O mais recente livro 11. Belmont M, organizadora. Racismo ambiental e emergências climáticas no Brasil. São Paulo: Instituto de Referência Negra Peregum; 2023. acerca do racismo ambiental é organizado por Mariana Belmont - jornalista, articuladora, comunicadora, ativista, de movimentos ambientalistas e periféricos -, sob responsabilidade do Instituto de Referência Negra Peregum. O livro Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil tem início com um convite para a reflexão, desvelando no racismo ambiental a exploração intensiva da vida e dos recursos naturais, que é distribuído territorialmente de forma desigual, onerando principalmente a população negra e sua relação com as lutas, a cura e a história ancestral das religiões de matrizes africanas, da população negra e periférica no Brasil. Nessa introdução, ressalta-se a importância de unir o passado com o futuro como estratégia de resistência diária e de transformação dos sujeitos para a construção de uma sociedade antirracista.
O racismo ambiental é apresentado como uma forma contemporânea de manifestação do racismo e da discriminação racial que marca a vida das pessoas em seus territórios. Além da dinâmica climática e formas de atualização do racismo, é apresentada a compreensão sobre o papel que o Estado exerce na sociedade brasileira e nos espaços decisórios em relação às emergências climáticas, problematizando o termo justiça ambiental como forma de invisibilizar o fundamento racial, combinado aos fatores econômicos e de gênero da crise ambiental e climática e das possíveis soluções para o quadro de calamidade mundial. No Brasil, em relação à mineração e aos últimos rompimentos de barragem no Estado de Minas Gerais - ocasionados pelas mineradoras Samarco e Vale S/A, em Mariana e Brumadinho, respectivamente -, é ressaltada a importância de que precisam ser considerados veredictos de racismo ambiental e não apenas acidentes 11. Belmont M, organizadora. Racismo ambiental e emergências climáticas no Brasil. São Paulo: Instituto de Referência Negra Peregum; 2023.. Na mesma linha de raciocínio, é preciso evidenciar quais interesses, grupos e forças socioeconômicas que provocam crimes ambientais, gerando violências e vulnerabilidades para as populações ribeirinhas, indígenas e afrodescendentes, que já são historicamente violentadas, empobrecidas e vulnerabilizadas.
Fundamentada em sua argumentação e na potencialidade de sua análise, Mariana Belmont aborda o racismo ambiental a partir de questionamentos, como “Qual a cor dos corpos levados pelas enchentes, soterrados pelos deslizamentos e que são afetados pela escassez de alimentos nas cidades?” (p. 17). Diante dessa mobilização, podem ser feitas também as perguntas: quais são os corpos atingidos pelos grandes empreendimentos? Qual a relação entre o racismo ambiental e a saúde mental?
Isso porque, no final de 2015 e no início de 2019, ocorreram em Minas Gerais dois desastres/crimes sociotecnológicos, sendo considerados os mais graves desastres envolvendo barragens de mineração do século XXI no Brasil, causando rupturas e interrupções no cotidiano do território, além de grandes perdas e danos, inclusive relacionados à saúde, que ultrapassam as capacidades de resposta das comunidades, municípios e regiões atingidas 22. Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, Silva MA, Xavier DR. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00052519.,33. Carneiro KG, Souza TR, organizadores. Impactos da mineração na dimensão socioespacial. In: Anais do 17º Encontro Nacional da Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. https://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/2409/2388.
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Segundo o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2022. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2023., os 27 municípios atingidos pelo desastre/crime sociotecnológico em Brumadinho contêm uma população geral majoritariamente negra (parda e preta), perfazendo aproximadamente 68% da população residente. Entretanto, quando olhado com profundidade a partir do contexto de rompimento, a porcentagem pode aumentar. A organizadora do livro cita que no rompimento de Mariana em 2015 teve, entre a população atingida, a porcentagem de 84% de negros, indo, dessa forma, ao encontro do racismo ambiental evidenciado na obra.
Ainda na introdução, é citada a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, sediada em Durban (África do Sul) no ano 2001. Espaço que, já àquela época, fez referência ao meio ambiente e sua relação direta com a saúde das populações negras e ao processo de tomada de decisão. Contribuindo com a compreensão do livro, entende-se que os potenciais efeitos desses desastres para a saúde, são inúmeros a curto, médio e longo prazos 55. Silva EL, Silva MA. Segurança de barragens e os riscos à saúde pública. Saúde Debate 2020; 44:242-61.. Sendo assim, o Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz, em Minas Gerais, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro desenvolvem estudos para avaliar as condições de vida e saúde dos atingidos(as) de Brumadinho 66. Fundação Oswaldo Cruz. Projeto Saúde Brumadinho. https://www.cpqrr.fiocruz.br (acessado em 10/Jun/2024).
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Esses estudos demonstram sinais de modificações na vida e na saúde da população atingida, como no inquérito realizado em Barra Longa (Mariana) em 2017, no qual 43,5% dos(as) entrevistados(as) relataram ter problemas de saúde após o rompimento, sendo um dos principais problemas os quadros depressivos 77. Vormittag EMPAA, Oliveira MA, Rodrigues CG, Gleriano JS. Avaliação dos riscos em saúde da população de Barra Longa/MG afetada pelo desastre. São Paulo: Instituto Saúde e Sustentabilidade/Greenpeace; 2017.. Em Brumadinho, existe um impacto psicossocial que pode agravar o quadro de doenças crônicas e aumentar a ocorrência de transtornos mentais, como depressão e ansiedade 88. Barcellos C, organizador. Avaliação dos impactos do desastre de Brumadinho sobre a saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019. (Nota Técnica, 15/Fev/2019)..
Já a Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais, de Brumadinho, construída a partir dos espaços participativos com os(as) atingidos(as) em 2021 junto com assessoria técnica independente, apresenta aspectos e estudos que identificam o aumento considerável de doenças mentais e físicas na população, ocasionando agravamentos e desenvolvimento de transtornos mentais, sofrimento, aumento do uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas, tentativas e suicídios e aumento da violência doméstica 99. Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social. Matriz de medidas reparatórias emergenciais. Belo Horizonte: Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social; 2021..
Por sua vez, o Projeto Saúde Brumadinho menciona aspectos importantes sobre o predomínio de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados, além do uso de medicamentos psicotrópicos pela população local. É importante destacar algumas questões sobre o estudo: prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta da área atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos, em que 56,7% das pessoas entrevistadas são mulheres e 57,7% são pessoas negras. Entre os relatos, os sintomas depressivos foram de 29,3%, os de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) foram de 22,9% e a presença de ideação suicida ou automutilação 12,6% 1010. Garcia FD, Neves MCL, Firmo JOA, Peixoto SV, Castro-Costa E. Prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta da área atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos: Projeto Saúde Brumadinho. Rev Bras Epidemiol 2022; 26:e220011..
Os sintomas de TEPT, depressivos, ansiosos, ideias de morte/automutilação e piora da qualidade de sono estão manifestos em pessoas entre 18-59 anos, Mulheres, negras, não casadas, com Ensino Médio e residentes em regiões de mineração. Ressalta-se que, para os casos de ideias de morte/automutilação, a escolaridade muda para o Ensino Fundamental. O estudo ainda afirma que diferentes sintomas psiquiátricos encontrados em Brumadinho estão acima da média percentual verificada na população brasileira 1010. Garcia FD, Neves MCL, Firmo JOA, Peixoto SV, Castro-Costa E. Prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta da área atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos: Projeto Saúde Brumadinho. Rev Bras Epidemiol 2022; 26:e220011.. Entende-se, dessa forma, que existe uma relação entre o racismo ambiental, o rompimento da barragem e com o adoecimento mental da população atingida, onerando com agravos e de forma massiva a população negra e de mulheres.
Na segunda parte do livro, a organizadora detém-se sobre algumas temáticas que reforçam a defesa sobre o processo de racismo ambiental no Brasil, ao exemplificar como a epidemia do Zika vírus teve questões raciais estruturantes como um dos principais fatores de proliferação, entendendo que a população negra tem vulnerabilidades estruturais, como moradia, acesso a saneamento básico, água potável e socioeconômicas, processos que excluem, exploram e dominam essa população a partir da articulação das desigualdades sociais e que desembocam no processo saúde-doença 11. Belmont M, organizadora. Racismo ambiental e emergências climáticas no Brasil. São Paulo: Instituto de Referência Negra Peregum; 2023..
Com todo esse enquadramento histórico, social e contextual, percebe-se que existe uma multiplicidade de situações, exposições, riscos e efeitos sobre a saúde, em específico à saúde mental, da população negra a partir de um rompimento de barragem, uma grande chuva ou epidemia, por exemplo, que é mascarada e agravada pela profunda desigualdade social e pelo racismo institucionalizado no Brasil 1111. Herculano S. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. InterfacEHS 2008; 3:2.. Entende-se, assim, que o conceito de racismo ambiental é um conceito promissor para a saúde pública, necessitando de novas articulações com a políticas existentes no Sistema Único de Saúde e outras mais que consigam ser efetivas para a diminuição dos agravos e para a coexistência e a resiliência de territórios saudáveis no Brasil.
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- 1Belmont M, organizadora. Racismo ambiental e emergências climáticas no Brasil. São Paulo: Instituto de Referência Negra Peregum; 2023.
- 2Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, Silva MA, Xavier DR. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00052519.
- 3Carneiro KG, Souza TR, organizadores. Impactos da mineração na dimensão socioespacial. In: Anais do 17º Encontro Nacional da Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. https://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/2409/2388
» https://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/2409/2388 - 4Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2022. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2023.
- 5Silva EL, Silva MA. Segurança de barragens e os riscos à saúde pública. Saúde Debate 2020; 44:242-61.
- 6Fundação Oswaldo Cruz. Projeto Saúde Brumadinho. https://www.cpqrr.fiocruz.br (acessado em 10/Jun/2024).
» https://www.cpqrr.fiocruz.br - 7Vormittag EMPAA, Oliveira MA, Rodrigues CG, Gleriano JS. Avaliação dos riscos em saúde da população de Barra Longa/MG afetada pelo desastre. São Paulo: Instituto Saúde e Sustentabilidade/Greenpeace; 2017.
- 8Barcellos C, organizador. Avaliação dos impactos do desastre de Brumadinho sobre a saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2019. (Nota Técnica, 15/Fev/2019).
- 9Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social. Matriz de medidas reparatórias emergenciais. Belo Horizonte: Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social; 2021.
- 10Garcia FD, Neves MCL, Firmo JOA, Peixoto SV, Castro-Costa E. Prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta da área atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos: Projeto Saúde Brumadinho. Rev Bras Epidemiol 2022; 26:e220011.
- 11Herculano S. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. InterfacEHS 2008; 3:2.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
29 Jul 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
11 Mar 2024 - Aceito
18 Mar 2024