Desafios da comunicação científica: o papel de Cadernos de Saúde Pública em 40 anos de história

Nísia Trindade Lima Sobre o autor

Em 2014 tive o privilégio de escrever o Editorial comemorativo dos 30 anos de Cadernos de Saúde Pública, periódico de referência nacional e internacional para todos que se interessam pelo campo interdisciplinar da Saúde Coletiva. Passados 10 anos, sinto-me honrada e, sobretudo, desafiada ao ser convidada para compartilhar algumas ideias em um tempo que nos interpela a pensar o valor social da ciência e da saúde. E em Cadernos, conforme costumamos de forma íntima chamar essa potente revista, encontramos um acervo permanentemente atualizado para essa reflexão e tomada de posição. Hoje em todo o mundo, pari passu aos processos de mudança no mundo do trabalho, aos desafios ambientais, com as mudanças climáticas e seu impacto na saúde, aos processos de financeirização e à crise das democracias, convivemos com o negacionismo da ciência, seus valores, suas práticas e seus resultados. A COVID-19, um dos temas mais frequentes nas publicações em saúde nos últimos quatro anos, pode ser vista como importante marcador social da imbricação desses processos e os Cadernos, sem perda do rigor acadêmico e independência editorial, tornou-se importante e necessária tribuna em uma época em que se faz ainda mais necessário, e mesmo urgente, diferenciar autonomia científica de neutralidade quanto a valores 11. Carvalho MS, Lima LD, Alves LC. 40 anos de editoriais. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00025924.. É o que se verifica particularmente nas seções Debate, Espaço Temático e Perspectivas.

Em uma visão retrospectiva lembro também do livro organizado por mim e colegas pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), para os 50 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), em 2004 22. Lima NT, Fonseca CMO, Santos PRE, editors. Uma escola para a saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004.. Na Parte II (Uma Casa de Pensamento e Ação) da obra, no capítulo Cadernos de Saúde Pública: Uma Trajetória de 20 Anos, o leitor pode encontrar uma bem fundamentada descrição e interessante análise dos tempos de criação e consolidação da revista e aqui destaco a importância de Carlos Coimbra Jr., o seu mais longevo editor 33. Coimbra Jr. CEA, Souza-Santos R, Santos RV. Cadernos de Saúde Pública: uma trajetória de 20 anos. In: Lima NT, Fonseca CMO, Santos PRE, editors. Uma escola para a saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 203-17..

Interessante pensar em uma casa como metáfora para narrar essa história. Há uma vasta literatura nos campos da História das Ciências e dos Estudos Sociais da Ciência que aborda o papel dos periódicos científicos e uma de suas vertentes os analisa como instituições e não apenas como veículos de comunicação científica. Trata-se de vê-los como espaços de produção e reprodução da ciência, modelos de organização que contribuem para a formação de agendas científicas e sua comunicação para a sociedade 44. Ferreira LO. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX [Doctoral Dissertation]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1996.. Por seu turno, a imagem da casa nos faz pensar no ambiente doméstico, espaço de afetos que se pode perceber na obra de criação institucional. Instituição acadêmica, casa e tribuna são três dimensões presentes em uma história, a um só tempo, intelectual e afetiva.

Desde 2012, Cadernos de Saúde Pública passou a incluir com maior ênfase a equidade de gênero e raça, a diversidade regional e maior representação internacional. Naquele ano, assumiram a editoria científica as pesquisadoras Marilia Sá Carvalho, Claudia Travassos e Cláudia Medina Coeli. Em 2015, Luciana Dias de Lima passou a compor o grupo de editoria científica e, após 2022, o trio de editoras é formado por ela, Luciana Correia Alves e Marilia Sá Carvalho, a última com 12 anos de dedicação a esse papel. A inclusão de uma pesquisadora de fora dos quadros da ENSP é outro fato digno de nota, além da valorização das mulheres em uma instituição na qual as barreiras de gênero ainda não foram superadas.

Os modelos clássicos de periódicos científicos datam do século XVII, e se firmaram como alternativa à comunicação científica anterior veiculada por cartas entre sábios ou em atas e memórias de sociedades científicas. Desde suas origens, a linguagem dos periódicos foi caracterizada pela impessoalidade e constituiu uma das características da própria construção do cientista como categoria social 55. Sá DM. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. A avaliação por pares, a padronização de referências, entre outras medidas que vemos hoje com um certo automatismo resultaram de complexos processos históricos. Hoje, muitos desses mecanismos se encontram em transformação com os preprints; processos mais coletivos de elaboração, indicando certamente a transição para novas formas de comunicação científica 66. Lima LD, Carvalho MS, Alves LC. Diálogos para uma prática científica mais coletiva. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00236022..

Também no que diz respeito à forma de comunicação científica, Cadernos de Saúde Pública foi pioneira em diferentes frentes, a exemplo do acesso aberto ao conhecimento científico e à contribuição para o portal SciELO. Nos últimos 15 anos, o periódico vem trazendo importantes debates sobre acesso aberto, além de aprofundar a discussão sobre avaliação acadêmica. Em seus artigos encontramos críticas argutas ao uso de indicadores como fator de impacto e argumentos consistentes sobre a necessidade de avaliações quantitativas. Destaca-se também a discussão sobre a pós-graduação no Brasil e seu papel na agenda científica e na resposta a questões prioritárias para a sociedade. Hoje a revista nos instiga a abordar temas como a ciência aberta, a transição digital e a inteligência artificial.

Em 2023, a revista abriu um Espaço Temático sobre a Amazônia, contribuindo entre, outras análises, para as relações entre saúde e sustentabilidade social e ambiental, além de trazer novas ideias sobre a região. Nesse ano, com a eleição do Presidente Lula e minha nomeação para o Ministério da Saúde retomou-se a interação do governo com a comunidade cientifica e a possibilidade de maior apropriação do conhecimento científico para a formulação de políticas públicas, além da retomada consistente do financiamento da pesquisa e do respeito à autonomia cientifica e ao pensamento crítico.

Um tema para reflexão: como pensar a Saúde Coletiva em tempos de transformação em um país no qual problemas de diferentes temporalidades parecem conviver: uma histórica desigualdade e os desafios do tempo presente; realidades sanitárias características do século XIX e problemas não superados no século XX, lado a lado com novos desafios do século XXI, a exemplo da pandemia de COVID-19? Pela sua tradição de ser simultaneamente espaço acadêmico, lugar de afetos e tribuna, espero que Cadernos de Saúde Pública continue a nos trazer a inquietação necessária e quem sabe novos caminhos para a comunicação da ciência e mesmo para o fazer científico.

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  • 1
    Carvalho MS, Lima LD, Alves LC. 40 anos de editoriais. Cad Saúde Pública 2024; 40:e00025924.
  • 2
    Lima NT, Fonseca CMO, Santos PRE, editors. Uma escola para a saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004.
  • 3
    Coimbra Jr. CEA, Souza-Santos R, Santos RV. Cadernos de Saúde Pública: uma trajetória de 20 anos. In: Lima NT, Fonseca CMO, Santos PRE, editors. Uma escola para a saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 203-17.
  • 4
    Ferreira LO. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX [Doctoral Dissertation]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1996.
  • 5
    Sá DM. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.
  • 6
    Lima LD, Carvalho MS, Alves LC. Diálogos para uma prática científica mais coletiva. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00236022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2024
  • Aceito
    16 Abr 2024
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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