Muito oportuno o artigo de Grangeiro et al. 11. Grangeiro A, Ferraz D, Magno L, Zucchi EM, Couto MT, Dourado I. HIV epidemic, prevention technologies, and the new generations: trends and opportunities for epidemic response. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00144223. para nos acordar de uma letargia que, em outro contexto, foi descrita como “banalização da epidemia” 22. Kalichman AO. Pauperização e banalização de uma epidemia. In: Parker RG, Galvão J, editors. Seminário Epidemiologia Social da AIDS, anais. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids/Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1994. p. 20-6., ou seja, a tendência a se acomodar numa situação e enfraquecer as capacidades de resposta. Se, no fim dos anos 1990, a banalização expressava o efeito da mudança no perfil sociodemográfico dos mais afetados, quando a epidemia de aids atingiu grupos populacionais periferizados, com menor influência sobre a opinião pública e menor organização para definir políticas, a banalização de hoje tem a ver com o que poderíamos chamar de uma “universalização fracionária”, por mais paradoxal que essa expressão possa parecer.
Universalização porque, como é apontado no artigo, a proposta predominante de “prevenção combinada” tem sido frequentemente traduzida, nos moldes da ideologia neoliberal, como uma “cesta” de opções preventivas a serem “consumidas” segundo o interesse e conveniência de cada indivíduo. Nesse sentido de universalidade, cada indivíduo teria acesso a qualquer uma das tecnologias preventivas disponíveis.
Ocorre que, como apontado, essa proposição esconde aspectos interconectados e subjacentes a uma oferta apenas aparentemente equitativa de recursos e equivalente em suas implicações práticas. Ela esconde uma totalidade, um contexto - histórico, econômico, político e cultural - no qual estão inter-relacionados os processos pelos quais as tecnologias de prevenção são concebidas, produzidas e distribuídas. A oferta e o consumo supostamente espontâneos dessas tecnologias configuram, de forma acrítica, uma política de resposta à epidemia de HIV/aids que deveria estar sendo debatida e construída no espaço público como bem comum, subsidiada por evidências científicas e orientada por exame de caráter ético-político. Por isso dizemos que é fracionária.
Então, sim, estamos banalizando porque aceitamos, com base em argumentação pseudocientífica, que tecnologias são neutras, anistóricas e apolíticas. Porque desconsideramos os interesses econômicos que pressionam a disputa pela incorporação de tecnologias nas políticas de saúde. Porque tratamos coletivos como massas homogêneas de indivíduos, e indivíduos como (id)entidades (cognitivas, comportamentais) isoladas e independentes. Porque tornamos risco e vulnerabilidade como sinônimos para uma mesma operação científica: cálculo de probabilidades.
Imersos nessa letargia, banalizando epidemias como a do HIV, seguimos acreditando que será apenas expressão de um déficit quantitativo o evidente limite encontrado no propósito de controle dessa epidemia, assim como de outras que virão no contexto da crise ambiental que vivemos. É evidente que a escala também é um desafio, especialmente se lembrarmos de quantas pessoas ainda estão excluídas do acesso a recursos básicos de prevenção, mas parece-nos que a questão não é apenas de quantidade: ela é, sobretudo, conceitual e politicamente qualitativa.
Um passo na direção dessa reflexão é dado pelos(as) autores(as) quando discutem, por exemplo, que a falta de investimento e priorização de estratégias de enfrentamento da epidemia de HIV/aids têm fragilizado os resultados das políticas de prevenção direcionadas a adolescentes e jovens. Apontam que desconsiderar os “determinantes sociais” da epidemia pode levar a maior exposição à infecção e, ao mesmo tempo, produzir um aproveitamento insuficiente de recursos preventivos necessários. Por isso defendem que análises interseccionais de determinantes, como idade, gênero, raça/etnia, entre outras, sejam adotadas como orientadores de políticas de prevenção, substituindo a “cesta básica” universal pela oferta diversificada e contextualizada de recursos preventivos.
Sugerimos ainda outros movimentos complementares nessa direção.
Em primeiro lugar, é preciso entender o coletivo como o comum, compreender como esse comum se constrói com pessoas em interação nos diversos contextos em que se encontram, nas cenas do cotidiano em que se expõem (ou são expostas) às infecções sexualmente transmissíveis (IST).
É preciso ressaltar que as pessoas só participam da construção do comum ao se assumirem como sujeitos de direito. Reconhecer essa condição de cidadania compartilhada nos contextos concretos em que ela se conforma permitirá compreender e transformar o conjunto articulado de condições que nos torna - adultos e adolescentes - vulneráveis. Vulnerabilidade, que não é sinônimo de risco, embora se expresse, muitas vezes, nele. Vulnerabilidade que é o sistemático não reconhecimento do outro em suas necessidades e potenciais, que é a ausência da promoção, proteção e provimento de direitos humanos 33. Ayres JRCM. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado. In: Barros S, Campos PFS, Fernandes JJS, editors. Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole; 2014. p. 1-25..
Em segundo lugar, outro movimento necessário para sacudir radicalmente a banalização será superar noções de indivíduo resultantes de ideologias e religiosidades circulando em todas as mídias, que se valem da ausência de capacitação específica para a prevenção. Teorias, técnicas e práticas para a prevenção psicoeducativa interessantes e produtivas têm dialogado com os princípios do Sistema de Único de Saúde (SUS) brasileiro, desenvolvendo práticas de letramento herdeiras da pedagogia freiriana do oprimido e da esperança e estimulando a participação de adolescentes e jovens como sujeitos de direito sexual, parte da atenção integral à sua saúde 44. Paiva V, Garcia MRV, França-Jr I, da Silva CG, Galeão-Silva LG, Simões JA, et al. Youth and the COVID-19 crisis: lessons learned from a human rights-based prevention programme for youths in São Paulo, Brazil. Glob Public Health 2021; 16:1454-67..
As(os) autoras(es) destacam, em sua análise, a necessidade de disponibilizar informações sobre os métodos associados à redução da incidência do HIV, os que têm efeitos de maior duração, ou os que oferecem maior comodidade e facilitam a gestão do risco por estarem distantes “da cena de sexo”. Ressaltam o limite das concepções que seguem reduzindo o indivíduo a “consumidor” de insumos e serviços pré-formatados sem a sua participação, que ficaram mais prevalentes em contextos de negligência da capacitação de novos profissionais e perseguição às políticas públicas de promoção da saúde sexual e das perspectivas baseadas em direitos humanos. Enfatizam a necessidade de adquirir “habilidades para lidar com a epidemia e a prevenção” - perspectiva prevalente na literatura internacional, mas sem detalhar que outras habilidades preventivas são necessárias.
Com efeito, como observamos nas experiências mais recentes que seguimos desenvolvendo no campo da prevenção das IST com os jovens, no contexto da resposta à COVID-19, mpox (varíola dos macacos) e da pandemia de eventos de saúde mental (a que mais preocupa lideranças comunitárias e escolares nos territórios onde estamos pensando a prevenção com os adolescentes) 55. Paiva VSF, Garcia MRV. Psychosocial suffering and sexuality in the context of COVID-19 and attacks on human rights. Estud Pesqui Psicol 2022; 22:1351-71., se não questionamos as noções de indivíduo como unidade biológico-comportamental, os jovens permanecem reproduzindo propostas de prevenção semelhantes à pregação individualizadora e de cobrança moral pelos resultados, mesmo quando realizadas com a sua participação.
É preciso, a cada vez, resgatar - com os jovens e com os agentes da prevenção - a pessoa como ser sempre em interação no e com os seus contextos, nos territórios em que vivem ou circulam em seu cotidiano de estudo, trabalho e lazer, compreendendo o contexto atual de sindemia implicada no cenário local de desigualdades. Na nossa experiência com a prevenção, a habilidade central mais produtiva e integradora de todas as outras tem sido a codificação da dinâmica da cena de exposição, implicada no cenário territorial - com características socioculturais e condições programáticas no SUS e no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) localmente específicas. Almejamos o letramento dos jovens sobre a estruturação de cada cena de exposição e como encarnar a prevenção a cada cena que vivem.
Sem esse trabalho de letramento específico, segue-se responsabilizando “indivíduos biológico-comportamentais” pelo sucesso ou fracasso da prevenção, mesmo que eventualmente identifiquem fenômenos como estigma e discriminação associados à sexualidade que precisam ser superados ou a desigualdade informada pela análise interseccional de determinantes sociais.
Finalmente, há um ponto a destacar para concluir estes comentários. Ainda que concordemos com os(as) autores(as) sobre a importância da profilaxia pré-exposição (PrEP) como insumo eficaz para a prevenção da infecção pelo HIV, especialmente se pensarmos no uso de fármacos com efeitos de longa duração, parece-nos que sua valorização pela distância da cena sexual pode configurar uma armadilha perigosa, que a tradição da prevenção orientada pelos princípios dos direitos humanos tem buscado evitar. Pensemos na PrEP não como algo desvinculado da cena sexual. Ao contrário, busquemos explorar como ela pode participar de encontros sexuais mais protegidos e protetores, de todas as pessoas. Não podemos arriscar deixar de pensar coletivamente em como proteger cenas sexuais, como seguir valorizando o respeito pela diversidade e fluidez de identidades sexuais e de gênero, diversidade que o estado laico e o direito à saúde, definidos constitucionalmente, devem proteger.
A experiência da saúde pública já nos ensinou que não basta termos insumos seguros, eficazes e adequados, para o que quer que seja, sejam vacinas, tratamentos, quimioprofilaxias. Quando os direitos humanos são desrespeitados e a sabedoria prática dos usuários é desconsiderada, criam-se vulnerabilidades em saúde. Por outro lado, se identificamos vulnerabilidades em saúde, nelas estarão apontados desafios e oportunidades para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e feliz.
Referências
- 1Grangeiro A, Ferraz D, Magno L, Zucchi EM, Couto MT, Dourado I. HIV epidemic, prevention technologies, and the new generations: trends and opportunities for epidemic response. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00144223.
- 2Kalichman AO. Pauperização e banalização de uma epidemia. In: Parker RG, Galvão J, editors. Seminário Epidemiologia Social da AIDS, anais. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids/Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1994. p. 20-6.
- 3Ayres JRCM. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado. In: Barros S, Campos PFS, Fernandes JJS, editors. Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole; 2014. p. 1-25.
- 4Paiva V, Garcia MRV, França-Jr I, da Silva CG, Galeão-Silva LG, Simões JA, et al. Youth and the COVID-19 crisis: lessons learned from a human rights-based prevention programme for youths in São Paulo, Brazil. Glob Public Health 2021; 16:1454-67.
- 5Paiva VSF, Garcia MRV. Psychosocial suffering and sexuality in the context of COVID-19 and attacks on human rights. Estud Pesqui Psicol 2022; 22:1351-71.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
03 Out 2023 - Aceito
05 Out 2023