Nos anos 1980, o acelerado desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e o processo de financeirização da economia global inaugurou uma nova fase do capitalismo, da economia digital e de exploração da força de trabalho global, ao modular os processos tecnossociais em um modelo mediado pelas tecnologias e plataformas digitais.
Antes mesmo das plataformas, as tecnologias digitais já existiam para gerir e controlar o trabalho. Como exemplos, Antunes & Braga 11. Antunes R, Braga R. Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo; 2009. citam os “infoproletários” para designar a exploração e controle virtual dos(as) trabalhadores(as) de call center e dos(as) programadores(as) de software, que vivenciam uma autonomia paradoxal, cada vez mais reféns da produtividade de quem os contrata.
Na divisão internacional do trabalho, as tecnologias digitais, além de conectar e articular várias formas produtivas - da indústria aos serviços -, também conseguiu obter maior eficácia produtiva, à medida que intensificou o trabalho e a vigilância sobre os(as) trabalhadores(as). Além disso, em um cenário de desemprego estrutural e de trabalho informal, mais comuns nos países periféricos do Sul Global, a gig economy, ou economia de bicos, aparece como única saída de sobrevivência para 61% dos trabalhadores(as) informais no mundo, já que o desemprego atinge cerca de 207 milhões de pessoas 22. World Health Organization; International Labour Organization. Mental health at work. Genebra: World Health Organization/International Labour Organization; 2022..
No Brasil, a informalidade também é elevada e dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 41% da população ocupada trabalhavam sem carteira ou por conta própria 33. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais - 2023. Uma análise das condições de vida da população brasileira. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/070903d82038130a93f0374ada39f81d.pdf (acessado em 21/Fev/2024).
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/me... . Em 2022, cerca de 1,5 milhão de brasileiros(as) realizavam trabalho por meio de plataformas digitais de serviços, enquanto 628 mil utilizavam plataformas de comércio. Nesse período, entre os trabalhadores autônomos, 9,8% da população ocupada realizava trabalho remoto e 7,7% teletrabalho exclusivamente 44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022. PNAD contínua. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102035_informativo.pdf (acessado em 21/Fev/2024).
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza... . O enorme contingente de trabalhadores(as) sem proteção social e com fatores de risco potenciais é um desafio para a saúde pública.
Nesse cenário, no livro Trabalho por Plataformas Digitais: Do Aprofundamento da Precarização à Busca por Alternativas Democráticas55. Grohman R, Salvagni J. Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas. São Paulo: Serviço Social do Comércio - Administração Regional no Estado de São Paulo; 2023. (Coleção Democracia Digital)., os autores Rafael Grohmann & Julice Salvagni problematizam o impacto das mudanças promovidas pelas plataformas digitais como um novo tipo de organização de trabalho que se reapropria da informalidade para extração do mais valor, além de aumentar a precariedade e a exploração de trabalhadores(as), em um cenário sem precedentes de trabalho sob demanda, mediadas por empresas que se utilizam das tecnologias e plataformas digitais como forma de exploração da força de trabalho.
No capítulo 1, sobre o trabalho por plataformas digitais, os autores nos alertam sobre as diferenças conceituais entre plataformização e uberização e elegem como campo de investigação todo o trabalho que é mediado, organizado, controlado e/ou governado pelas plataformas. Pontuam que o trabalho continua sendo uma atividade humana que vai além das plataformas digitais; entretanto, o amplo processo de informatização modificou as formas de gerenciamento, controle e organização do trabalho, com ênfase no autogerenciamento subordinado e de desempenho individual, em que a subjunção do trabalho informal pelo capital transformou cada trabalhador e trabalhadora em “trabalhador sob demanda”. Ou seja, apesar de a circulação de pessoas e mercadorias se dar por intermédio das plataformas, ainda existe uma dependência de várias formas de trabalho vivo e com vigilância algorítmica dos seus rastros digitais.
No capítulo 2, sobre quem são os trabalhadores por plataformas, os autores destacam que, no neoliberalismo, o uso das tecnologias, a serviço do capital, não é neutro e sua dispersão espacial é, ao mesmo tempo, global e local em função do setor econômico, das habilidades e complexidades do tipo de trabalho requerido (de microtarefas repetitivas à desenvolvimento de softwares) e das ocupações (entregadores, motoristas, professores, empregados domésticos, freelancers etc.). Entrecortados por marcadores sociais de desigualdades e diferenças, no trabalho por plataformas se entrelaçam clivagens de raça, gênero, território, além de, em seus contextos, culturas e dinâmicas interseccionais. Embora os entregadores e motoristas de aplicativos sejam mais conhecidos, eles representam a ponta do iceberg. No universo da precarização do trabalho digital, estão incluídos os desenvolvedores de inteligência artificial (IA), fazendeiros de cliques, criadores de conteúdo e freelancers, totalizando mais de 160 milhões de trabalhadores no mundo, a maioria do Sul Global. Somente no Brasil, há mais de cinquenta plataformas de microtrabalho e microtarefas de baixa complexidade e elevada repetitividade.
No capítulo 3, sobre os mecanismos do trabalho por plataformas, a arquitetura assentada sobre o gerenciamento algorítmico e a datificação representa as principais alavancas na financeirização e nos ganhos de capital, materializados pela racionalidade neoliberal. O gerenciamento algorítmico do trabalho é um conjunto de práticas de supervisão, governança e controle sobre os(as) trabalhadores(as) de forma remota. Além disso, no design original, as plataformas desconsideram as diferenças de raça e gênero e são projetadas para desarticular a comunicação e organização entre esses(as) trabalhadores(as).
No capítulo 4, sobre saídas para o trabalho de plataformas, os autores apontam algumas brechas e fissuras na lógica das plataformas digitais para driblar o algoritmo e resistir às pressões individuais cotidianas. Entretanto, no âmbito coletivo, é necessário que a maioria se reconheça como força de trabalho explorada, não como empreendedores. Embora as pautas entre os trabalhadores de aplicativos e plataformas não sejam homogêneas, considerando-se as leis de trabalho digno e decente da Organização Internacional do Trabalho (OIT), são destacados cinco princípios para empregos em plataformas digitais, seja nas ruas ou em casa: remuneração, condições de trabalho, contratos, gestão e representação. No Brasil, em 2023, a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos reivindicou, sobretudo, a formalização das relações de trabalho, da proteção social para acidentes de trabalho, das garantias de remuneração, da liberdade de associação e da sindicalização. Sobre a rigidez das plataformas, algumas universidades, em parceria com laboratórios de inovação, estão desenvolvendo um sistema digital público, para o livre acesso dos trabalhadores. Uma alternativa é o cooperativismo de plataforma.
No capítulo 5, sobre o cooperativismo de plataforma, os autores discutem como essas tecnologias podem ser apropriadas pelos trabalhadores, a partir de um movimento de luta de classes, ou seja, de baixo para cima, incluindo a possibilidade de políticas públicas, considerando sete princípios internacionais das cooperativas de trabalho: adesão livre e voluntária; gestão democrática; participação econômica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; interesse pela comunidade. As iniciativas e experiências internacionais no cooperativismo de plataformas são relevantes e podem servir de referência; entretanto, os autores pontuam as dificuldades em “tropicalizar” modelos do Norte Global e defendem a adaptação do cooperativismo de projetos à cultura e realidade brasileira, tanto em âmbito regional quanto nacional.
E qual é o futuro do trabalho por plataformas? Para os autores, a resposta depende da capacidade de organização dos movimentos sociais, considerando-se as brechas e fissuras em torno das formas emergentes de solidariedade e estruturação.
O desenvolvimento das tecnologias digitais modificou os processos e a organização do trabalho e amplificou globalmente as relações de trabalho individualizadas e invisibilizadas. A apropriação hegemônica das TIC pelo capital, embora não substitua o trabalho humano, visto que as máquinas não criam valor, potencializa e intensifica o trabalho, o controle e a vigilância sobre os assalariados formais (nos setores da indústria 4.0, dos serviços e do comércio) e informais, incluindo a enorme força de trabalho tipificada nesse livro como parte de um iceberg sem saída de “escravidão digital” 66. Antunes R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo; 2020..
A pandemia de COVID-19 normalizou e ampliou o trabalho digital, que abrange as atividades em home office e nas ruas, com entregadores e motoristas por aplicativos, também intensificou a precarização do trabalho e eliminou a separação entre a vida privada e o trabalho. Nesse cenário, é perceptível o aumento do sofrimento e dos transtornos mentais, para aqueles que trabalham em casa, e dos acidentes graves, entre os motofretistas 77. Ferreira FG, Mendes ED, Naves ET. O mal-estar na uberização: reflexões acerca do trabalho na perspectiva da lógica neoliberal. Cad Psicol Soc Trab 2023; 26:e-195592.. O desafio do Sistema Único de Saúde (SUS) e sua plataforma digital (e-SUS) é conseguir adequar sua rede para acolher as demandas dessa força de trabalho cada vez mais refém das tecnologias digitais. A agenda da telessaúde pode ser o caminho mais promissor.
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- 1Antunes R, Braga R. Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo; 2009.
- 2World Health Organization; International Labour Organization. Mental health at work. Genebra: World Health Organization/International Labour Organization; 2022.
- 3Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais - 2023. Uma análise das condições de vida da população brasileira. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/070903d82038130a93f0374ada39f81d.pdf (acessado em 21/Fev/2024).
» https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/070903d82038130a93f0374ada39f81d.pdf - 4Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022. PNAD contínua. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102035_informativo.pdf (acessado em 21/Fev/2024).
» https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102035_informativo.pdf - 5Grohman R, Salvagni J. Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas. São Paulo: Serviço Social do Comércio - Administração Regional no Estado de São Paulo; 2023. (Coleção Democracia Digital).
- 6Antunes R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo; 2020.
- 7Ferreira FG, Mendes ED, Naves ET. O mal-estar na uberização: reflexões acerca do trabalho na perspectiva da lógica neoliberal. Cad Psicol Soc Trab 2023; 26:e-195592.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
02 Jan 2024 - Revisado
11 Jan 2024 - Aceito
17 Jan 2024