Lei nº 22.537/2024, do Estado de Goiás, Brasil, de conscientização contra o aborto: uma análise crítica

Roberta Siqueira Mocaiber Dieguez Cristiane da Silva Cabral Sobre os autores

No dia 11 de janeiro de 2024, foi sancionada na Assembleia Legislativa de Goiás a Lei nº 22.537/202411. Estado de Goiás. Lei nº 22.537, de 11 de janeiro de 2024. Institui a Campanha de Conscientização contra o Aborto para as Mulheres no Estado de Goiás. Diário Oficial do Estado de Goiás 2024; 11 jan., que institui a “Campanha de Conscientização Contra o Aborto para as Mulheres no Estado de Goiás”. Proposta pelo então deputado estadual Fred Rodrigues, a lei prevê medidas de combate ao aborto no Estado de Goiás. No entanto, o documento não menciona em momento algum os permissivos legais para o aborto no Brasil: (i) risco à vida da gestante; (ii) gravidez decorrente de estupro; e (iii) anencefalia fetal. Embora tenha sido alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7597) no Supremo Tribunal Federal (STF), a referida lei ainda está em vigor.

Alinhado às principais estratégias adotadas recentemente por grupos que se posicionam contra o aborto 22. Luna N, Porto R. Aborto, valores religiosos e políticas públicas: a controvérsia sobre a interrupção voluntária da gravidez na audiência pública da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal. Religião & Sociedade 2023; 43:151-80. e a outros Projetos de Lei que tramitam ou tramitaram recentemente no Congresso Nacional 33. Brasil. Projeto de Lei nº 478, de 2007. Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências. https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/345103 (accessed on 13/Jan/2024).
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,44. Brasil. Projeto de Lei nº 5.435, de 2020. Dispõe sobre o Estatuto da Gestante. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145760 (accessed on 13/Jan/2024).
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,55. Brasil. Projeto de Lei nº 4.281, de 2023. Institui o Dia Nacional do Nascituro a ser comemorado, anualmente, em 8 de outubro e a Semana de Defesa e Promoção da Vida, na semana que o antecede. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2392991 (accessed on 13/Jan/2024).
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, o argumento central do documento goiano é a proteção à vida do “nascituro”. A atribuição de subjetividade ao feto não nascido objetiva produzir um falso conflito de direitos entre a gestante e o feto que ela carrega 66. Rybka LN, Cabral CS. Morte e vida no debate sobre aborto: uma análise a partir da audiência pública sobre a ADPF 442. Saúde Soc 2023; 32:e220527pt.. Trata-se de uma evidente violação dos direitos reprodutivos da pessoa que gesta.

No 1º parágrafo do art. 3º, o documento prevê o desenvolvimento de palestras, direcionadas a crianças e adolescentes, sobre os supostos “riscos” do aborto, sem distinguir entre interrupções clandestinas (em grande medida, são abortos inseguros) e aborto legal. A literatura científica recente alerta para os riscos do aborto inseguro, sobretudo em países com leis mais restritivas, como no Brasil 77. Pilecco FB, McCallum CA, Almeida MCC, Alves FJO, Rocha AS, Ortelan N, et al. Abortion and the COVID-19 pandemic: insights for Latin America. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00322320.. Não há dúvidas quanto à eficácia e segurança do aborto legal 88. Raymond EG, Grimes DA. The comparative safety of legal induced abortion and childbirth in the United States. Obstet Gynecol 2012; 119(2 Pt 1):215-9. quando utilizados os métodos recomendados 99. World Health Organization. Abortion care guideline. Geneva: World Health Organization; 2022..

Entretanto, um dos pontos que chamam a atenção nessa proposta é o enfoque dado às crianças e adolescentes, que são as principais vítimas de violência sexual no Brasil. As mais afetadas por esse problema são do sexo feminino (88,7%) e na faixa etária de 10 a 13 anos (33,2%) 1010. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf (accessed on 13/Jan/2024).
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. A lei aprovada em Goiás pretende levar informações incorretas para crianças e adolescentes que possivelmente são vítimas de violência sexual e, portanto, têm direito ao aborto legal. Vale ressaltar que gravidez em menores de 14 anos significa estupro presumido e, portanto, a gestante tem direito ao aborto previsto em lei desde 1940.

Outra diretriz, presente no 2º parágrafo do art. 3º, prevê a informação da população sobre métodos contraceptivos, a fim de prevenir casos de gravidez não planejada. Embora a ampliação do acesso a informações sobre os métodos contraceptivos seja sempre algo positivo do ponto de vista da saúde pública, incluir esse tópico em uma lei contra o aborto sugere que a gravidez imprevista decorre, principalmente, da falta de acesso a informações. Entretanto, o uso eficaz da contracepção extrapola o acesso ao conhecimento sobre o assunto, na medida em que envolve uma complexa rede de relações sociais, como marcadores sociais da diferença (classe social, raça, gênero, estruturação dos serviços etc.), desigualdades nas relações afetivo-sexuais e a história individual 1111. Cabral CS. Articulações entre contracepção, sexualidade e relações de gênero. Saúde Soc 2017; 26:1093-104.. Sendo assim, a associação imediata entre contracepção e falta de informação reforça uma narrativa que culpabiliza somente as mulheres pela gravidez, enquanto isenta os homens e desconsidera as complexidades que atravessam a contracepção. Esse é mais um equívoco embutido na referida lei, que reforça o estigma da gravidez imprevista enquanto resultado de um fracasso das mulheres na regulação de sua fecundidade 1212. Brandão ER, Cabral CS. Vidas precárias: tecnologias de governo e modos de gestão da fecundidade de mulheres "vulneráveis". Horizontes Antropológicos 2021; 27:47-84..

O tópico de maior repercussão da aprovação do texto foi o “fornecimento compulsório” de ultrassonografia para as mulheres grávidas, que passam a ser obrigadas a ouvir os batimentos cardíacos do feto (art. 3º, parágrafo 6º). Além de configurar violência institucional obstétrica, entende-se que essa medida visa impedir a intenção justamente daquelas que não desejam dar seguimento à gravidez. Como observado em outro estudo 1313. Lima MRP, McCallum CA, Menezes GMS. A cena da ultrassonografia na atenção ao aborto: práticas e significados em uma maternidade pública em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36 Suppl 1:e00035618., o uso do ultrassom na atenção ao aborto confere “atributos de sujeito social” ao feto, favorecendo a condenação moral da mulher que opta pelo aborto e colocando-a em risco de denúncia.

Por fim, o texto propõe: “estimular a iniciativa privada e ONGs na promoção de meios para acolher, orientar e prestar assistência psicológica e social às mulheres grávidas que manifestem o desejo de abortar, priorizando sempre a manutenção da vida do nascituro” (art. 3º, parágrafo 5º). A priorização da vida do feto se sobrepõe ao direito da gestante ao aborto legal, o que induz a manutenção de uma gravidez indesejada, ainda que o direito à interrupção seja manifesto. Trata-se, assim, de uma forma de produzir impeditivos de ordem moral, psicológica e institucional para quem precisa interromper uma gravidez, aumentando o imenso número de barreiras já existentes para o aborto previsto em lei.

Barreiras e dificuldades de acesso ao aborto seguro podem resultar em diversos danos à saúde e às condições de vida das pessoas envolvidas. A manutenção da gravidez devido à negação do aborto pode levar a consequências psicológicas, sociais, econômicas, relacionais, entre outras 1414. Foster DG, Biggs MA, Ralph L, Gerdts C, Roberts S, Glymour MM. Socioeconomic outcomes of women who receive and women who are denied wanted abortions in the United States. Am J Public Health 2022; 112:1290-6.. Na saúde, a negativa do aborto pode levar a maiores riscos de condições como eclâmpsia e hemorragia pós-parto, podendo inclusive aumentar o risco de morte materna 1515. Gerdts C, Dobkin L, Foster DG, Schwarz EB. Side effects, physical health consequences, and mortality associated with abortion and birth after an unwanted pregnancy. Womens Health Issues 2016; 26:55-9., além de estar associada a maiores índices de depressão pós-parto 1616. Brito CNO, Alves SV, Ludermir AB, Araújo TVB. Postpartum depression among women with unintended pregnancy. Rev Saúde Pública 2015; 49:33.. Além disso, propostas que restringem o acesso ao aborto legal e seguro contrariam as mais recentes recomendações da Organização Mundial da Saúde 88. Raymond EG, Grimes DA. The comparative safety of legal induced abortion and childbirth in the United States. Obstet Gynecol 2012; 119(2 Pt 1):215-9., para as quais leis menos restritivas para o aborto são um importante passo para a promoção da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e homens.

Portanto, a aprovação da Lei nº 22.537/2024 tem como objetivo o impedimento do acesso ao aborto legal e como consequência a imposição da gravidez em casos de estupro, violando o Código Penal brasileiro que confere o direito ao aborto nesses casos. Ainda que não seja possível que a lei federal seja alterada por uma lei estadual, a proposta impõe sofrimento psicológico desnecessário à gestante ao tentar forçar a continuidade da gravidez decorrente de estupro e agrava as já conhecidas barreiras de acesso relacionadas à objeção de consciência, ao limite de tempo gestacional, à distribuição dos serviços 1717. Diniz D. Objeção de consciência e aborto: direitos e deveres dos médicos na saúde pública. Rev Saúde Pública 2011; 45:981-5.,1818. Grupo Curumim; IPAS Brasil; Universidade Federal da Bahia. Barreiras de acesso ao aborto legal na Bahia no período da pandemia da COVID-19: 2020 e 2021. https://www.isc.ufba.br/wp-content/uploads/2023/04/Barreiras-de-acesso-ao-aborto-legal-na-Bahia-RESUMO-EXECUTIVO.pdf (accessed on 24/Jan/2024).
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,1919. Jacobs MG, Boing AC. Como a normatização sobre o serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro afeta sua oferta nos municípios? Ciênc Saúde Colet 2022; 27:3689-700., entre outras.

Embora a mudança só tenha impacto direto no Estado de Goiás, consideramos que sua aprovação contribui para fortalecer projetos de lei semelhantes em tramitação em outros estados da Federação. Essas mudanças na legislação são fortes mecanismos institucionais que interferem na autonomia e gestão reprodutiva (não apenas de pessoas que engravidam) e contribuem para a produção de regimes morais 2020. Morgan LM, Roberts EFS. Reproductive governance in Latin America. Anthropol Med 2012; 19:241-54.,2121. Fonseca C, Marre D, Rifiotis F. Governança reprodutiva: um assunto de suma relevância política. Horizontes Antropológicos 2021; 27:7-46.,2222. Fassin D. Another politics of life is possible. Theory Cult Soc 2009; 26:44-60. que atuam de forma coercitiva sobre os diferentes sujeitos, definindo modos de viver a vida. Atualmente, existem vários projetos de lei no país que se alinham a uma agenda neoconservadora e antiaborto, propostos por representantes do legislativo municipal, estadual ou federal. Somam-se a isso outros ataques recentes aos direitos sexuais e reprodutivos, que se manifestam, por exemplo, no fechamento de serviços de referência para atenção ao aborto legal. Um exemplo é o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na cidade de São Paulo, considerado um dos únicos do Brasil a oferecer o procedimento em casos de tempo gestacional superior a 22 semanas. O prefeito da cidade determinou a interrupção do serviço de aborto legal em dezembro de 2023, sob alegação de priorizar outros procedimentos e cirurgias 2323. Cetrone C. Prefeitura de SP fecha serviço de aborto legal em hospital referência no procedimento. Marie Claire 2023; 20 dec. https://revistamarieclaire.globo.com/direitos-reprodutivos/noticia/2023/12/prefeitura-de-sp-fecha-servico-de-aborto-legal-em-hospital-referencia-ha-30-anos-no-procedimento.ghtml.
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. Na sequência, houve a demissão do diretor da unidade e a nomeação de uma médica sabidamente contrária ao aborto, tendo em vista seus posicionamentos públicos em redes sociais.

Além de integrarem um conjunto de ações que visam impedir o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, essas iniciativas têm como consequência o aumento da moralização e da condenação do aborto nos debates públicos, o que agrava as já conhecidas iniquidades no acesso ao aborto legal e seguro e na atenção à saúde nos casos de complicações causadas pelo aborto inseguro. Todo esse contexto é exemplar de um dos argumentos centrais que compõem o arcabouço teórico sobre governança reprodutiva. Conforme alerta Briggs 2424. Briggs L. How all politics became reproductive politics: from welfare reform to foreclosure to Trump. Oakland: University of California Press; 2017., “todas as políticas são políticas reprodutivas”, já que as necessidades de desenvolvimento do Estado capitalista se relacionam intimamente com a gestão do trabalho reprodutivo, o que inclui a reprodução em si, o trabalho do cuidado e da alimentação de crianças e idosos e todo o trabalho que possibilita a continuidade da vida humana. Assim, os corpos que gestam permanecem como alvos preferenciais das estratégias de controle e de intervenção do Estado. Urge uma aliança entre academia, movimentos sociais e setores de diversos níveis e instâncias governamentais que cumpra os direitos já assegurados em lei e defenda um Estado laico e de direitos.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES; 88887.663682/2022-00) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; 308568/2022-2) pelo apoio financeiro.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2024
  • Revisado
    05 Abr 2024
  • Aceito
    11 Abr 2024
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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