Estudos com o objetivo de compreender e contribuir com as políticas, a organização e a gestão dos sistemas e serviços de saúde conformam um dos eixos estruturantes da Saúde Coletiva, no cenário internacional e nacional. Tais pesquisas integram uma área com grande variedade de temas e aplicações, em múltiplos níveis e dimensões ¹1. Teixeira CF, Sá MC. Planejamento & gestão em saúde: situação atual e perspectivas para a pesquisa, o ensino e a cooperação técnica na área. Ciênc Saúde Colet 1996; 1:80-103.. Desde o plano mais geral da formulação e implementação de políticas públicas e configuração de sistemas de saúde até o plano das relações interpessoais estabelecidas nos processos de trabalho e cuidado em saúde. Envolvendo o desenvolvimento de estratégias para melhorar a equidade no acesso, no uso e na efetividade dos serviços de saúde, até a produção e a avaliação da incorporação de tecnologias e alocação de recursos financeiros.

No Brasil, essa área teve impulso a partir do final dos anos 1970, associada ao movimento de redemocratização e constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), que envolveu a articulação entre acadêmicos de diferentes campos disciplinares, profissionais de saúde e movimentos sociais ²2. Escorel S. Reviravolta na saúde. Origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.. Gradativamente, a área se consolidou como um dos três subcampos que conformam a Saúde Coletiva, denominado como Política, Planejamento e Gestão em Saúde (PPGS), juntamente com a Epidemiologia e as Ciências Sociais e Humanas em Saúde ³3. Vieira-da-Silva LM. Subcampos e espaços na Saúde Coletiva: fronteiras e integração. Interface (Botucatu) 2023; 27:e220380..

Cadernos de Saúde Pública (CSP) expressa a dinâmica e a evolução desse subcampo, que esteve presente em todos os momentos que marcam seus quarenta anos de publicação científica ⁴4. Lima LD, Carvalho MS, Alves LC. CSP em 40 anos de publicação científica. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00076324.. O exame dos títulos de 834 artigos publicados entre 2001 e junho de 2024, avaliados por Editores Associados vinculados à PPGS, revelam diversidade de temas, abordagens e métodos. Embora reconheça-se que sejam possíveis (e desejáveis) sobreposições com os demais subcampos da Saúde Coletiva ⁵5. Deslandes S. CSP e os artigos de Ciências Sociais e Humanas em Saúde: o que tem sido, o que está por vir. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00107424.^,66. Werneck GL. CSP e a Epidemiologia: uma história de sinergias e um futuro de desafios. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00150924., alguns núcleos temáticos predominaram nesse período, tais como: avaliação, atenção primária, medicamentos, políticas de saúde, acesso ao cuidado em saúde, atenção especializada e informações em saúde. Ademais, a implementação de políticas, nos âmbitos nacional, regional e local, ou voltadas para as necessidades de saúde, conhecidas ou emergentes, espelham-se na produção científica em CSP.

Entretanto, variações e enfoques em relação às temáticas ocorreram ao longo do tempo. Tais mudanças se devem à diversificação da representatividade do subcampo no Conselho Editorial da revista, mas também às suas características distintivas, presentes na escolha de objetos, referenciais teóricos e delineamento dos estudos. Entre as peculiaridades desse subcampo ⁷7. Machado CV, Lima LD. Perspectivas históricas na análise de políticas de saúde. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 115-45., destacam-se a proximidade entre o meio acadêmico, as políticas e intervenções em saúde, bem como a influência da agenda governamental e dos problemas que afetam os sistemas e serviços de saúde, na definição de temas e questões de pesquisa. Há preocupações tanto com as causas dos fenômenos investigados quanto com as repercussões das políticas e do modelo de atenção à saúde sobre eles. Verifica-se certo ecletismo na escolha de referenciais teóricos e metodológicos, assim como a preferência de recortes temporais recentes nas investigações.

Manter a relevância social e política dos estudos desenvolvidos, garantir a qualidade e o rigor metodológico das pesquisas e promover a disseminação e as aplicações dos conhecimentos produzidos são desafios permanentes desse subcampo, que transpassam a agenda da Saúde Coletiva de muitos países. No caso brasileiro, ressalta-se a importância de internacionalizar a produção científica, ampliando o diálogo entre diferentes perspectivas epistemológicas, principalmente entre países do Sul Global.

Outro desafio se refere à necessidade de fortalecer ainda mais a integração entre a pesquisa acadêmica e a prática profissional da gestão em saúde, mantendo a perspectiva crítica e a qualidade das publicações científicas. No Brasil, a expansão dos cursos de mestrado e doutorado, reforça a relevância da PPGS na formação de pós-graduação stricto sensu da Saúde Coletiva, pela relação que esses programas estabelecem com o ambiente das políticas e dos serviços de saúde. Isso implica formar pesquisadores e gestores, capazes de transitar entre esses dois mundos, contribuindo para a construção de políticas de saúde e práticas de gestão que valorizem a ciência por sua capacidade de produzir conhecimento, mas também sensíveis às realidades locais e às demandas sociais.

As necessidades de saúde decorrentes das transformações do mundo contemporâneo desafiam a produção científica da Saúde Coletiva como um todo ⁸8. Lima LD, Carvalho MS, Alves LC. Diálogos para uma prática científica mais coletiva. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00236022.. Nesse contexto, verificam-se temas emergentes para autores da PPGS, ainda não suficientemente representados em CSP. Relações estabelecidas entre Estado, mercado e sociedade na produção de políticas públicas para responder a essas mudanças, que são de ordem diversa e afetam de modo desigual países e grupos sociais, é um exemplo de enfoque que pode ser explorado pelo subcampo. O modo como diferentes marcadores das desigualdades sociais (tais como classe, gênero, sexualidade, raça, etnia, acessibilidade e moradia) interagem entre si, condicionando as necessidades de saúde, acesso, uso e resultados das políticas e serviços de saúde, é outra temática que merece ser aprofundada. Além de questões relacionadas às mudanças climáticas e às emergências sanitárias, que exigem resiliência dos sistemas e serviços de saúde e novas formas de antecipação e prontidão, em prol da sustentabilidade e equidade. Para essas questões, são imprescindíveis informações abrangentes, ágeis e confiáveis que permitam a produção de evidências para auxiliar a tomada de decisão, sobretudo em tempo de enormes avanços tecnológicos e informacionais ⁹9. Coeli CM. De dados secundários à Ciência de Dados Populacionais: recordando 40 anos da produção científica nas páginas de CSP. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00087624..

Os esforços de pesquisa direcionados para esses temas emergentes exigirão maior articulação entre saberes. A valorização de uma abordagem sistêmica e interdisciplinar ¹⁰10. Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde Debate 2022; 46(spe 6):9-24., tão aludida nos tempos atuais, requer colaboração entre pesquisadores com diferentes tradições e especializações no interior do subcampo, bem como com aqueles vinculados à Epidemiologia, às Ciências Sociais e Humanas em Saúde, e às demais áreas e disciplinas afins.

Durante o processo de redação deste Editorial, fomos surpreendidas com as denúncias de assédio e a exoneração do Ministro Silvio Almeida, que estava à frente do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil desde janeiro de 2023 ¹¹11. Teixeira LB, Araújo C, Alencar C. Silvio Almeida é demitido após acusações de assédio sexual. UOL Notícias 2024; 6 sep. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/09/06/silvio-almeida-afastamento-denuncias-assedio.htm.
https://noticias.uol.com.br/politica/ult... . O caso remete tanto a questões de direito humano e de saúde coletiva quanto a lutas feministas e antirracistas, podendo ser utilizado para exemplificar o potencial dos estudos do subcampo PPGS, em sua interface com outros âmbitos da ciência, para lidar com problemas complexos.

Nesse cenário, com foco na política e na gestão institucional, pesquisas podem contribuir com análises aprofundadas sobre os contextos relacionados às situações de assédio moral ou sexual vividas por mulheres nas organizações, identificando suas repercussões e interações com a sociedade. Tal compreensão permite desvendar as dinâmicas de poder, os interesses envolvidos e os fatores que facilitam ou dificultam a implementação de políticas efetivas. Estudos científicos podem sugerir recomendações para o aprimoramento das práticas internas de prevenção, detecção e resposta a esses casos, que promovam ambientes de trabalho saudáveis e seguros. Além disso, evidenciar a necessidade de transparência e prestação de contas (accountability) nos processos de investigação e decisões institucionais, possibilitando que sejam conduzidos de forma ética e justa. A disseminação de informações científicas que apoiem os direitos das vítimas e reforcem as responsabilidades dos gestores públicos também são aspectos fundamentais. Estudos podem, ainda, indicar estratégias intersetoriais de resposta e prevenção, como programas educacionais e campanhas de conscientização, que não só abordem as situações de assédio, mas contribuam para transformar a cultura institucional, reduzindo a ocorrência de violências vividas por mulheres.

Em síntese, o subcampo PPGS tem um papel fundamental na conformação da Saúde Coletiva. Seus desafios e contribuições são centrais para a construção de políticas e sistemas de saúde mais justos, efetivos e democráticos. Maiores avanços na produção científica desse subcampo dependerão da capacidade de seus pesquisadores e profissionais de enfrentar os desafios contemporâneos e promover um diálogo contínuo entre a pesquisa e a prática de gestão, com o objetivo de melhorar as condições de vida e saúde das populações.

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Referências bibliográficas

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