fontes analisadas, a única que apresenta dados sobre óbitos por causas específicas e inespecíficas e desagregadas por sexo e idade. Assim, essa fonte foi definida como “padrão ouro” para a aplicação da metodologia proposta.

No caso da cobertura total dos óbitos calculada para a Paraíba, João Pessoa e os demais municípios do estado, verificou-se maior cobertura para o sexo masculino, com 95,47% de cobertura para todo o estado. Paes 22. Paes NA. Quality of death statistics by unknown causes in Brazilian states. Rev Saúde Pública 2007; 41:436-45. e Lima & Queiroz 3535. Lima EEC, Queiroz BL. A evolução do sub-registro de mortes e causas de óbitos mal definidas em Minas Gerais: diferenciais regionais. Rev Bras Est Popul 2011; 28:303-20. explicam que um dos fatores que concorre para a maior cobertura dos óbitos de homens deve-se a um maior registro de óbitos atribuídos às causas externas, os quais são mais fáceis de serem diagnosticados e notificados, uma vez que este grupo de causas de morte é um dos mais frequentes para este sexo.

Esses mesmos autores chamam à atenção de que quanto mais próxima da universalização do registro de óbitos uma região se encontra, menos diferencial é encontrado entre os gêneros, independentemente do nível de desenvolvimento. Por sua vez, é conhecido o fato de que a COVID-19 afeta mais os homens em idades acima dos 60 anos, os quais estariam um pouco distanciados das faixas mais afetadas pelas causas externas. Assim que, o efeito das causas externas como diferenciador entre a cobertura entre os gêneros, pode não ser devido exclusivamente às causas externas para os idosos quando se trata de corrigir os óbitos por COVID-19 para essa faixa etária. No entanto, para as regiões ilustradas neste estudo as coberturas foram classificadas como ótima, cujo efeito no diferencial entre os gêneros foi muito pequeno (95,5% para homens e 91,1% para mulheres). O mesmo também foi observado para João Pessoa e o conjunto dos demais municípios do estado. Assim, o entendimento é o de que os eventuais erros diferenciais por gênero nas estimativas das coberturas seriam muito pequenos ao serem aplicados para corrigir os dados de mortalidade por COVID-19 observados. Por sua vez, entre os três indicadores indicados para construir o índice proposto aqui, o que menos tem efeito é a cobertura, devido ao seu alto nível encontrado nas ilustrações dadas. Para uma região com baixa cobertura, no entanto, sugere-se cautela na interpretação das correções dos óbitos.

Considerando as coberturas dos óbitos para o espaço geográfico do Estado da Paraíba, de 2000 a 2011 1818. Rede Interagencial de Informações para a Saúde. Indicadores e dados - Brasil - 2012. IDB-2012. Brasília: Ministério da Saúde; 2012., as coberturas estimadas para 2020 mantiveram uma coerência conforme o esperado. De modo geral, a cobertura dos óbitos do SIM para a Paraíba tem seguido uma tendência de crescimento ao longo do tempo. Já para o Município de João Pessoa, também era esperado cobertura mais elevada do que para o estado como um todo, sendo o inverso esperado para os demais municípios.

Esses padrões de comportamento, de ascendência da cobertura dos óbitos na Paraíba de 2000 a 2011, serviram como base para que fosse estabelecido o critério exposto na metodologia, que definiu que nenhuma cobertura devia ficar abaixo do que fora verificado para 2011 pela RIPSA 1818. Rede Interagencial de Informações para a Saúde. Indicadores e dados - Brasil - 2012. IDB-2012. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..

É importante destacar que a equação do BGC proposto por Brass 77. Brass W. Methods for estimating fertility and mortality from limited and defective data. Chapel Hill: International Program of Laboratories for Population Statistics; 1975. se baseia na teoria das populações estáveis e configura-se como um método robusto, mesmo em situação de descumprimento de determinados supostos. Além disso, sua aplicação requer o conhecimento da distribuição da população por faixa etária, bem como da distribuição dos óbitos 66. Paes NA. Demografia estatística dos eventos vitais. 2ª Ed. João Pessoa: Editora CCTA; 2018..

Portanto, os critérios estabelecidos consideraram as mudanças na dinâmica da população da Paraíba, ou seja, o efeito da redução dos níveis da fecundidade nas últimas décadas com reflexo nas faixas etárias mais jovens e das taxas de mortalidade nas faixas etárias acima dos 65 anos, bem como o efeito das migrações, que é usualmente preponderante nas idades jovens adultas. Note-se que todos os intervalos etários, que proporcionaram o traçado da reta de ajuste na aplicação do modelo de Brass, foram com base nas idades entre 35 e 65/70 anos para todos os recortes geográficos e para ambos os sexos. Nesses intervalos etários foram obtidas retas de regressão cujos pontos se alinharam com um coeficiente de determinação mínimo de 97% entre os valores observados e estimados.

O menor número de óbitos esperados no total para João Pessoa (256) foi associado a proporções relativamente baixas de causas mal definidas e Códigos Garbage. Este fato sugere um melhor diagnóstico nas declarações de óbitos, mas um sub-registro proporcionalmente maior para as mulheres na capital do estado, o que não cabe aqui especular as razões.

Além disso, a inclusão das causas mal definidas e dos Códigos Garbage relacionados à COVID-19 permitiu a definição de uma estratégia de mensuração do número esperado de óbitos decorrentes da doença por COVID-19. Após a redistribuição dos óbitos, considerando o fator de correção dado pela aplicação do método BGC para o Estado da Paraíba e, tomando como padrão ouro o resultado dos óbitos esperados, obtido para a fonte SIM, pôde-se constatar a magnitude de sub-registro desta fonte. Ou seja, no total foram recuperados 1.281 óbitos para a Paraíba, representando cerca de 37,4% de óbitos por COVID-19 a mais além dos 3.426 registrados oficialmente pelo SIM.

Ao avaliar a magnitude do sub-registro das mortes em decorrência da COVID-19 no Brasil em 2020, Kupek 3232. Kupek E. How many more? Under-reporting of the COVID-19 deaths in Brazil in 2020. Trop Med Int Health 2021; 26:1019-28. encontrou 22,62% de subnotificação para os óbitos decorrentes da doença no país em 2020. De acordo com o estudo, a COVID-19 foi a terceira causa de mortalidade e contribuiu diretamente com 18% e indiretamente com 10 a 11% de mortes adicionais no Brasil em 2020.

Em estudo realizado por Alves et al. 3636. Alves THE, Souza TA, Silva SA, Ramos NA, Oliveira SV. Underreporting of death by COVID-19 in Brazil’s second most populous state. Front Public Health 2020; 8:578645., no qual foi avaliado o sub-registro de óbitos por COVID-19 no Estado de Minas Gerais, por meio dos dados disponibilizados por duas diferentes fontes oficiais, verificou-se uma discrepância significativa (109,45%) entre as fontes na notificação dos óbitos decorrentes da doença e constatou-se sub-registro dos óbitos no estado. Os autores também identificaram um excesso de mortalidade por COVID-19 para o período considerado, que foi associado a um inexplicável excesso de óbitos por síndrome respiratória aguda grave (SRAG), insuficiência respiratória e pneumonia, quando comparado a anos anteriores.

Veiga e Silva et al. 3737. Veiga e Silva L, Abi Harb MPA, Santos AMTB, Teixeira CAM, Gomes VHM, Cardoso EHS, et al. Covid-19 mortality underreporting in Brazil: analysis of data from government internet portals. J Med Internet Res 2020; 22:e21413., por sua vez, ao investigarem o sub-registro de casos e óbitos relacionados a COVID-19 nas cidades mais afetadas do Brasil (Belém, Manaus, Fortaleza, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro), no período considerado, encontraram significativas diferenças entre os números obtidos e esperados. Foram verificados aumentos dos números de mortes relacionadas a SRAG que variaram de 493% a 5.820% nas cidades estudadas e uma estimativa de subnotificação média de 40,68% para os óbitos em decorrência da COVID-19. Os autores sugeriram que o súbito aumento de óbitos pode estar associado a erros de notificação.

É preciso levar em conta que os valores esperados são estimativas sujeitas a múltiplos erros, sejam eles provocados pela errônea contagem dos óbitos e da população por faixa etária e sexo, violação dos supostos na aplicação das técnicas de correção de óbitos, e os erros que são inerentes a qualquer técnica de estimação de dados. Ademais, as estimativas vão depender da fonte de dados utilizada. Sendo assim, as estimativas obtidas com tais análises podem conter vieses.

À despeito das divergências entre as estimativas de sub-registro nas regiões do Brasil, seja pelas diferentes fontes de dados ou diferentes metodologias empregadas, um ponto em comum é que todos concordam que houve um sub-registro importante nos dados da COVID-19 de forma generalizada em todo o país. Apesar de alguns destes estudos terem feito tentativas de obter estimativas para o sub-registro de óbitos, em nenhum dos trabalhos referenciados aqui houve uma abordagem metodológica considerando simultaneamente os três eixos adotados neste trabalho: subnotificação dos óbitos, redistribuição das causas mal definidas e Códigos Garbage em óbitos por COVID-19.

O arcabouço metodológico utilizado neste estudo auxiliou na otimização das informações dos registros de óbitos, cuja metodologia pode ser replicada para outras regiões do Brasil, possibilitando tomar conhecimento acerca da magnitude de sub-registro dos óbitos por COVID-19 nos demais estados e municípios, e para outras temporalidades. Além disso, esta metodologia também é passível de ser utilizada para outras causas de óbito, no entanto, deve-se haver o devido cuidado quanto ao levantamento das causas mal definidas e dos Códigos Garbage, que devem estar relacionados à causa básica de óbito a ser investigada.

Os procedimentos propostos aqui combinados demandam baixo custo operacional e seus usos são relativamente simples de serem aplicados pelos gestores e técnicos dos sistemas de informações das estatísticas vitais, o que fortalece, por exemplo, ações de vigilância em saúde e a tomada de decisão em prol do enfrentamento desta e das demais epidemias que possam vir a acometer a população.

A adoção de métodos robustos e que considerem características específicas de cada patologia, como fora realizado neste estudo, deve ser uma realidade no estudo da mortalidade por causas, sobretudo ao empregar em sua operacionalização a investigação de causas que não foram muito bem investigadas ou especificadas quando da identificação da causa básica do óbito e do preenchimento da declaração de óbito pelos profissionais responsáveis.

Enfatiza-se que como se tratam de estimativas, todos os indicadores de ajustes contêm erros. Com relação à cobertura, como os níveis estimados foram > 90%, os erros embutidos são muito pequenos, de modo que pouco afetaria as estimativas dos indicadores de mortalidade. Isso porque, o índice proposto (óbitos esperados) é uma combinação de três indicadores f*Oobsj+CMDj+CGj, dentre os quais aqueles que mais afetam o índice são as causas mal definidas e os arbage codes (CMD j + CG j ). Nesse sentido, a adoção desses fatores de ajuste é recomendada para tomar decisões, formular políticas, tomar medidas preventivas e de avaliação relacionadas à COVID-19 ou monitorar os registros de óbitos voltadas para a saúde da população, uma vez que com os fatores de ajustes, pode-se construir um conjunto de indicadores de mortalidade mais confiáveis. Como exemplo podem ser construídas medidas como o excesso de mortalidade, diferenciais de mortalidade e taxas de mortalidade. Aplicações sobre o excesso de mortalidade e características relacionadas aos óbitos corrijidos, como o tempo desde o início dos sintomas da COVID-19 e a presença de comorbidades foram aplicadas nos trabalhos de Ferreira 2828. Ferreira AMS. COVID-19 excess mortality in Paraíba and the most affected counties [Dissertação de Mestrado]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022. e Moura 3434. Moura LA. Fatores determinantes do tempo entre o início dos sintomas da COVID-19 e o óbito dos indivíduos adultos no Estado da Paraíba [Dissertação de Mestrado]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022. respectivamente para o Estado da Paraíba.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (CAPES) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Paraíba (FAPESQ).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2022
  • Revisado
    16 Nov 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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