Ao longo da história, avanços tecnológicos sempre vieram acompanhados de incertezas, como ocorreu na Revolução Industrial com o surgimento das máquinas na segunda metade do século XVIII, e na computação com o desenvolvimento do sistema 86-DOS nos anos 1980. Na arte, a fotografia no século XIX inspirou pintores como Monet e Renoir a desenvolverem o impressionismo, incorporando novos elementos criativos 11. Gonçalves R. Criação: criatividade e inteligência artificial. São Paulo: Estação das Letras e Cores; 2023.. Embora a capacidade humana de imaginar e criar seja essencial, as inovações frequentemente levantam preocupações sobre o potencial de substituição da cognição humana.
Já se passaram mais de 70 anos desde o surgimento dos primeiros computadores, e a tecnologia em torno deles tem avançado a passos largos. Com a evolução da inteligência artificial (IA), novos campos e subáreas ganharam destaque, especialmente a partir de novembro de 2022, quando plataformas de IA generativa, incluindo modelos de linguagem natural (LLM), como o popular ChatGPT, passaram a ser amplamente utilizadas.
Não nos cabe, neste editorial, promover uma defesa do uso dos modelos de LLM, mas também não podemos ignorar o impacto dessas tecnologias no cenário atual, especialmente no que tange à sua relação com o processo editorial e o universo das publicações científicas.
Historicamente, uma variedade de ferramentas de IA tem sido utilizada por autores e periódicos para aprimorar a escrita, corrigir a ortografia e a gramática, gerar imagens, detectar plágio e realizar traduções, como é o caso do Google Tradutor, Grammarly, Hemingway Editor, Jasper AI, entre outros 22. Misra DP, Chandwar K. ChatGPT, artificial intelligence and scientific writing: what authors, peer reviewers and editors should know. J R Coll Physicians Edinb 2023; 53:90-3.. Com a crescente ampliação do uso dessas plataformas, especialmente entre autores, cabe a nós, editores, e ao mercado editorial, refletir sobre o uso responsável dessas ferramentas, visando otimizar o processo de publicação científica 33. Conroy G. How generative AI tools could disrupt scientific publishing. Nature 2023; 622:234-6.. Afinal, o problema não reside na tecnologia em si, mas na forma como ela é empregada 11. Gonçalves R. Criação: criatividade e inteligência artificial. São Paulo: Estação das Letras e Cores; 2023..
Cadernos de Saúde Pública (CSP) reconhece a necessidade de acompanhar o novo cenário tecnológico e contribuir para o debate e a regulamentação do uso de IA no processo de publicação. Sabemos que o ChatGPT está sendo extensamente utilizado como ferramenta auxiliar à escrita acadêmica. Nesse contexto, nosso objetivo é compreender e orientar o uso desses recursos de maneira transparente e ética, tanto por autores quanto por pareceristas e editores. Essa postura é condizente com a prática de CSP, que é fundamentada nos princípios e diretrizes de integridade em pesquisa recomendadas pelo Comitê de Ética na Publicação (COPE; Committee on Publication Ethics) 44. COPE Council. COPE Discussion Document: artificial intelligence (AI) in decision making. https://publicationethics.org/sites/default/files/ai-in-decision-making-discussion-doc.pdf (accessed on 08/Oct/2024).
https://publicationethics.org/sites/defa... .
No que se refere ao trabalho de revisores e editores, a IA pode oferecer suporte em diversos aspectos do processo de publicação. Ferramentas de IA podem ser capazes de identificar, com maior precisão do que as soluções atuais, textos gerados por LLM em comparação àqueles escritos por humanos e os editores podem se beneficiar com essas ferramentas para a manutenção da integridade e do rigor científico. Autores cuja língua principal não é o inglês, por exemplo, muitas vezes são orientados a buscar revisores nativos para aprimorar a linguagem e a gramática. No entanto, os periódicos poderiam sugerir o uso de IA generativa para esse fim, especialmente em casos mais simples 22. Misra DP, Chandwar K. ChatGPT, artificial intelligence and scientific writing: what authors, peer reviewers and editors should know. J R Coll Physicians Edinb 2023; 53:90-3..
Além disso, a IA pode ser empregada para produzir resumos de maior qualidade, prática que os editores podem incentivar, desde que esses processos sejam devidamente creditados no artigo por todas as partes envolvidas 22. Misra DP, Chandwar K. ChatGPT, artificial intelligence and scientific writing: what authors, peer reviewers and editors should know. J R Coll Physicians Edinb 2023; 53:90-3.. Em uma fase mais inicial do fluxo do artigo no periódico, os editores podem utilizar essas ferramentas para realizar uma avaliação preliminar do manuscrito, buscando identificar se o tema já foi excessivamente abordado, ou utilizando uma ferramenta de identificação de plágio e conflitos de interesse, para localizar revisores especializados no tema ou para editar a versão aceita para publicação com a finalidade de ajustar o estilo e a linguagem aos padrões da revista 55. Kaebnick GE, Magnus DC, Kao A, Hosseini M, Resnik D, Dubljevic V, et al. Editors' statement on the responsible use of generative AI technologies in scholarly journal publishing. Med Health Care Philos 2023; 26:499-503.,66. Lima LD, Carvalho MS, Alves LC. CSP em 40 anos de publicação científica. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00076324.. Na etapa da padronização e formatação do artigo, como a adaptação dos gráficos e tabelas, a IA pode minimizar tempo e custos da equipe dedicada a essa tarefa, possibilitando que os periódicos com menos recursos financeiros possam otimizar os seus gastos e ampliar a sua longevidade.
CSP considera aceitável que autores utilizem o ChatGPT para auxiliar na estruturação de temas e tópicos de um artigo, funcionando como um rascunho, sugerindo títulos que possam chamar a atenção dos leitores ou frases mais adequadas à linguagem formal, produzindo e corrigindo códigos de programação, auxiliando em análises estatísticas, ou formatando o artigo e as referências conforme as normas da revista. A tradução para outro idioma também pode ser realizada por meio de IA generativa, facilitando a comunicação entre os autores e seus leitores. É fundamental que os autores indiquem, nas seções pertinentes do artigo (como métodos ou agradecimentos), em que etapas a ferramenta foi utilizada. Essas estratégias claras promovem a transparência no uso da tecnologia.
O COPE defende que ferramentas de IA, como o ChatGPT, não podem ser creditadas como autores de artigos científicos, pois não podem assumir responsabilidade pelo conteúdo e nem reivindicar direitos autorais 44. COPE Council. COPE Discussion Document: artificial intelligence (AI) in decision making. https://publicationethics.org/sites/default/files/ai-in-decision-making-discussion-doc.pdf (accessed on 08/Oct/2024).
https://publicationethics.org/sites/defa... . CSP apoia essa posição, já que os autores devem aprovar a versão final submetida, garantir sua integridade e assinar termos de concessão de direitos autorais, o que a IA não pode fazer.
Além disso, a redação de artigos científicos exige originalidade, algo impossível para o ChatGPT, uma vez que os textos gerados são apenas uma síntese das proposições mais recorrentes a respeito do assunto solicitado no universo dos dados utilizados em seu treinamento. Isso aumenta o risco de plágio ou alta similaridade entre textos. A IA pode gerar conteúdos muito semelhantes para diferentes artigos, mesmo com variações de forma e estilo, sem a devida atribuição de fontes, o que seria facilmente detectado por softwares de verificação de similaridade. Os conteúdos gerados por IA também estão frequentemente associados a violações de direitos autorais 22. Misra DP, Chandwar K. ChatGPT, artificial intelligence and scientific writing: what authors, peer reviewers and editors should know. J R Coll Physicians Edinb 2023; 53:90-3.. Respostas tendenciosas, originalidade limitada e o potencial para disseminar informações incorretas estão entre os principais problemas oriundos de IA generativa, uma vez que os resultados possuem uma confiabilidade reduzida 77. Lecler A, Soyer P, Gong B. The potential and pitfalls of ChatGPT in radiology. Diagn Interv Imaging 2024; 105:249-50..
Aplicações da inteligência artificial são disseminadas há anos, antes mesmo que fossem popularmente conhecidas por esse nome, de modo que já alcançaram um estado de ubiquidade no cotidiano da maioria das pessoas. Exemplos disso são os corretores ortográficos de editores de texto, os assistentes de conteúdo de serviços de streaming e os filtros de spam nos e-mails. Não é de se admirar que justamente pessoas ligadas à pesquisa científica e à inovação estejam mais propensas a experimentar, de maneira consciente e crítica, as possibilidades de uso dessas tecnologias.
A publicação científica precisa acompanhar as transformações contemporâneas. Com uma supervisão rigorosa e uma regulamentação clara e bem definida, o uso de IA no processo editorial pode gerar grandes benefícios. Reconhecer as possibilidades que essa tecnologia oferece já representa um avanço significativo. O grande desafio atual para todos os periódicos é encontrar formas de integrar algumas das tarefas realizadas por IA na rotina diária do processo editorial de maneira prática, eficiente e ética. Desenvolver as melhores práticas e estratégias para uma relação harmoniosa entre IA, periódicos e a publicação científica pode ser o caminho a seguir, gerando benefícios tanto para a ciência quanto para a sociedade como um todo.
Referências bibliográficas
- 1Gonçalves R. Criação: criatividade e inteligência artificial. São Paulo: Estação das Letras e Cores; 2023.
- 2Misra DP, Chandwar K. ChatGPT, artificial intelligence and scientific writing: what authors, peer reviewers and editors should know. J R Coll Physicians Edinb 2023; 53:90-3.
- 3Conroy G. How generative AI tools could disrupt scientific publishing. Nature 2023; 622:234-6.
- 4COPE Council. COPE Discussion Document: artificial intelligence (AI) in decision making. https://publicationethics.org/sites/default/files/ai-in-decision-making-discussion-doc.pdf (accessed on 08/Oct/2024).
» https://publicationethics.org/sites/default/files/ai-in-decision-making-discussion-doc.pdf - 5Kaebnick GE, Magnus DC, Kao A, Hosseini M, Resnik D, Dubljevic V, et al. Editors' statement on the responsible use of generative AI technologies in scholarly journal publishing. Med Health Care Philos 2023; 26:499-503.
- 6Lima LD, Carvalho MS, Alves LC. CSP em 40 anos de publicação científica. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00076324.
- 7Lecler A, Soyer P, Gong B. The potential and pitfalls of ChatGPT in radiology. Diagn Interv Imaging 2024; 105:249-50.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
25 Nov 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
15 Out 2024 - Aceito
15 Out 2024