As reflexões de Jaime Breilh são impulsionadas por sua percepção das desigualdades sociais no Equador e se inserem na medicina social latino-americana nas décadas de 1970-1980. Após mais de quatro décadas, o autor representa o Sul global e epistêmico, particularmente a América Latina, em seu livro Critical Epidemiology and the People’s Health11. Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press; 2021. da coleção Small Books, Big Ideas in Population Health, a convite da Universidade de Oxford (Reino Unido). A ausência da bibliografia latino-americana nos círculos intelectuais do Norte é uma característica. Segundo Nancy Krieger (no prefácio do livro de Breilh 11. Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press; 2021.), as teorizações e os argumentos de Breilh parecem ser de “outro mundo” quando contrastados com a literatura epidemiológica norte-americana e europeia, mas a autora reconhece tal situação e percepção como limites dos meios intelectuais do Norte, visto que a epidemiologia crítica é enraizada em parte relevante do mundo. Essa perspectiva também é compartilhada pelo editorial da The Lancet, publicado recentemente, que se reporta à obra como “um magnífico desafio às tradições científicas ocidentais que sustentam a medicina e saúde pública” 22. Horton R. Offline: health’s intercultural turn. Lancet 2023; 401:12. (p. 12).
Longe de analisarmos a produção social do conhecimento epidemiológico e a circulação das ideias nos contextos intelectuais, vivemos em um mundo insistentemente pandêmico ou sindêmico, como denomina Breilh, em uma conjunção de crises humanitárias e ambientais sem precedentes para muitos povos e suas condições de vida. O interesse do Norte sobre a epidemiologia crítica não é mero exercício de erudição, mas se trata de contato com um acervo praxiológico, do enfrentamento dos impasses e desafios da saúde global.
O livro materializa a aposta de Breilh na mudança paradigmática para os caminhos da epidemiologia. Distintamente de obras anteriores - tais como Epidemiologia: Economia, Política e Saúde (1991) 33. Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1991. e Epidemiologia Crítica: Ciência Emancipadora e Interculturalidade (2006) 44. Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006., sendo o primeiro de fundamentação referenciada na economia política marxista e o segundo incorporando temáticas teóricas contemporâneas -, a obra aqui analisada sintetiza discussões anteriores para a proposição de uma epidemiologia alternativa. Consequentemente, emergem novos paradigmas e constructos da saúde pública e da ciência. O autor questiona qual epidemiologia caberia na contemporaneidade?
Breilh argumenta distintamente do evolucionismo e apologética do progresso do conhecimento; a ciência não caminha para o acúmulo técnico linearmente, ou seja, as inovações “técnicas” ou metodológicas operacionais não são exemplos das revoluções do conhecimento. A história da ciência demonstra rupturas paradigmáticas que retomam a formulação das revoluções científicas de Thomas Kuhn. No enfrentamento do mainstream, desenvolve-se a possibilidade de ofertar uma epidemiologia com outros recursos lógicos e instrumentais, superando os reducionismos quantitativos e qualitativos arraigados. Para tal empreita, Breilh constrói três capítulos com discussões encadeadas: o primeiro trata da história e fundamentos da epidemiologia crítica latino-americana enquanto uma tradição ético-científica; no segundo, o autor defende a epidemiologia crítica como uma ciência ética em uma sociedade insalubre e, sobretudo, como uma ferramenta fundamental para enfrentar as contradições históricas ambientais e sociais da contemporaneidade; por fim, no terceiro, advoga um novo método e a interculturalidade na construção do objeto de pesquisa e da ação.
Breilh discorre sobre os fundamentos da tradição científica e política da qual é protagonista e demonstra como os aspectos sociais, políticos e ambientais forjadores do arcabouço teórico da epidemiologia crítica estão presentes ao redor do mundo. Em outros termos, as mudanças no mercado de trabalho, com o peso do desemprego, da violência e das desigualdades, são elementos com os quais o pensamento latino-americano lidava em sua constituição. O desenvolvimento capitalista desde a crise da taxa de lucros de 1970 não levou a prosperidade do centro para a periferia, ao contrário, “importou” a ela formas de destituição de direitos, de exploração e de precariedade social. Contudo, observamos que a epidemiologia crítica hoje é distinta da originária. Primeiramente, surge como uma epidemiologia das classes sociais e do desgaste humano da exploração do trabalho, refutando o “biologismo” e a (não-)historicidade da epidemiologia tradicional. Tratava-se da distribuição de doenças e agravos pelas classes sociais nas determinações econômicas do estruturalismo marxista combinada com o uso dos instrumentos da epidemiologia tradicional. Contemporaneamente, os autores incorporaram a relevância das teorias dos modos de vida, fato oriundo da influência de Canguilhem 55. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 1982., aos autores clássicos da Saúde Coletiva brasileira. Em outra via, o próprio Breilh é responsável por complexificar a epidemiologia crítica a partir da década de 2000, mantendo o pressuposto filosófico da emancipação de Marx, todavia, dialogando com (trans)interculturalidade e decolonialidade, na perspectiva materialista, mas se afastando da concepção estruturalista.
A pergunta do segundo capítulo é como constituir a epidemiologia ética como ferramenta de enfrentamento na civilização contemporânea insalubre. De acordo com Breilh, o ponto de partida analítico-crítico são as características do capitalismo contemporâneo. A ganância financeira das grandes corporações associada às alterações tecnológicas da Quarta Revolução Industrial desenvolveu um modo rápido de produzir, viver, adoecer e morrer no compasso da aceleração dos lucros. O controle corporativo da agricultura, da indústria e das finanças e a estratégia dos recursos digitais propiciam a sistemática regressão humana, social e ambiental de direitos. A vida não saudável é um modo “fast track” da sociedade contemporânea. Para o exercício de uma epidemiologia comprometida eticamente, Breilh retoma quatro princípios denominados como “os quatro S’s”: sustentabilidade; soberania; solidariedade; e segurança da vida.
A constituição de um novo método para a produção do conhecimento e ação é a temática do terceiro capítulo, também denominado por Breilh como “despertar intercultural”. O autor propõe a ruptura com a lógica cartesiana da ciência moderna na epidemiologia. Breilh elenca cinco rupturas necessárias com os seguintes pilares: causalidade linear; conjunção externa (variável externa); análise dual empírica quantitativa e qualitativa; a estratificação social e epidemiológica; e a geografia da saúde positivista.
Nesse sentido, o autor desenvolve a impossibilidade do exercício da epidemiologia enquanto um campo de conhecimentos isolados; ou melhor, formula a transdisciplinaridade e a interculturalidade combinadas na teoria e sobretudo na prática em saúde com caráter radicalmente transformador. Na discussão metateórica, advoga pela conformação de novas metodologias e políticas de saúde. Essa modificação é visível em relação ao estudo de uma população ou sociedade, não enquanto toma-se estas como um objeto de estudo inerte e distanciado do epidemiólogo (“object-based”), mas sim ao propor uma relação diferenciada entre sujeito e objeto da metodologia empirista, formulando uma metodologia de participação/construção comunitária (“community-building approach”).
O autor aprofunda a crítica do cerne da ciência atual, mirando o empirismo constitutivo da epidemiologia moderna da Inglaterra, sem renunciar ao rigor e efetividade necessários à epidemiologia. Ele avança na discussão de sujeito-objeto na produção do conhecimento, propondo sair do lugar do “cientista” e “estudioso” produtor do conhecimento para se deparar com a sabedoria do “outro”, muitas vezes objeto inerte de estudo, mas que na realidade é fonte de sabedoria popular que não pode ser ignorada. Em nossa visão, Breilh nessa passagem retoma uma relação dialética na qual abordagens marxistas se amparam, mas o fazem mais no instrumental tradicional da epidemiologia do que na discussão filosófica de Marx. As experiências com movimentos sociais e comunidades agregaram nessa formulação, logo conhecimento e sabedoria populares são componentes vitais de pesquisa e ação em concepção praxiológica.
Breilh opta por não aprofundar o debate sobre a produção epidemiológica recente. Essa escolha poderia contribuir para a refutação ou apropriação do instrumental: novos modelos estatísticos, modalidades de inferência causal e tecnologias do campo, fortalecendo os apontamentos de Breilh em direção a uma epidemiologia rigorosa e efetiva com sentido ético-político. Além disso, a proposta de uma metacrítica para superação dialética ou a transformação paradigmática da epidemiologia são questões a serem debatidas.
Trata-se de uma obra fundamental por suas potencialidades de perspectiva emancipatória e por abrir uma agenda de pesquisa e reflexões a partir de necessidades prementes no momento atual; ou melhor, é uma obra que abre muitas avenidas de trabalho a ser percorridas por toda uma geração de pesquisadores(as). O pensamento de Breilh teve caminho próprio, com influência recíproca ao campo da Saúde Coletiva no Brasil, e é talvez o único expoente do pensamento social latino-americano que transitou por toda constituição desse campo de conhecimentos. Logo, compreender a sua produção mais recente é fundamental para se situar nas discussões epidemiológicas contemporâneas, mas significa sobretudo projetar quais são os possíveis caminhos da epidemiologia e da teoria na saúde coletiva brasileira inseridas na América Latina, conduzindo-nos a uma esperança ativa: a de que um outro mundo ainda é possível.
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- 1Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press; 2021.
- 2Horton R. Offline: health’s intercultural turn. Lancet 2023; 401:12.
- 3Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1991.
- 4Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.
- 5Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 1982.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Mar 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
20 Jan 2023 - Aceito
27 Jan 2023