Adesão à dieta EAT-Lancet e sua relação com insegurança alimentar e renda em uma amostra de base populacional brasileira

Adhesión a la dieta EAT-Lancet y su relación con la inseguridad alimentaria y los ingresos en una muestra de base poblacional brasileña

Mariana Alves Ferreira Alexsandro Macedo Silva Dirce Maria Lobo Marchioni Eduardo De Carli Sobre os autores

Resumo:

O objetivo deste estudo foi investigar a relação entre a adesão à dieta planetária com a situação de segurança alimentar e nutricional e renda familiar per capita, utilizando amostra representativa da população brasileira. Entre os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018, os indicadores de desigualdade selecionados para a análise foram as informações sobre renda familiar per capita e segurança alimentar e nutricional. Também foram considerados dados de consumo alimentar individual de 46.164 brasileiros com idade ≥ 10 anos, obtidos por meio de recordatórios alimentares de 24 horas, no Inquérito Nacional de Alimentação, conduzido junto à POF 2017-2018. O Índice de Dieta Planetária (PHDI) foi empregado para mensurar a adesão à dieta planetária. Dados sociodemográficos foram expressos como frequência (%), com análise da média e intervalo de 95% de confiança (IC95%) do escore do PHDI. A relação entre segurança alimentar e nutricional e renda com o escore do PHDI foi testada em modelos de regressão linear múltipla. Os cálculos foram executados no software Stata, adotando uma significância de 5%. Menores médias do PHDI foram observadas entre indivíduos em insegurança alimentar, do sexo masculino, < 20 anos, pardos e indígenas, com renda < 0,5 salário mínimo, domiciliados na zona rural e das regiões Norte e Nordeste. Na regressão linear múltipla, a insegurança alimentar foi inversamente relacionada ao escore do PHDI (ꞵ = -0,56; IC95%: -1,06; -0,06), sendo as menores pontuações associadas à insegurança alimentar grave (β = -1,31; IC95%: -2,19; -0,55). As categorias de renda não foram independentemente associadas com o escore PHDI (p de tendência = 0,900). Portanto, a insegurança alimentar demonstrou afetar negativamente a adesão dos brasileiros à dieta planetária.

Palavras-chave:
Consumo Alimentar; Segurança Alimentar; Pobreza

Resumen:

El objetivo de este estudio fue investigar la relación entre la adherencia a la dieta planetaria con la situación de seguridad alimentaria y nutricional y el ingreso familiar per cápita en un estudio con una muestra representativa de la población brasileña. Entre los datos de la Encuesta de Presupuestos Familiares (POF) 2017-2018, los indicadores de desigualdad seleccionados para el análisis fueron la información sobre el ingreso familiar per cápita y la seguridad alimentaria y nutricional. También se utilizaron los datos de consumo alimentario individual de 46.164 brasileños ≥ 10 años, obtenidos mediante registros de alimentos de 24 horas, en la Encuesta Nacional Alimentaria, realizada con POF 2017-2018. Se utilizó el Índice de Dieta Planetaria (PHDI) para medir la adherencia a la dieta planetaria. Los datos sociodemográficos se expresaron como frecuencia (%), con análisis de la media e intervalo de 95% de confianza (IC95%) de la puntuación del PHDI. La relación entre el seguridad alimentaria y nutricional y los ingresos con la puntuación del PHDI se probó en modelos de regresión lineal múltiple. Los cálculos se realizaron en el software Stata, con el nivel de significación del 5%. Se observaron medias más bajas del PHDI entre individuos con inseguridad alimentaria, hombres, < 20 años, pardos e indígenas, con ingresos < 0,5 salario mínimo, residentes en zonas rurales y en las regiones Norte y Nordeste de Brasil. En la regresión lineal múltiple, la inseguridad alimentaria se relacionó inversamente con la puntuación del PHDI (ꞵ = -0,56; IC95%: -1,06; -0,06), y las puntuaciones más bajas estaban asociadas con la inseguridad alimentaria grave (β = -1,31; IC95%: -2,19; -0,55). Las categorías de ingresos no se asociaron de forma independiente con la puntuación PHDI (p de tendencia = 0,900). Por lo tanto, la inseguridad alimentaria afecta negativamente la adherencia de los brasileños a la dieta planetaria.

Palabras-clave:
Consumo Alimentario; Seguridad Alimentaria; Pobreza

Introdução

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), pautaram a importância da tomada de ação para o combate às desigualdades, à fome e à pobreza, e sobre os impactos ambientais, considerando a necessidade da promoção de um sistema de agricultura mais sustentável para a garantia da saúde humana e planetária 11. Organização das Nações Unidas. Transformando nosso mundo: Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. https://sdgs.un.org/2030agenda (accessed on 20/Oct/2022).
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. Em confluência com os ODS, a Comissão EAT-Lancet sobre Alimentos, Planeta e Saúde, divulgou, em 2019, a proposta de um guia de referência mundial, estabelecendo intervalos para a ingestão de grupos de alimentos selecionados, conhecida como dieta planetária 22. Willett W, Rockström J, Loken B, Springmann M, Lang T, Vermeulen S, et al. Food in the Anthropocene: the EAT-Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems. Lancet 2019; 393:447-92..

A Comissão EAT-Lancet descreve, em seu relatório, que uma dieta planetária é composta por diversidade de vegetais, com pequenas porções de alimentos de origem animal, dando preferência a gorduras não saturadas, grãos integrais e limitando açúcares adicionados 22. Willett W, Rockström J, Loken B, Springmann M, Lang T, Vermeulen S, et al. Food in the Anthropocene: the EAT-Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems. Lancet 2019; 393:447-92.. Recentemente, Cacau et al. 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698. desenvolveram o Índice de Dieta Planetária (PHDI - Planetary Health Diet Index), cuja construção teve como base o modelo de alimentação saudável e sustentável proposto pela Comissão EAT-Lancet, e foi validado para mensurar a adesão à dieta planetária.

Porém, dados sobre a acessibilidade das populações a esse modelo de dieta planetária ainda são pouco explorados 44. Springmann M, Clark AM, Rayner M, Scarborough P, Webb P. The global and regional costs of healthy and sustainable dietary patterns: a modelling study. Lancet Planet Health 2021; 5:e797-807., em especial entre aquelas em situação de vulnerabilidade social. A insegurança alimentar representa a limitação de acesso pleno e permanente a alimentos, estando a fome ligada à sua forma mais grave 55. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.,66. Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM, Kurdian L, Archanjo MF, Marin L, Panigassi G. An adapted version of the U.S. Department of Agriculture food insecurity module is a valid tool for assessing household food insecurity in Campinas, Brazil. J Nutr 2004; 134:1923-8.. De acordo com o mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) 77. Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children's Fund; World Food Programme; World Health Organization. The State of Food Security and Nutrition in the World 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2022., publicado em 2022, cerca de 924 milhões de pessoas no mundo foram expostas à forma mais severa de insegurança alimentar. Estudos anteriores já demonstraram que a renda também tem vínculo importante com o acesso à alimentação adequada 88. Mayén AL, Marques P, Paccaud F, Bovet P, Stringhini S. Socioeconomic determinants of dietary patterns in low- and middle-income countries: a systematic review. Am J Clin Nutr 2014; 100:1520-31.,99. Hirvonen K, Bai Y, Headey D. Affordability of the EAT-Lancet diet: a global analysis. Lancet 2020; 8:E59-66.. Sendo assim, o objetivo deste estudo foi investigar a relação entre adesão à dieta planetária com a situação de segurança alimentar e a renda familiar per capita.

Métodos

Pesquisa de Orçamentos Familiares

A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) é uma pesquisa de abrangência nacional, realizada por amostragem, e tem como unidade de investigação o domicílio. Seus inquéritos visam coletar informações como a renda familiar per capita, despesas familiares, condições de vida e hábitos de consumo das famílias brasileiras 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. A coleta de dados da POF ocorre ao longo de 12 meses, e as informações são obtidas por meio de entrevistas realizadas em domicílios particulares, durante nove dias consecutivos.

Assim como na edição anterior 1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020., a POF de 2017-2018 realizou o Inquérito Nacional de Alimentação (INA), cujo objetivo foi coletar dados sobre o consumo alimentar individual e obter estimativas dietéticas para a população total, bem como para os estratos de sexo, faixa etária, renda familiar mensal, situação urbana ou rural e macrorregiões. Na edição de 2017-2018, o INA abrangeu 20.112 domicílios selecionados aleatoriamente, o que corresponde a uma subamostra de 34,7% do total de 57.920 domicílios investigados na POF, totalizando informações sobre o consumo alimentar de 46.164 indivíduos com idade maior ou igual a 10 anos. Nessa mesma edição, e pela primeira vez em uma POF, foram coletados dados sobre a situação de segurança alimentar e nutricional. Os microdados da POF 2017-2018 foram obtidos na página de Internet oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020..

Segurança alimentar e nutricional

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) foi utilizada nos inquéritos do bloco POF 6 para obter dados de segurança alimentar e nutricional 1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Pérez-Escamilla et al. 66. Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM, Kurdian L, Archanjo MF, Marin L, Panigassi G. An adapted version of the U.S. Department of Agriculture food insecurity module is a valid tool for assessing household food insecurity in Campinas, Brazil. J Nutr 2004; 134:1923-8. desenvolveram a EBIA realizando uma adaptação da versão do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). O questionário conta com 14 questões, de resposta sim ou não, e cada resposta positiva caracteriza 1 ponto. A categoria de segurança alimentar é determinada por pontuação igual a 0. A insegurança alimentar tem três graus de severidade, e as pontuações que determinam cada um dependem da ausência ou presença de menores de 18 anos no domicílio, sendo dividida em: grau leve (1-5 pontos na presença de < 18 anos e 1-3 pontos na ausência de < 18 anos); moderado (6-9 pontos na presença de < 18 anos e 4-5 pontos na ausência de < 18 anos); e grave (10-14 pontos na presença de < 18 anos e 6-8 pontos na ausência de < 18 anos) 1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020..

Renda familiar per capita

A renda disponível consta entre os dados do perfil de despesa das famílias brasileiras e os rendimentos da população foram coletados por meio de informações sobre o rendimento total, que inclui o rendimento não monetário. Desconsiderando a variação patrimonial, o rendimento monetário abrange todas as formas de ganho monetário, durante o período de 12 meses anteriores à entrevista, e o rendimento não monetário leva em conta os ganhos de bens e serviços adquiridos de forma não monetária (p.ex.: doação, retirada do negócio, troca ou produção própria) 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. A renda disponível resulta da soma do rendimento monetário e não monetário total da unidade de consumo, dividida pelo número total de moradores, caracterizando a renda familiar per capita1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Informações sobre a renda familiar per capita foram utilizadas, categorizando os indivíduos segundo a disponibilidade de salários mínimos de 2018, que era R$ 954,00 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020., nas seguintes categorias: até 0,5; 0,5-1; 1-2; e > 2.

Inquérito Nacional de Alimentação

Os dados de consumo alimentar individual foram obtidos por meio de dois recordatórios alimentares de 24 horas (R24h), coletados nos domicílios entrevistados, em dias não consecutivos 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. A entrevista foi desenvolvida seguindo um roteiro estruturado em estágios sequenciais, embasado no método de múltiplas passagens 1212. Conway JM, Ingwersen LA, Vineyard BT, Moshfegh AJ. Effectiveness of the US Department of Agriculture 5-step multiple-pass method in assessing food intake in obese and nonobese women. Am J Clin Nutr 2003; 77:1171-8., com auxílio de um software instalado em um tablet. Para cada alimento, o software disponibiliza informações das unidades de medidas caseiras para possibilitar a estimativa da quantidade consumida. Nessa edição, o banco contou com um total de 1.832 alimentos cadastrados. A tabela de medidas referidas para os alimentos consumidos no Brasil - desenvolvida na POF 2008-2009 1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: tabela de medidas referidas para os alimentos consumidos no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2011., revisada e atualizada na POF 2017-2018 - auxiliou a estimar as quantidades de consumo em gramas, ou mililitros de cada alimento e bebida 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Foi considerado para este trabalho apenas o primeiro R24h coletado, sendo esse consumo alimentar representativo para os dias de semana e de final de semana, em todos os meses do ano.

Índice de Dieta Planetária

O PHDI foi empregado para avaliar a adesão à dieta EAT-Lancet. Para atender às recomendações propostas pela Comissão EAT-Lancet, Cacau et al. 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698. definiram 16 componentes, que foram agrupados em quatro categorias: componentes de adequação (nozes e amendoins, leguminosas, frutas, vegetais totais e grãos integrais); componentes de consumo ótimo (ovos, laticínios, peixes e frutos do mar, batatas e tubérculos e óleos vegetais); componentes de moderação (carne vermelha, frangos e substitutos, gordura animal e açúcares adicionados); e componentes de razão (vegetais verdes-escuros totais e vegetais vermelhos e alaranjados totais).

Nos R24h foram identificados alimentos in natura ou minimamente processados (frutas e vegetais simples cozidos) e alimentos compostos por múltiplos ingredientes, que requerem o desmembramento de seus ingredientes para serem classificados nos componentes do PHDI, incluindo preparações culinárias à base de um ingrediente principal (p.ex.: alimentos com molho, adição de óleo, manteiga ou sal), preparações mistas (p.ex.: feijoada e bolos) e produtos processados industrializados (p.ex.: salgadinhos e refrigerantes). Os ingredientes de preparações culinárias foram desmembrados a partir de padrões de receitas caseiras disponíveis em referências nacionais 1414. Fisberg RM, Villar BS. Manual de receitas e medidas caseiras para cálculo de inquéritos alimentares. São Paulo: Signus; 2002.,1515. Pinheiro ABV. Tabela para avaliação de consumo alimentar em medidas caseiras. 5th Ed. São Paulo: Atheneu; 2008.,1616. Universidade de São Paulo; Food Research Center. Tabela brasileira de composição de alimentos. Versão 7.1. http://www.fcf.usp.br/tbca (accessed on 22/Nov/2021).
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. Assim como o descrito por Cacau et al. 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698., produtos processados industrializados à base de um componente principal (p.ex.: chips salgados à base de amido de milho) tiveram o seu fracionamento energético baseado em seus ingredientes principais e no conteúdo de açúcares adicionados e/ou gordura total. Seguindo o exemplo de chips salgados, a porcentagem energética de gorduras totais é assumida como a contribuição da fração do óleo vegetal nesse alimento. Após descontar as gorduras totais dos chips, assume-se a contribuição do grupo dos grãos refinados (o amido de milho) como o restante do valor energético desse alimento.

Após o desmembramento de receitas culinárias e produtos processados industrializados, foi realizada a classificação de seus ingredientes dentro dos componentes considerados pela dieta proposta pela Comissão EAT-Lancet 22. Willett W, Rockström J, Loken B, Springmann M, Lang T, Vermeulen S, et al. Food in the Anthropocene: the EAT-Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems. Lancet 2019; 393:447-92., seguindo o procedimento descrito por Cacau et al. 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698.. A pontuação de cada componente do índice é baseada na sua contribuição calórica para a ingestão energética total (isto é, total dos alimentos que foram classificados em um dos componentes ÷ total de alimentos incluídos no PHDI * 100). De acordo com o seu tipo (adequação, consumo ótimo, razão ou moderação), cada grupo alimentar componente da dieta teve a respectiva pontuação calculada, a depender do quanto seus valores de ingestão se aproximam ou se afastam de pontos de corte (pontuação máxima) e/ou de limites (pontuação mínima) estabelecidos na dieta referência. Componentes de adequação, consumo ótimo e de moderação graduam até 10 pontos, enquanto os componentes de razão, até 5 pontos. A pontuação final do índice é gradual, variando de 0 a 150 pontos. Detalhes sobre o PHDI podem ser consultados na publicação original, que descreve seu desenvolvimento e validação de acordo com nível de consumo relativo ao valor calórico total 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698..

Análise estatística

O conjunto de variáveis sociodemográficas disponíveis e utilizadas nas análises foram: sexo (masculino e feminino), anos de estudo (≤ 8; ≥ 9 e ≤ 11; e ≥ 12), faixa etária em anos (< 20; 20-30; 31-45; 46-59; e > 60), região do país (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul; e Centro-oeste), área da residência (urbana ou rural), autodeclaração étnico-racial (branca; preta; parda; amarela; e indígena), e estado nutricional (baixo-peso; eutrofia; sobrepeso; e obesidade). O índice de massa corporal (IMC; kg/m2) dos indivíduos foi calculado a partir do peso e estatura autorreferidos na coleta de dados da POF, para assim classificá-lo segundo as categorias de estado nutricional entre adolescentes (< 20 anos) - a partir do z-escore - e adultos (20-30; 31-45; e 46-59 anos), considerando os pontos de corte estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 1717. World Health Organization. Physical status: the use and interpretation of anthropometry. Report of a WHO Expert Committee. https://apps.who.int/iris/handle/10665/37003 (accessed on 30/May/2022).
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, e os de Lipschitz entre idosos (> 60 anos) 1818. Lipschitz DA. Screening for nutritional status in the elderly. Prim Care 1994; 21:55-67..

Dados descritivos foram expressos como frequência (%), médias e seus respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%). O percentual da insegurança alimentar e baixa renda foi expresso em cada Unidade da Federação (UF), assim como a porcentagem máxima de escore do PHDI, relativa ao total de 150 pontos. O escore do PHDI foi analisado segundo variáveis sociodemográficas. A pontuação, o percentual de contribuição calórica para o total diário e o consumo em gramas por dia (g/d) de cada grupo alimentar que compõem o PHDI também foram avaliados segundo categorias extremas de renda familiar per capita e de segurança alimentar e nutricional. Em análises descritivas, diferenças estatísticas entre médias foram identificadas na ausência de intersecção dos seus IC95%.

Por meio de modelos de regressão linear múltipla, o escore do PHDI foi relacionado com a variação da renda familiar per capita (referência: até 0,5 salário mínimo) e com a situação de insegurança alimentar e nutricional (referência: segurança alimentar). Um procedimento stepwise forward foi utilizado para a inclusão de variáveis de ajuste nos modelos de regressão múltipla, retendo aquelas que estiveram significativamente associadas ao escore PHDI. Três modelos foram apresentados: o primeiro relativo à análise univariada; o segundo, ajustado para sexo (referência: masculino), faixa etária (referência: < 20 anos) e autodeclaração étnico-racial (referência: branca); e o terceiro acrescido com as demais variáveis sociodemográficas modificáveis: escolaridade (referência: até 8 anos de estudo), área do domicílio (referência: urbana), região (referência: Norte), IMC (kg/m2) e valor calórico total da dieta (kcal/dia). Foram também testadas possíveis interações entre covariáveis sociodemográficas e nutricionais com a renda familiar per capita e a situação de insegurança alimentar e nutricional. Os modelos finais foram testados quanto à multicolinearidade, utilizando fator de inflação da variância (VIF), e quanto à normalidade dos resíduos, utilizando análise gráfica de histogramas e Q-Q plots. A análise estatística foi executada no software Stata 14.0 (https://www.stata.com), levando em conta a complexidade da amostra e os fatores de expansão, aplicando o comando survey em todos os cálculos. Em todas as análises de regressão linear múltipla foi adotado um nível de significância de 5%.

Resultados

A prevalência de insegurança alimentar entre brasileiros com idade ≥ 10 anos em 2017-2018 foi de 40,9%. Como apresentado na Tabela 1, em comparação aos indivíduos em segurança alimentar, aqueles com algum grau de insegurança alimentar apresentaram uma média em torno de 1,4 ponto mais baixa no PHDI (46,4 e 45,0, respectivamente). As diferenças estatísticas entre as situações de segurança alimentar e insegurança alimentar ocorreram em ambos os sexos e áreas de residência urbana ou rural, sendo especialmente evidente entre indivíduos na faixa etária > 60 anos, autodeclarados como brancos e pardos, residentes na Região Nordeste, indivíduos com até 11 anos de estudo, renda familiar per capita de até 0,5 salário mínimo, e estado nutricional classificado como eutrofia ou sobrepeso.

Tabela 1
Médias de escore do Índice de Dieta Planetária (PHDI) segundo as características sociodemográficas estratificadas pela situação de segurança alimentar. Brasil, 2017-2018.

No mapa da distribuição do percentual de pontuação do PHDI entre as UF brasileiras, é possível observar que Amazonas, Pará, Acre, Amapá, Maranhão, Rio Grande do Norte e Alagoas apresentaram grande concentração de indivíduos com renda familiar per capita até 0,5 salário mínimo (Figura 1a), assim como as mais altas prevalências de insegurança alimentar (Figura 1b). Essas UF apresentaram as mais baixas médias de adesão à dieta planetária, correspondendo a 27,3%, 30,2%, 30,4%, 29,3%, 28,8%, 28,2% e 25,8% do total de 150 pontos do PHDI, respectivamente (Figura 1c).

Figura 1
Distribuição de baixa renda familiar per capita, situação de insegurança alimentar e percentual de adesão à dieta planetária nas Unidades da Federação, Brasil.

Um dos modelos de regressão linear múltipla apresentados na Tabela 2 relaciona o escore do PHDI e a situação de segurança alimentar e nutricional. Observou-se que, em particular, a insegurança alimentar grave foi a que mais significativamente se associou com menores pontuações, apresentando, em seus casos, uma média de escore do PHDI 1,31 ponto menor que a estimada para aqueles em segurança alimentar (β = -1,31; IC95%: -2.12; -0.50).

Tabela 2
Regressão linear múltipla da associação do escore do Índice de Dieta Planetária (PHDI) com classes de renda familiar per capita e graus de insegurança alimentar.

Como apresentado na Tabela 2, as categorias de renda mostraram associação direta com o escore do PHDI em modelo univariado (p de tendência < 0,001) e ajustado para sexo, autodeclaração étnico-racial e faixa etária (p de tendência < 0,001); porém, perderam significância quando consideradas as demais variáveis sociodemográficas (p de tendência = 0,903). Não houve evidências de interações significativas entre a situação de segurança alimentar ou renda familiar per capita com as variáveis sociodemográficas e nutricionais testadas sobre o escore do PHDI.

A fim de melhor compreender os fatores relacionados com as menores adesões à dieta planetária, médias de consumo em gramas/dia, de percentual de contribuição calórica relativo ao total diário e de pontuação dos grupos alimentares que compõem o PHDI foram avaliadas segundo as categorias extremas de renda familiar per capita (até 0,5 e > 2 salários mínimos), e de segurança alimentar e nutricional (segurança alimentar e insegurança alimentar grave) (Tabela 3).

Tabela 3
Consumo em gramas, porcentagem energética diária e pontuação média dos componentes do Índice de Dieta Planetária (PHDI), estratificados pelos extremos de renda familiar per capita e situação de segurança alimentar e nutricional.

Indivíduos do menor quartil de renda, comparados ao do maior, apresentaram maior média de consumo, em gramas, de leguminosas, peixes e frutos do mar, e menor nos demais grupos alimentares. A maior média de ingestão de peixes e menor consumo dos demais grupos alimentares também foi observada entre indivíduos no mais grave nível de insegurança alimentar em relação àqueles em segurança alimentar, com exceção de leguminosas, batatas, ovos e nozes. O consumo de carnes vermelhas por indivíduos com renda familiar per capita até 0,5 salário mínimo foi 9% menor em relação àqueles com > 2 salários mínimos; por outra via, indivíduos em insegurança alimentar grave consumiram 26,9% menos carnes vermelhas em relação a quem estava em segurança alimentar. Não houve evidência de diferenças no consumo de frango e substitutos entre as categorias extremas de segurança alimentar e nutricional.

Em ambos os extremos de renda e segurança alimentar, as pontuações do PHDI acompanharam as diferenças observadas para consumo em gramas da maioria dos componentes alimentares de adequação, moderação e razão. Já entre os componentes de consumo ótimo, baixas pontuações decorreram de um consumo acima do valor médio recomendado para laticínios entre indivíduos com > 2 salários mínimos e em segurança alimentar, e de um consumo acima do valor médio recomendado para peixes e frutos do mar entre indivíduos com renda de até 0,5 salário mínimo e em insegurança alimentar grave. Além disso, o baixo consumo de nozes e amendoins, e grãos integrais propiciou baixas pontuações entre ambas as categorias extremas de renda familiar per capita e de segurança alimentar e nutricional. No caso dos vegetais totais e frutas, indivíduos com renda > 2 salários mínimos e em segurança alimentar garantiram melhores pontuações em relação aos indivíduos com renda até 0,5 salário mínimo e em insegurança alimentar grave, com uma diferença de consumo em gramas de 43,8% e 38,2% respectivamente. Já para o consumo de leguminosas não houve evidência de diferenças entre os extremos de segurança alimentar e nutricional (Tabela 3).

Discussão

Este estudo investigou a relação entre adesão à dieta planetária com a insegurança alimentar e renda, aplicando o PHDI 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698. em dados do consumo alimentar individual de um estudo com amostra representativa da população brasileira com idade ≥ 10 anos. Foi observado que a insegurança alimentar se relacionou negativamente ao escore do PHDI, porém a renda familiar per capita não foi um determinante para adesão ao PHDI, independentemente de outras características sociodemográficas.

Os padrões alimentares evidenciados nesta amostra demonstraram que a população brasileira, de modo geral, apresentou baixo consumo de componentes de adequação como frutas, vegetais totais, nozes e amendoins, e os grãos integrais. O consumo das leguminosas seguiu um padrão diferente, tendo a maior pontuação entre os componentes de adequação, o que pode estar relacionado à alta prevalência do consumo de feijão, parte do hábito alimentar brasileiro, como ressaltado no relatório da análise de consumo individual da POF 2017-2018 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. O consumo de carnes vermelhas, apesar de se ter observado menor consumo em gramas por indivíduos com renda até 0,5 salário mínimo e em insegurança alimentar grave, esteve além do preconizado pela Comissão EAT-Lancet, refletindo em baixas pontuações no escore do PHDI, independentemente de categorias de renda familiar per capita e segurança alimentar e nutricional. A prevalência de consumo de leguminosas, como o feijão, e carne vermelha poderia ser explicada por uma maior aceitação cultural, uma vez que esses componentes são fortemente vinculados à cultura alimentar local 1919. Massarani FA, Cunha DB, Muraro AP, Souza BSN, Sichieri R, Yokoo EM. Agregação familiar e padrões alimentares na população brasileira. Cad Saúde Pública 2015; 31:2535-45.,2020. Marchioni DML, Claro RM. Patterns of food acquisition in Brazilian households and associated factors: a population-based survey. Public Health Nutr 2011; 14:1586-92..

Verly Junior et al. 2121. Verly Junior E, Oliveira DCRS, Sichieri R. Cost of healthy and culturally acceptable diets in Brazil in 2009 and 2018. Rev Saúde Pública 2021; 55 Suppl 1:7s. conduziram um estudo com a mesma amostra da nossa análise, evidenciando que, para atingir recomendações de uma dieta saudável ao menor custo possível, famílias de baixa renda ainda poderiam se deparar com alto gasto para adequar o consumo de frutas e hortaliças. Além disso, um estudo realizado por Ricardo & Claro 2222. Ricardo CZ, Claro RM. Custo da alimentação e densidade energética da dieta no Brasil, 2008-2009. Cad Saúde Pública 2012; 28:2349-61., com dados da POF 2008-2009, relacionou o custo da alimentação com a densidade energética da alimentação de brasileiros, e os resultados identificaram maiores preços associados a alimentos como as frutas, verduras e legumes, demonstrando que a renda configura um fator importante para acessibilidade a uma dieta mais saudável e de menor densidade calórica 2222. Ricardo CZ, Claro RM. Custo da alimentação e densidade energética da dieta no Brasil, 2008-2009. Cad Saúde Pública 2012; 28:2349-61.. De acordo com nossos achados, indivíduos com renda familiar per capita até 0,5 salário mínimo consumiram significativamente menos frutas e vegetais em relação às pessoas com renda > 2 salários mínimos, reforçando que a renda pode ser um fator limitante para uma alimentação com a presença de alimentos considerados saudáveis e sustentáveis.

Uma análise, a nível global, promovida por Hirvonen et al. 99. Hirvonen K, Bai Y, Headey D. Affordability of the EAT-Lancet diet: a global analysis. Lancet 2020; 8:E59-66., demonstrou, por meio da investigação do custo dos alimentos que compõem a dieta planetária, que as populações de baixa renda poderiam ter dificuldades em atender às recomendações da Comissão EAT-Lancet. Já foi descrito, em estudo prévio 2323. Marchioni DM, Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Rulli MC. Low adherence to the EAT-Lancet sustainable reference diet in the Brazilian population: findings from the National Dietary Survey 2017-2018. Nutrients 2022; 14:1187., que as médias do escore de adesão à dieta planetária para indivíduos brasileiros no mais baixo quartil de renda eram menores, se comparadas às médias para população no maior quartil de renda. Entretanto, segundo nossos achados, a renda familiar per capita não esteve associada ao escore do PHDI, independentemente de outras características sociodemográficas. Vale sinalizar, nesse sentido, as reconhecidas limitações das medidas de renda média per capita, já que tende a ser subestimada, especialmente nos domicílios mais ricos 2424. Almeida G, Sarti FM. Measuring evolution of income-related inequalities in health and health care utilization in selected Latin American and Caribbean countries. Rev Panam Salud Pública 2013; 33:83-9., e não é capaz de refletir variações entre unidades domésticas com exigências diferenciais atribuíveis à composição de moradores em diferentes ciclos da vida 2525. Mello AV, Sarti FM, Pereira JL, Goldbaum M, Cesar CLG, Alves MCGP, et al. Determinants of inequalities in the quality of Brazilian diet: trends in 12-year population-based study (2003-2015). Int J Equity Health 2018; 17:72.. Além disso, os indivíduos estão sujeitos a diversos contextos, além dos relacionados à disponibilidade de renda, que configuram um desafio para a adesão à dieta planetária, uma vez que há diferenças no custo de vida 2626. Almeida AN, Azzoni CR. Custo de vida comparativo das regiões metropolitanas brasileiras: 1996-2014. Revista de Estudos Econômicos 2016; 46:253-76., nos preços e na disponibilidade de alimentos 55. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.,2727. Darmon N, Drewnowski A. Does social class predict diet quality? Am J Clin Nutr 2008; 87:1107-17. entre as regiões do país, fatores que promovem desigualdades locais na acessibilidade a uma dieta de qualidade.

Já a insegurança alimentar se relacionou inversamente com a adesão à dieta planetária, sendo observadas pontuações menores do PHDI conforme o aumento de sua severidade, independentemente de outras características sociodemográficas. Assim como para a renda, observamos grande desigualdade na distribuição da insegurança alimentar entre as UF do Brasil. Em locais com taxas elevadas de insegurança alimentar também foram observados os mais baixos percentuais de pontuação no PHDI, sugerindo um papel importante desse fenômeno para a piora da qualidade da dieta na população brasileira.

Marchioni et al. 2323. Marchioni DM, Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Rulli MC. Low adherence to the EAT-Lancet sustainable reference diet in the Brazilian population: findings from the National Dietary Survey 2017-2018. Nutrients 2022; 14:1187. demonstraram, em seu estudo, que as médias de pontuação no PHDI foram menores entre as pessoas mais jovens, domiciliadas na zona rural, residentes nas regiões Norte e Nordeste, e com as menores rendas. O relatório da POF 2017-2018 sobre segurança alimentar indica que esses mesmos grupos citados são os mais propensos à insegurança alimentar 1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Esta análise também observou que o consumo em gramas de grupos alimentares importantes para a adequação às recomendações da Comissão EAT-Lancet, como frutas, vegetais totais e grãos integrais, foram significativamente menores quando os indivíduos estão na forma mais severa da insegurança alimentar, reforçando que a insegurança alimentar é um fenômeno que impacta negativamente a adesão à dieta planetária.

A baixa renda é descrita como um dos principais motivos da insegurança alimentar; no entanto, a disponibilidade e preço dos alimentos, com influências advindas do sistema alimentar, bem como o custo com as demais necessidades básicas essenciais a nível local, são determinantes para a insegurança alimentar, sendo fatores que vão além da renda disponível para a garantia de acesso pleno à alimentação 2323. Marchioni DM, Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Rulli MC. Low adherence to the EAT-Lancet sustainable reference diet in the Brazilian population: findings from the National Dietary Survey 2017-2018. Nutrients 2022; 14:1187.,2424. Almeida G, Sarti FM. Measuring evolution of income-related inequalities in health and health care utilization in selected Latin American and Caribbean countries. Rev Panam Salud Pública 2013; 33:83-9.,2525. Mello AV, Sarti FM, Pereira JL, Goldbaum M, Cesar CLG, Alves MCGP, et al. Determinants of inequalities in the quality of Brazilian diet: trends in 12-year population-based study (2003-2015). Int J Equity Health 2018; 17:72.,2626. Almeida AN, Azzoni CR. Custo de vida comparativo das regiões metropolitanas brasileiras: 1996-2014. Revista de Estudos Econômicos 2016; 46:253-76.,2727. Darmon N, Drewnowski A. Does social class predict diet quality? Am J Clin Nutr 2008; 87:1107-17.,2828. Silva JYK, Cunha MS, Costa CKF. Evolução e determinantes da insegurança alimentar nos domicílios rurais e urbanos brasileiros no período de 2004 - 2013. Revista de Economia Agrícola 2019; 66:erea052018.,2929. Maluf RS, Speranza JS. Preços dos alimentos, modelos de agricultura e abastecimento alimentar no Brasil: os casos da soja e do feijão. Relatório técnico. Rio de Janeiro: Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional; 2014.. No Brasil, programas voltados à promoção de segurança alimentar e nutricional foram eficazes no combate à insegurança alimentar e pobreza 3030. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Balanço das ações do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - PLANSAN 2012-2015. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014.. Porém, as políticas promotoras de segurança alimentar e nutricional perderam espaço na agenda política brasileira como consequência de uma crise iniciada por volta de 2014, o que intensificou a insegurança alimentar no país nos anos de 2017-2018, prejudicando a qualidade de vida e a alimentação da população 3131. Haack A, Fortes R, Abu Ali B, Alvarenga AP. Políticas e programas de nutrição no Brasil da década de 30 até 2018: uma revisão da literatura. Comun Ciênc Saúde 2018; 29:126-38..

É reconhecido que os dados de segurança alimentar e nutricional, coletados por meio da EBIA, configuram uma limitação para o estudo, uma vez que se referem a nível domiciliar e não necessariamente a um nível individual, como o priorizado neste trabalho. Porém, o questionário da EBIA possibilita captar diferentes dimensões do fenômeno da insegurança alimentar, com pontos de corte diferentes para domicílios com presença ou ausência de menores de 18 anos, podendo assim expressar como cada grau de insegurança alimentar pode atingir os indivíduos do domicílio 66. Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM, Kurdian L, Archanjo MF, Marin L, Panigassi G. An adapted version of the U.S. Department of Agriculture food insecurity module is a valid tool for assessing household food insecurity in Campinas, Brazil. J Nutr 2004; 134:1923-8..

Também é importante reconhecer que a subnotificação do consumo alimentar é uma limitação comum em estudos de base populacional que utilizam inquéritos como o R24h, não sendo possível prever quais alimentos especificamente estarão sujeitos a esse viés. Em contrapartida, o R24h é a ferramenta mais utilizada em estudos de base populacional, por ter o menor erro de medida associado 3232. Freedman LS, Commins JM, Moler JE, Arab L, Baer DJ, Kipnis V, et al. Pooled results from 5 validation studies of dietary self-report instruments using recovery biomarkers for energy and protein intake. Am J Epidemiol 2014; 180:172-88., tendo a coleta de dados da POF 2017-2018 que segue rígidos padrões metodológicos, a fim de favorecer a qualidade das informações obtidas 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,1212. Conway JM, Ingwersen LA, Vineyard BT, Moshfegh AJ. Effectiveness of the US Department of Agriculture 5-step multiple-pass method in assessing food intake in obese and nonobese women. Am J Clin Nutr 2003; 77:1171-8.. Além disso, para garantir maior precisão da análise e levando em consideração que a utilização de uma medida de R24h é descrita como um método adequado para estudos interessados em descrever e comparar médias de consumo alimentar em nível de grupo 3333. National Cancer Institute. Dietary Assessment Primer. https://dietassessmentprimer.cancer.gov/ (accessed on 12/May/2023).
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,3434. Gibson RS, Ferguson EL. An interactive 24-hour recall for assessing the adequacy of iron and zinc intakes in developing countries. Washington DC: International Food Policy Research Institute/Cali: International Center for Tropical Agriculture; 2008. (HarvestPlus Technical Monograph, 8)., o primeiro R24h foi utilizado, já que é reconhecido como a medida menos sujeita aos vieses de subnotificação da ingestão energética 3535. Subar AF, Knipis V, Troiano RP, Midthune D, Schoeller DA, Bingham S, et al. Using intake biomarkers to evaluate the extent of dietary misreporting in a large sample of adults: the OPEN study. Am J Epidemiol 2003; 158:1-13.,3636. Moshfegh AJ, Rhodes DG, Baer DJ, Murayi T, Clemens JC, Rumpler WV, et al. The US Department of Agriculture automated multiple-pass method reduces bias in the collection of energy intakes. Am J Clin Nutr 2008; 88:324-32..

Ao que se sabe, este é o primeiro estudo a relacionar a adesão à dieta proposta pela Comissão EAT-Lancet com insegurança alimentar e renda em uma amostra representativa para a população brasileira. Entre os pontos fortes do estudo, cabe destacar o uso de dados do INA mais recente 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020., com representatividade de todas as regiões do país e situações domiciliares urbana e rural. Somado a isso, o PHDI foi empregado para avaliar a adesão à dieta planetária, por ser um índice validado e que já apresentou um bom desempenho em diferenciar dietas, tanto em termos nutricionais, quanto em impactos ambientais 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698.,2323. Marchioni DM, Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Rulli MC. Low adherence to the EAT-Lancet sustainable reference diet in the Brazilian population: findings from the National Dietary Survey 2017-2018. Nutrients 2022; 14:1187., sendo, portanto, uma ferramenta importante para a avaliação do consumo alimentar na perspectiva das recomendações da Comissão EAT-Lancet. Para tanto, um extenso trabalho de classificação dos componentes da dieta planetária foi realizado seguindo padrões metodológicos 33. Cacau LT, Carli E, Carvalho AM, Lotufo PA, Moreno LA, Bensenor IM, et al. Development and validation of an index based on EAT-Lancet recommendations: the Planetary Health Diet Index. Nutrients 2021; 13:1698.,1414. Fisberg RM, Villar BS. Manual de receitas e medidas caseiras para cálculo de inquéritos alimentares. São Paulo: Signus; 2002.,1515. Pinheiro ABV. Tabela para avaliação de consumo alimentar em medidas caseiras. 5th Ed. São Paulo: Atheneu; 2008.,1616. Universidade de São Paulo; Food Research Center. Tabela brasileira de composição de alimentos. Versão 7.1. http://www.fcf.usp.br/tbca (accessed on 22/Nov/2021).
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, a fim de garantir a confiabilidade e validade dos resultados.

Conclusão

No contexto dos hábitos alimentares brasileiros, a insegurança alimentar, mas não a renda, afetou negativamente a adesão à dieta planetária. Isso reforça que, para atingir objetivos sustentáveis, é importante que as populações tenham a garantia do direito humano de acessibilidade a uma alimentação adequada, contando com uma agenda política que priorize o combate às desigualdades e fortaleça a promoção de sistemas alimentares sustentáveis e justos para oferecer uma alimentação adequada a todos.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; processo nº 160690/2021-8) pelo financiamento para a realização do estudo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2022
  • Revisado
    27 Maio 2023
  • Aceito
    10 Ago 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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