Iniquidades das mortes violentas e de COVID-19 negligenciadas pelo Estado brasileiro

Inequities of violent deaths and COVID-19 neglected by the Brazilian State

Inequidades de muertes violentas y COVID-19 desatendidas por el Estado brasileño

Sergio Roberto de Lucca Sobre o autor
2022

Assim como conhecemos pouco sobre a biografia da maioria das 700 mil pessoas que morreram vítimas da COVID-19 no país, os registros sobre mortes violentas divulgados nos Boletins Epidemiológicos são ricos em dados sociodemográficos e precários acerca da biografia individual das vítimas, suas condições de vida e trabalho. Na falta de informações, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a autópsia verbal como método de entrevista, realizada com familiares ou cuidadores do falecido, para identificar nas informações colhidas uma provável causa de morte 11. AbouZahr C. Verbal autopsy standards: ascertaining and attributing cause of death. Genebra: World Health Organization; 2007..

No livro Morte Matada22. Cordeiro R. Morte matada. Curitiba: Editora Appris; 2022., organizado pelo epidemiologista Ricardo Cordeiro, a autópsia verbal foi o método central utilizado na investigação das mortes violentas ocorridas em Campinas (São Paulo) em 2019, e, além dos dados epidemiológicos, ampliou-se na análise as circunstâncias em que essas mortes ocorreram. Nas narrativas de familiares e amigos próximos das 553 vítimas, 14 entrevistadores da equipe deram vida e voz aos sujeitos que faleceram de forma violenta.

No decorrer da obra os autores criticam a forma neutra de a OMS tratar o tema “mortes violentas” - classificando-as no grupo “morte por causa externa”, sem especificar quaisquer condições que as determinaram socialmente - e a indiferença governamental sobre as mortes por COVID-19. A maioria dos homicídios e feminicídios, suicídios, acidentes de trânsito e do trabalho são ocorrências previsíveis e preveníveis, assim como cerca de dois terços das mortes por COVID-19 poderiam ter sido evitados, não fosse o negacionismo do governo neoliberal que protelou a aquisição de vacinas 33. Szwarcwald CL, Boccolini CS, Almeida WS, Soares Filho AM, Malta DC. COVID-19 mortality in Brazil, 2020-21: consequences of the pandemic inadequate management. Arch Public Health 2022; 80:255..

As mortes matadas foram reunidas em cinco grupos: homicídios (153 óbitos), quedas (151), mortes no transporte (93), suicídios (83) e outras (73). De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) e a distribuição espacial da mortalidade, as pessoas que viviam nas regiões mais pobres e periféricas do município tiveram uma sobremortalidade violenta de 32,5 pessoas a cada 100 mil habitantes em relação às regiões mais ricas.

A originalidade do livro reside em dar identidade para as centenas de vidas perdidas. As histórias de vida e trabalho das vítimas foram evidenciadas durante as entrevistas, além dos dados epidemiológicos robustos fornecidos sobre estas ocorrências, ao estimar o risco relativo em relação ao grupo-controle da população do município. Dos 11 capítulos, destacam-se seis principais, agrupados em: homicídios, feminicídios, quedas, mortes no transporte, suicídios, e acidentes de trabalho.

Com relação aos 153 homicídios, a predominância foi de homens (88,2%), pardos e negros (71,2%) e moradores de regiões pobres, cujo risco de morte foi cinco vezes maior que o daqueles de regiões mais ricas. O envolvimento com o crime nos últimos 30 dias aumentou em 19,4 vezes o risco de morte, com jovens trabalhadores informais da periferia - e que atuavam no mercado ilícito - sendo as vítimas preferenciais. Sobre a violência de gênero, houve 13 casos de feminicídio, a maioria perpetrada pelo companheiro na própria residência da vítima. A autópsia verbal contribuiu para contextualizar os crimes, enraizados nas relações em ambientes privados e públicos. Os homicídios ocorreram em condições de ação violenta de diferentes atores sociais em diversos territórios, condições essas até então “invisíveis”, mas identificáveis na análise por microrregiões. Os homicídios foram maiores entre aqueles que viviam nas regiões mais pobres do município, em situações socioeconômicas mais vulneráveis, de IDHM mais baixos e sociabilidade violenta, com recorte étnico-racial e cultura machista presentes no município 44. Ferreira JFR. Homicídios e vulnerabilidades sociais nas microrregiões de Campinas/SP (2000-2017) [Tese de Doutorado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2020..

Os suicídios, que anualmente tiram a vida de 800 mil pessoas no planeta, sendo 12 mil brasileiros(as), representam a segunda principal causa de óbito entre jovens de 15 a 29 anos e é maior nos países de baixa e média renda. Em sua decorrência, o Brasil registrou, em 2019, o coeficiente de 6,4 mortes por 100 mil habitantes. O uso problemático de álcool e cocaína teve um risco relativo de 33,1 e 14,6, respectivamente, em relação à população-controle. O uso de substâncias psicoativas pode ser um marcador de sofrimento psíquico, violência familiar, desemprego e outras circunstâncias envolvidas casualmente com estas ocorrências.

As entrevistas contribuíram para esclarecer um caso de suicídio relacionado ao trabalho. Segundo a esposa da vítima, o trabalhador sofria bullying por parte de colegas da empresa e, não conseguindo lidar com isso, enforcou-se no pátio do local de trabalho ao final do expediente. Escolher o local de trabalho para suicidar-se pode indicar a conexão simbólica entre o trabalho e a concretização do ato.

Morte Matada apreende o suicídio como fenômeno social e o sofrimento psíquico como consequência de violências enfrentadas para subsistir na vida cotidiana e no trabalho, incluindo os comportamentos de risco das vítimas como consequência destas vulnerabilidades. A violência psicológica no trabalho, como fator desencadeante narrado pela mãe da vítima, foi relevante para o nexo com o ambiente deste mesmo trabalho. Pesquisadores franceses enfatizaram os aspectos sociais e organizacionais vinculados ao trabalho e a descompensação psicológica como importantes gatilhos para o suicídio 55. Dejours C, Begue F. Suicídio e trabalho: o que fazer? Brasília: Paralelo 15; 2010..

Sobre os acidentes de trabalho, apreendeu-se o conceito utilizado pela vigilância em saúde como “aqueles que ocorrem no exercício da atividade laboral, ou no percurso da casa para o trabalho” (p. 121). Esta definição mais abrangente adotada pelos autores problematiza as adotadas pela Previdência Social, que excluem os trabalhadores informais e facultam às empresas a responsabilidade das notificações. Das 64 mortes por acidentes de trabalho, 39 trabalhavam nos setores de serviços e comércio, e desses, 38 eram informais. A maioria das vítimas era responsável pelo sustento social e econômico da família e trabalhava nas ruas, no trânsito e em locais de alta criminalidade. Os acidentes de transporte foram a principal causa, com 33 ocorrências, e trabalhar com drogas ilícitas nos últimos 30 dias aumentaram em 12,4 vezes as chances de acidentes de trabalho fatais. A análise das histórias de vida e trabalho evidenciou que a maioria das vítimas atuava nas ruas, no trânsito e com drogas ilícitas. Tais constatações implicam a necessidade de implementação de políticas intersetoriais para a prevenção destas ocorrências.

Todas as vidas importam, e considerando-se as desigualdades sociais e discriminação de gênero, raça e pobreza no Brasil, espera-se do novo governo eleito a responsabilidade de respeitar a constituição e os direitos humanos, e de promover políticas públicas para reduzir as diferenças sociais e garantir proteção social a todos os cidadãos, em especial os grupos mais vulneráveis.

As mortes matadas e a pandemia de COVID-19 esclarecem a genealogia da violência e o impacto dos determinantes sociais da saúde nas condições de vida, de trabalho e as chances de viver, sobreviver e morrer. São mortes que poderiam ser evitadas, mas foram agravadas por um governo neoliberal e negacionista que protelou a aquisição de vacinas e operou o desmonte das políticas sociais e de renda para a população mais vulnerável.

Destaca-se no capítulo Quimera da Morte Violenta a situação insustentável do número de vítimas da violência no município e na pandemia de COVID-19, em Estado democrático e de responsabilidade constitucional de direitos e deveres de proteção aos grupos sociais mais vulneráveis. Michel Foucault 66. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 2010. problematiza as estruturas de poder dos Estados modernos, quando analisa as estruturas de poder dos Estados neoliberais, indutores da economia do mercado e refratários a investir em políticas de proteção social, o que se dá na prerrogativa ideológica neoliberal - cujo exercício da dominação é controlar, manter e prolongar a vida de grupos específicos de interesse do capital - e no campo da micropolítica de forma territorializada.

A pandemia e as mortes violentas evidenciaram as relações de poder no Estado brasileiro e em Campinas, historicamente determinadas pelas diferenças sociais e econômicas, e que configuram condições distintas de subsistência de vida e trabalho aos cidadãos, sobretudo nos territórios das periferias. As pessoas em situação de rua, desempregados(as), mulheres em situação de violência, trabalhadores(as) informais e negros(as) são mais vulneráveis, e se encontravam abandonados à própria sorte.

O recorte espacial e territorial das vítimas de mortes violentas elucidou o cenário desigual de condições de sobrevivência, renda e trabalho daqueles que atuavam nas ruas, a exemplo dos entregadores de aplicativos, dos ambulantes, dos atendentes de bar, das prostitutas e de tantos outros e outras. Espera-se que o novo governo democrático eleito consiga reverter a tendência necropolítica do Estado e proteger as populações mais vulneráveis.

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  • 1
    AbouZahr C. Verbal autopsy standards: ascertaining and attributing cause of death. Genebra: World Health Organization; 2007.
  • 2
    Cordeiro R. Morte matada. Curitiba: Editora Appris; 2022.
  • 3
    Szwarcwald CL, Boccolini CS, Almeida WS, Soares Filho AM, Malta DC. COVID-19 mortality in Brazil, 2020-21: consequences of the pandemic inadequate management. Arch Public Health 2022; 80:255.
  • 4
    Ferreira JFR. Homicídios e vulnerabilidades sociais nas microrregiões de Campinas/SP (2000-2017) [Tese de Doutorado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2020.
  • 5
    Dejours C, Begue F. Suicídio e trabalho: o que fazer? Brasília: Paralelo 15; 2010.
  • 6
    Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2023
  • Revisado
    23 Jan 2023
  • Aceito
    27 Jan 2023
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