Introdução
Recentemente publicada, a Portaria nº 635, de 22 de maio de 2023 do Ministério da Saúde, instituiu o incentivo financeiro federal de implantação e custeio para as equipes multiprofissionais (eMulti) na atenção primária à saúde (APS) 11. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Institui, define e cria incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde. Diário Oficial da União 2023; 23 may.. A nova proposta tem a interprofissionalidade como uma de suas diretrizes e constitui um arranjo substitutivo aos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF).
As eMulti emergem num cenário de reconstrução da APS no Brasil, com fortalecimento das ações interprofissionais e na interface com a agenda de incorporação de tecnologias e inovações na saúde. O novo arranjo mantém algumas similaridades com o trabalho do NASF e dispõe de novos mecanismos organizativos e estruturais. Nesse contexto, algumas questões e características são pouco claras e suscitam reflexões sobre esse novo modelo de multiprofissionalidade.
Este artigo objetiva refletir sobre potencialidades e desafios das eMulti para a ampliação da resolubilidade na APS no Brasil. Para tanto, tomamos como referência o cenário de reconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS) 22. Chioro A, Temporão JG, Massuda A, Costa H, Castro MC, Lima NT. From Bolsonaro to Lula: the opportunity to rebuild universal healthcare in Brazil in the government transition. Int J Health Plann Manage 2023; 38:569-78., o contexto da APS no Brasil 33. Almeida ER, Sousa ANA, Brandão CC, Carvalho FFBD, Tavares G, Silva KC. Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015-2017). Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e180. e dos desafios da multiprofissionalidade no nível primário 44. Mattos MP, Gutiérrez AC, Campos GWS. Construção do referencial histórico-normativo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:3503-16..
Contexto e características das eMulti
Vivenciaram-se no Brasil, entre 2016 e 2022, dois governos de direita radical, orientados por visão política de rígida austeridade fiscal e defesa dos interesses privatistas. Estes atuaram para o desmantelamento do SUS, desfinanciamento da saúde e, consequente, fragilização da APS 22. Chioro A, Temporão JG, Massuda A, Costa H, Castro MC, Lima NT. From Bolsonaro to Lula: the opportunity to rebuild universal healthcare in Brazil in the government transition. Int J Health Plann Manage 2023; 38:569-78.. Esse cenário começou a ser modificado a partir de janeiro de 2023, com a posse do presidente Lula e a retomada da agenda de fortalecimento e consolidação do SUS.
Ainda nos 100 primeiros dias de governo, medidas relevantes foram adotadas pelo Ministério da Saúde, como a revogação de notas técnicas e portarias que contrariavam a ciência, os direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos. Como exemplo, cita-se a revogação da Portaria nº 2.561/2020, que obrigava ao profissional de saúde notificar a polícia acerca da realização de aborto legal, em caso de estupro. Além disso, destacamos as seguintes iniciativas que evidenciam o direcionamento para a reconstrução do SUS e a garantia da saúde como direito de cidadania: retomada do Programa Mais Médicos; fortalecimento da agenda da imunização por meio do Movimento Nacional pela Vacinação; ampliação da cobertura de serviços de APS, com a publicação de novos credenciamentos de equipes; retomada da agenda da segurança alimentar e nutricional; ampliação das bolsas de residência em saúde; sanção da Política Nacional de Saúde Bucal na Lei Orgânica da Saúde; regulamentação do piso nacional da enfermagem; e a instituição do financiamento das eMulti.
As eMulti são definidas como equipes de profissionais de saúde de diferentes áreas de conhecimento que atuam de maneira complementar e integrada à APS, com atuação corresponsável pela população e pelo território, em articulação intersetorial e com a Rede de Atenção à Saúde 11. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Institui, define e cria incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde. Diário Oficial da União 2023; 23 may.. Foram instituídas três modalidades de equipes, compostas por um conjunto fixo e variável de profissionais. A eMulti Ampliada vincula-se de 10 a 12 equipes de APS e é composta com carga horária mínima de 300 horas. A eMulti Complementar deve atender de cinco a nove equipes e ser composta por mínimo de 200 horas de atuação. Por sua vez, a eMulti Estratégica, composta por uma carga horária mínima de 100 horas, deve prestar atendimento de uma a quatro equipes de APS 11. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Institui, define e cria incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde. Diário Oficial da União 2023; 23 may.. Destaca-se, assim, a oportunidade de universalização da eMulti para todos os municípios do país, inclusive com a perspectiva do modelo intermunicipal.
Outra característica que favorece a abrangência das eMulti é a possibilidade de vinculação a todas as modalidades de equipes de APS. Cada equipe multidisciplinar pode estar integrada a uma ou mais: equipe de saúde da família; equipe de saúde da família ribeirinha; equipe de consultório na rua; equipe de atenção primária; e equipe de unidade básica de saúde (UBS) fluvial. Por sua vez, as equipes de APS apenas podem estar vinculadas a uma eMulti.
Destaca-se também o amplo rol de atividades que podem ser desenvolvidas. As ações a serem ofertadas pelas eMulti são: atendimento individual, em grupo e domiciliar; atividades coletivas; apoio matricial; discussões de casos; atendimento compartilhado entre profissionais e equipes; oferta de ações de saúde a distância; projetos terapêuticos e intervenções no território; e práticas intersetoriais. Esse largo espectro de atividades previstas, a depender de como são organizadas e ofertadas, tem grande capacidade de contribuir para a ampliação da resolubilidade da APS, conforme previsto na normativa.
eMulti: possibilidades e desafios para o avanço da APS
Atender as demandas das pessoas, da população e dos territórios constitui o principal propósito das eMulti 11. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Institui, define e cria incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde. Diário Oficial da União 2023; 23 may.. Objetivos como ampliar o escopo de práticas, aprimorar a resolubilidade da APS e integrar assistência, prevenção, promoção, vigilância e formação em saúde denotam o direcionamento para o cuidado abrangente em saúde.
Nesse sentido, analisamos algumas dimensões estratégicas das novas equipes, que podem representar potencialidades ou desafios para a ampliação do cuidado na APS.
No campo das potencialidades, destaca-se o incentivo financeiro como relevante estratégia indutiva do fortalecimento do trabalho interprofissional na APS. Cabe refletir que, a partir da revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 e da publicação da Emenda Constitucional nº 95/2016, o que se viu de concreto foi a limitação do investimento público em saúde 33. Almeida ER, Sousa ANA, Brandão CC, Carvalho FFBD, Tavares G, Silva KC. Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015-2017). Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e180.. Essa situação foi agravada, em 2019, pelo Previne Brasil, que extinguiu o financiamento discricionário para as equipes de NASF. Como consequência, ocorreu o descredenciamento significativo da quantidade de NASF nos anos de 2020 e 2021 44. Mattos MP, Gutiérrez AC, Campos GWS. Construção do referencial histórico-normativo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:3503-16..
Diante desse contexto, consideramos que a Portaria nº 635/2023 tem grande capacidade de gerar forte adesão dos municípios, em razão de os valores financeiros serem atrativos. Uma eMulti Ampliada, que obtenha elevado desempenho e realize atendimento remoto, pode alcançar, a partir de janeiro de 2024, o valor de R$ 47.500 por mês. Ao considerar apenas o pagamento de pessoal, para o cumprimento da carga horária mínima de 300 horas, o valor equivalente a uma jornada de 40 horas é de R$ 6.000 e de R$ 3.000 para um profissional de 20 horas. Embora se saiba que a atuação da equipe envolve muitos outros custos, esses valores equivalentes, certamente, são superiores aos pagos aos profissionais do NASF, excetuando a categoria médica.
Outro aspecto positivo é a ampla diversidade de profissões que podem compor as equipes. De acordo com a portaria, é possível a atuação de 12 profissões de diferentes áreas do conhecimento. Como aspecto inovador, 11 especialidades médicas também podem integrar as eMulti. Tal espectro fortalece o propósito de interprofissionalidade na APS.
Destaca-se, também, o extenso rol de atividades que podem ser desenvolvidas pelas eMulti. As ações previstas são capazes de contribuir para a ampliação do escopo de práticas e da resolubilidade da APS. Merece ser evidenciado que as eMulti ampliam as atribuições previstas para o NASF. Na PNAB de 2017, o termo apoio matricial foi retirado do conjunto de ações do NASF e com as eMulti volta a figurar como atividade formalmente prevista. Ainda, a incorporação tecnológica das ações de saúde mediadas por tecnologias de informação e comunicação, especialmente as teleconsultas, tem grande potencial para contribuir para a redução dos encaminhamentos para outros níveis de atenção.
Nesse sentido, consideramos que os atendimentos remotos constituem um caráter inovador da proposta e são capazes de viabilizar a ampliação do escopo de práticas, especialmente em localidades distantes dos grandes centros urbanos e com difícil fixação de especialistas. Por sua vez, a depender de como essa modalidade seja implementada, há a possibilidade de uma eMulti totalmente virtual, o que pode prejudicar o vínculo entre as equipes, bem como entre a eMulti e os usuários. Diante da escassez de médicos especialistas em diversas regiões do país, sugere-se que os atendimentos remotos se direcionem predominantemente para tais especialidades, com o risco de reprodução de uma clínica especializada descontextualizada do atributo da orientação comunitária.
Ainda entre as potencialidades, ressalta-se o estabelecimento do pagamento de incentivo por avaliação de desempenho. Instituir a avaliação de desempenho perene e com indicadores voltados à resolução de problemas e satisfação das pessoas atendidas concede robustez à proposta e sinaliza a possibilidade de aprimoramento continuado. Além disso, tais indicadores podem apoiar a conformação das agendas de trabalho das equipes e induzir um modelo de atenção favorável à consolidação e ao fortalecimento da APS.
Entre os desafios, ressalta-se a necessidade de melhor orientação sobre a organização do trabalho das eMulti. Não está claro na proposta qual ênfase se espera das eMulti, como deve se estruturar o processo de trabalho e como serão os fluxos e as pactuações com as equipes de APS. Assim, consideramos que, similarmente ao NASF, as novas equipes multiprofissionais carecem de uma identidade quanto ao seu espaço institucional e às atribuições no âmbito da APS.
Desde a gênese do NASF, persistem ambiguidades relacionadas às concepções e práticas das equipes multiprofissionais 55. Almeida ER, Medina MG. A gênese do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) na agenda da atenção primária à saúde brasileira. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00310820.. Bispo Júnior & Moreira 66. Bispo Júnior JP, Moreira DC. Núcleos de Apoio à Saúde da Família: concepções, implicações e desafios para o apoio matricial. Trab Educ Saúde 2018; 16:683-702. destacam existir dicotomia entre atividades individuais/curativas vs. grupais/promocionais no trabalho dos núcleos. Almeida & Medina 55. Almeida ER, Medina MG. A gênese do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) na agenda da atenção primária à saúde brasileira. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00310820. ressaltam que as normativas oficiais do NASF, ao elencar um conjunto de funções sem definir as atividades a serem desempenhadas, incorrem na falta de clareza sobre os resultados esperados. Tais indefinições operacionais se repetem na portaria da eMulti e podem comprometer o propósito de ampliação da resolubilidade.
Associada ao tipo de ênfase que se espera, há também a necessidade de se estabelecer os parâmetros para os fluxos assistenciais. Falta nitidez na normativa sobre os mecanismos de interação com as equipes de APS. A dúvida que persiste é se o trabalho das eMulti se fundamentará na lógica do cuidado colaborativo a partir do predomínio da interação entre as equipes ou se ele ocorrerá preferencialmente por meio de encaminhamentos para atendimentos clínicos.
Outro desafio que se apresenta é sobre as condições estruturais. Inexistem no texto da portaria propostas de reestruturação dos espaços físicos das UBS. O atendimento remoto deve ser feito de forma assistida, em sala destinada à atividade e com a intermediação de profissional da saúde 11. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Institui, define e cria incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde. Diário Oficial da União 2023; 23 may.. É necessária, portanto, nitidez sobre as adequações e/ou construções para essa modalidade de atendimento. Além disso, as outras ações exigirão a presença dos trabalhadores nas UBS. Diversos estudos 66. Bispo Júnior JP, Moreira DC. Núcleos de Apoio à Saúde da Família: concepções, implicações e desafios para o apoio matricial. Trab Educ Saúde 2018; 16:683-702.,77. Arce VAR, Teixeira CF. Atividades desenvolvidas por profissionais de Núcleos de Apoio à Saúde da Família: revisão da literatura. Trab Educ Saúde 2018; 16:1443-64.,88. Bispo Júnior JP, Moreira DC. Cuidado colaborativo entre os Núcleos de Apoio à Saúde da Família e as equipes apoiadas. Physis (Rio J.) 2018; 28:e280310. sinalizam que as garantias estruturais influenciam as práticas e os resultados do trabalho do NASF. Entende-se a importância de valorizar os espaços comunitários, todavia é fundamental garantir espaços adequados e condições materiais para o trabalho das eMulti no âmbito da UBS.
Destacamos, ainda, os desafios inerentes à gestão do trabalho e da educação das eMulti. É importante estar atento a como se darão as relações de trabalho, especialmente as formas de contratação e de vínculo. Advertimos a incoerência de se instituir um novo serviço de saúde com o risco de aumentar a precarização e a terceirização, além de fortalecer meios de contratação danosos, como as Organizações Sociais da Saúde. Também cabe mencionar os desafios inerentes à formação dos profissionais e a necessidade de se instituir uma política de educação permanente para as eMulti e as equipes de APS. A portaria não aborda nenhum aspecto sobre políticas formativas. Certamente, muitos profissionais começarão a atuar sem qualquer formação para o trabalho na eMulti.
Considerações finais
Acreditamos que a retomada das equipes multiprofissionais seja estratégica para promover o cuidado integral da população, contribuindo para ampliar o escopo de práticas e a resolubilidade da APS. Entretanto, não basta apenas retomar o financiamento. É preciso incorporar a interprofissionalidade como diretriz do SUS e da APS, reconhecendo-a como tal na Lei Orgânica da Saúde e em todo o arcabouço legal vigente, inclusive com a reformulação da PNAB.
Cabe ressaltar que os desafios discutidos no artigo não poderiam ser abarcados em sua totalidade no âmbito da Portaria nº 635/2023, que tem o objetivo específico de instituir o financiamento das eMulti. Por sua vez, caso tais desafios não sejam enfrentados adequadamente, eles poderão obstaculizar ou mesmo inviabilizar o bom desempenho das equipes. É necessário avançar na organização do trabalho, no adequado dimensionamento das equipes, nas condições de trabalho na APS e em processos robustos de formação e qualificação profissional.
Agradecimentos
Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES; código de financiamento 001).
Referências
- 1Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Institui, define e cria incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde. Diário Oficial da União 2023; 23 may.
- 2Chioro A, Temporão JG, Massuda A, Costa H, Castro MC, Lima NT. From Bolsonaro to Lula: the opportunity to rebuild universal healthcare in Brazil in the government transition. Int J Health Plann Manage 2023; 38:569-78.
- 3Almeida ER, Sousa ANA, Brandão CC, Carvalho FFBD, Tavares G, Silva KC. Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015-2017). Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e180.
- 4Mattos MP, Gutiérrez AC, Campos GWS. Construção do referencial histórico-normativo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:3503-16.
- 5Almeida ER, Medina MG. A gênese do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) na agenda da atenção primária à saúde brasileira. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00310820.
- 6Bispo Júnior JP, Moreira DC. Núcleos de Apoio à Saúde da Família: concepções, implicações e desafios para o apoio matricial. Trab Educ Saúde 2018; 16:683-702.
- 7Arce VAR, Teixeira CF. Atividades desenvolvidas por profissionais de Núcleos de Apoio à Saúde da Família: revisão da literatura. Trab Educ Saúde 2018; 16:1443-64.
- 8Bispo Júnior JP, Moreira DC. Cuidado colaborativo entre os Núcleos de Apoio à Saúde da Família e as equipes apoiadas. Physis (Rio J.) 2018; 28:e280310.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
28 Jun 2023 - Revisado
08 Set 2023 - Aceito
14 Set 2023