Diálogos para uma prática científica mais coletiva

Luciana Dias de Lima Marilia Sá Carvalho Luciana Correia Alves Sobre os autores

Da perspectiva da Saúde Coletiva, como podemos contribuir com práticas e formas de comunicar e avaliar a produção científica que possibilitem um diálogo mais plural, inclusivo e integrador?”. Essa foi a indagação feita por Viviana Martinovich, Editora Executiva da revista Salud Colectiva (Argentina), para orientar a roda de conversa com editores de periódicos do campo, no âmbito do 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A questão nos faz refletir sobre quatro temas e processos inter-relacionados, com implicações e desafios significativos para as revistas científicas: produção do conhecimento, democratização da ciência, divulgação científica e avaliação da produção científica.

A produção do conhecimento envolve a capacidade de produzir respostas para as necessidades sociais decorrentes das mudanças do mundo atual. Essas transformações vão desde as de ordem demográfica e epidemiológica até as tecnológicas e informacionais, relacionadas ao seu uso no trabalho, na pesquisa, no ensino, no cuidado à saúde e nas estratégias de comunicação e informação. Além disso, abordam os fenômenos climáticos e ambientais decorrentes da atividade humana sobre os ecossistemas do planeta, gerando degradação e aumento dos riscos nos espaços urbanos e rurais. As modificações nas estruturas de produção, com flexibilização, informalidade e precarização do trabalho, são determinantes fundamentais desses processos e envolvem a concentração da riqueza, a financeirização da economia e a emergência de novos grupos e interesses privados que atuam na saúde. É evidente o efeito dessas transformações no agravamento das desigualdades sociais - diferenças de classe, gênero, raça, etnia, moradia e acessibilidade - que pioram as condições de vida e saúde.

As mudanças afetam de modo desigual os países, as populações, os sistemas e serviços de saúde, provocando instabilidade e crises recorrentes e de múltiplas dimensões. O contexto reforça a importância da radicalização das perspectivas crítica e multidisciplinar, que estão na própria origem do campo da Saúde Coletiva 11. Birman J. A Physis da saúde coletiva. Physis (Rio J.) 2005; 15 Suppl:11-6.. A compreensão de fenômenos complexos como aqueles que se verificam na saúde exige esforços de colaboração e articulação de diferentes saberes e perspectivas, que perpassam as áreas e subáreas do campo e devem se expressar nas pesquisas e publicações científicas. Nesse sentido, destaca-se a importância da abertura de espaços nas revistas que incentivem o diálogo e a variedade de abordagens, temas e enfoques, e que contribuam de maneira efetiva para a formulação e implantação de políticas públicas e ações.

No processo de democratização da ciência, destaca-se a necessidade do compartilhamento aberto do conhecimento. A Ciência Aberta é atualmente um movimento global que tem como propósito tornar a pesquisa acessível, por meio da eliminação de obstáculos editoriais, legais e econômicos, com livre circulação e uso do conhecimento científico 22. Bezjak S, Conzett P, Fernandes PL, Görögh E, Helbig K, Kramer B, et al. Opens science training handbook. https://open-science-training-handbook.gitbook.io/book/ (acessado em 08/Dez/2022).
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,33. Ross-Hellauer T, Reichmann S, Cole NL, Fessl A, Klebel T, Pontika N. Dynamics of cumulative advantage and threats to equity in open science: a scoping review. R Soc Open Sci 2022; 9:211032.. As implicações para os periódicos científicos 44. Martins HC. A importância da ciência aberta (open science) na pesquisa em administração. Revista de Administração Contemporânea 2020; 24:1-2. envolvem alterações em procedimentos editoriais, incluindo: a garantia da livre disponibilidade de conteúdo digital de caráter científico a qualquer usuário; a avaliação pelas revistas de manuscritos disponibilizados em servidores preprints; o compartilhamento de dados, códigos, métodos e outros materiais utilizados nas pesquisas publicadas; e a abertura de informações referentes ao processo de revisão por pares.

Os desafios nesse âmbito são enormes, ainda que mudanças já estejam em curso, em parte pelos estímulos de agências de fomento. Existem barreiras devido à configuração e influência de grandes oligopólios que dominam o mercado mundial da publicação científica 55. Amaral O. Publicação científica: um mercado de luxo? Folha de S.Paulo 2021; 30 abr. https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/publicacao-cientifica-um-mercado-de-luxo/.
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. As taxas de publicação de artigos na maioria das vezes aprofundam as desigualdades entre cientistas de países desenvolvidos e em desenvolvimento no compartilhamento de avanços científicos. Assim, torna-se necessário que o movimento a favor da Ciência Aberta envolva estratégias de cooperação acadêmica e novos modelos de publicação que promovam oportunidades iguais para pesquisadores em todo o mundo. Além disso, existem obstáculos culturais e relacionados a necessidades de maiores investimentos em tecnologias e qualificação profissional para a adoção de práticas abertas pelas revistas científicas da Saúde Coletiva.

A divulgação científica é outro tema de extrema relevância, que se expressa tanto como campo de conhecimento quanto como estratégia de ação 66. Chagas C, Massarani L. Manual de sobrevivência para divulgar ciência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2020.. Tem como objetivos: ampliar o debate e combater o anticientificismo, tornar o conhecimento científico mais acessível e, consequentemente, mais democrático a um público mais amplo e fortalecer os laços entre a ciência e os cidadãos, uma vez que possibilita a inclusão de pessoas no debate sobre temas especializados que apresentam influências diretas em suas vidas.

Com a pandemia de COVID-19, a participação de cientistas na divulgação aumentou, mas dos artigos científicos nesse processo nem tanto. A distância é grande entre as formas de comunicação adotadas por cientistas e públicos de fora da academia, que não falam a mesma língua e nem usam os mesmos formatos e estratégias para difusão e uso de resultados de pesquisas. Da mesma forma, é difícil transformar o artigo em material de divulgação. Tudo isso exige maior engajamento de editores, pesquisadores, comunicadores e autores para selecionar as evidências com maior potencial de aplicabilidade e elaborar estratégias e instrumentos mais efetivos de comunicação da ciência. São necessários esforços que permitam que os resultados das pesquisas cheguem de forma mais atraente aos públicos escolhidos, aumentando as chances de incorporação das evidências científicas para o enfrentamento de problemas da Saúde Coletiva.

Finalmente, o quarto tema refere-se aos processos de avaliação da produção científica. Sabemos que a avaliação da ciência é permeada por interesses de diferentes grupos e que ainda predomina uma sobrevalorização do uso de indicadores bibliométricos para a avaliação da qualidade da produção científica. Em artigo publicado pelo conjunto de revistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) 77. Cadernos de Saúde Pública; História, Ciências, Saúde - Manguinhos; Memórias do Instituto Oswaldo Cruz; Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde; Revista Fitos; Trabalho, Educação e Saúde; et al. Contribuições ao debate sobre a avaliação da produção científica no Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00173219., ressaltamos os diversos problemas relacionados ao uso de fator de impacto para essa finalidade: priorização de temas de interesse da política científica de países do hemisfério norte (Estados Unidos e Reino Unido, principalmente); ajuste do conteúdo publicado por revistas científicas de países não hegemônicos; e valorização extrema de publicações em inglês, que afasta a ciência dos leitores não especializados e dificulta o importante papel dos periódicos na disponibilização de informações para formação nos diversos níveis requeridos pela sociedade e pelos sistemas de saúde.

No Brasil, a quantidade de publicações ainda é mais valorizada do que a qualidade, a originalidade e o impacto potencial dos resultados das pesquisas na avaliação da produção científica, em que pese a importância da Saúde Coletiva diante dos desafios atuais. Na pós-graduação, persistem estímulos para o financiamento de publicações em revistas estrangeiras. O fato é que enquanto não ocorrerem mudanças mais substantivas nos critérios de avaliação da ciência, estarão comprometidos maiores avanços no sentido da democratização e efetividade no uso do conhecimento científico.

Como CSP têm atuado frente a esses diferentes processos?

CSP se destaca como uma revista representativa do campo da Saúde Pública/Saúde Coletiva, nos cenários internacional e nacional. Preservamos o caráter abrangente e a diversidade de temáticas nas publicações, incorporando abordagens e métodos das pesquisas atuais 88. Alves LC, Carvalho MS, Lima LD. Transparência e processo editorial: como é o trabalho das Editoras-chefes? Cad Saúde Pública 2022; 38:e00089822. e indicando áreas que merecem maior destaque na produção científica do campo. Além disso, procuramos estimular a publicação de temas de relevância para a Saúde Coletiva, por meio de diferentes seções da revista (particularmente nas seções Debate, Espaço Temático e Perspectivas), sem perder de vista a originalidade e a qualidade dos artigos publicados.

Do mesmo modo, mantemos e valorizamos a publicação de artigos em português e espanhol, buscando maior alcance e aplicabilidade das publicações nos países de língua latina. Entendemos que CSP é uma referência e tem um importante papel na América Latina e deve continuar a fomentar o diálogo científico entre os países da região.

No ano de 2023, CSP terá como tema das fotos de capa a Amazônia. A preocupação climática e a agenda ambiental estão entre os principais problemas que o mundo vem enfrentando. Consideramos necessário retomar o protagonismo dos países da América do Sul em repensar a Amazônia, não mais como local para extração de minérios e expansão do agronegócio, mas como patrimônio da humanidade. Esse debate faz parte do compromisso da Saúde Coletiva e CSP pretende promover e ampliar esse diálogo com a academia e a sociedade. Temas como os desequilíbrios provocados pelo desmatamento e pelas mudanças climáticas e os riscos causados para a saúde humana, povos originários, população ribeirinha, além de mobilidade espacial da população, condições de vida, uso da terra, segurança, entre outros, serão alguns dos temas contemplados ao longo do próximo ano.

Temos nos envolvido, ainda, nos debates da Ciência Aberta promovidos pela coleção SciELO, pelos fóruns de editores científicos da Abrasco, da Fiocruz e de outras instituições científicas, procurando incorporar novas práticas em prol do compartilhamento aberto do conhecimento produzido na Saúde Coletiva, contribuindo para uma ciência mais transparente e acessível a todos. Em tempos em que a democracia está ameaçada, movimentos que objetivam garantir livremente acesso aos materiais, dados, códigos e conteúdos acadêmicos por todos os atores da sociedade permitem a prática de uma ciência mais colaborativa e engajada com a realidade social.

A divulgação científica tem sido uma prioridade. Começamos a utilizar o Facebook e o Twitter em 2017-2018 de forma menos profissional. Atualmente, contamos com um jornalista científico e adotamos rotinas específicas em diferentes frentes de atuação: redes sociais; assessoria de imprensa; entrevistas com autores (vídeos para o YouTube e áudios na forma de podcast) 99. Mansur V, Guimarães C, Carvalho MS, Lima LD, Coeli CM. Da publicação acadêmica à divulgação científica. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00140821.. Pretendemos avançar mais, promovendo maior envolvimento dos autores e suas instituições e aprofundando a avaliação dos esforços e investimentos da revista na divulgação científica.

Por último, reforçamos nosso compromisso no debate sobre a avaliação da produção científica, à luz dos princípios e das orientações internacionais sobre o tema 1010. San Francisco Declaration on Research Assessment. https://sfdora.org/read/ (acessado em 08/Dez/2022).
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,1111. Hicks D, Wouters P, Waltman L, de Rijcke S, Rafols I. Bibliometrics: the Leiden Manifesto for research metrics. Nature 2015; 520:429-31., que reforçam a importância da avaliação qualitativa e de uma ciência soberana, comprometida com a diversidade, a equidade, a inclusão e a acessibilidade - valores que sustentam e enriquecem a democracia e a ciência!

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    Birman J. A Physis da saúde coletiva. Physis (Rio J.) 2005; 15 Suppl:11-6.
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    Bezjak S, Conzett P, Fernandes PL, Görögh E, Helbig K, Kramer B, et al. Opens science training handbook. https://open-science-training-handbook.gitbook.io/book/ (acessado em 08/Dez/2022).
    » https://open-science-training-handbook.gitbook.io/book/
  • 3
    Ross-Hellauer T, Reichmann S, Cole NL, Fessl A, Klebel T, Pontika N. Dynamics of cumulative advantage and threats to equity in open science: a scoping review. R Soc Open Sci 2022; 9:211032.
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    Martins HC. A importância da ciência aberta (open science) na pesquisa em administração. Revista de Administração Contemporânea 2020; 24:1-2.
  • 5
    Amaral O. Publicação científica: um mercado de luxo? Folha de S.Paulo 2021; 30 abr. https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/publicacao-cientifica-um-mercado-de-luxo/
    » https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/publicacao-cientifica-um-mercado-de-luxo/
  • 6
    Chagas C, Massarani L. Manual de sobrevivência para divulgar ciência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2020.
  • 7
    Cadernos de Saúde Pública; História, Ciências, Saúde - Manguinhos; Memórias do Instituto Oswaldo Cruz; Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde; Revista Fitos; Trabalho, Educação e Saúde; et al. Contribuições ao debate sobre a avaliação da produção científica no Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00173219.
  • 8
    Alves LC, Carvalho MS, Lima LD. Transparência e processo editorial: como é o trabalho das Editoras-chefes? Cad Saúde Pública 2022; 38:e00089822.
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    Mansur V, Guimarães C, Carvalho MS, Lima LD, Coeli CM. Da publicação acadêmica à divulgação científica. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00140821.
  • 10
    San Francisco Declaration on Research Assessment. https://sfdora.org/read/ (acessado em 08/Dez/2022).
    » https://sfdora.org/read/
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    Hicks D, Wouters P, Waltman L, de Rijcke S, Rafols I. Bibliometrics: the Leiden Manifesto for research metrics. Nature 2015; 520:429-31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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